O referido Projecto de Lei, aprovado, dias antes, na generalidade, com os votos favoráveis das três formações políticas parlamentares (FRELIMO, RENAMO e MDM), concede aos beneficiários benesses como subsídios de atavio, de sessão, férias, alimentação e diuturnidade.
Tais regalias para os funcionários parlamentares indicados pelos partidos políticos, segundo diversas fontes, têm um custo de pelo menos 103 milhões de meticais, cerca de dois milhões de dólares.
Os privilégios em causa foram aprovados numa altura em que as autoridades moçambicanas são criticadas por não priorizarem a revisão salarial da maioria, num país em que o Estado é o principal empregador.
Num momento que Moçambique, assolado por uma crise económico-financeira e social agravada pelo impacto da Covid-19, enfrenta ataques terroristas a Norte, pelo menos um milhão de moçambicanos em risco de fome severa, esses privilégios fizeram soar as campainhas de indignação da sociedade civil.
Agastada com os privilégios da classe política, a sociedade civil moçambicana liderou a contestação, com destaque para o Fórum de Monitoria do Orçamento (FMO), a Associação de Estudantes da estatal Universidade Eduardo Mondlane e o Centro para a Democracia e Desenvolvimento (CDD).
"O Povo não aprova as regalias dos deputados. Nós somos o Patrão do Estado, da AR", lê-se numa petição lançada pela sociedade civil e que recolheu dezenas de milhares de assinaturas, a que se juntaram outros protestos formais e informais nas ruas e nas redes sociais.
Em Agosto de 2020, no Mali, após meses de tensões políticas e protestos violentos nas ruas, os militares aliaram-se aos contestatários e, num golpe de Estado, derrubaram o Presidente Ibrahim Boubakar Keita (IBK), eleito democraticamente, dois anos antes.
IBK, refugiado no formalismo do cumprimento total do seu segundo mandato de cinco anos, foi afastado do poder depois de se recusar a ouvir as reivindicações de milhares de malianos, sobretudo jovens, que saíam às ruas de Bamako a exigir a sua renúncia, devido ao agravamento da segurança, do custo de vida e da corrupção.
O Presidente Abdelaziz Bouteflika, da Argélia, foi forçado a demitir-se, em Abril do ano passado, por pressão de um movimento popular de contestação, desencadeado no seu país e que colocou milhões nas ruas a protestarem contra a sua permanência no poder.
Aos 82 anos, depois de 20 anos de poder, com a saúde fragilizada e a mobilidade comprometida na sequência de um derrame que sofrera em 2013, Abdelaziz Bouteflika não parecia disposto a aposentar-se, pois tinha em preparação a sua recandidatura a um quinto mandato presidencial.
Só as seis semanas de pressão popular de milhões de argelinos nas ruas afastaram Bouteflika do poder.
Com Portugal sob resgate financeiro, um milhão de portugueses saíram à rua, em Setembro de 2012, e fizeram recuar o Governo do primeiro-ministro Passos Coelho na sua decisão de alterar a Taxa Social Única (TSU), que favorecia as empresas contra os trabalhadores.
Fazendo jus à sua deriva neoliberal, Passos Coelho queria aplicar um choque fiscal brutal, propondo a descida da TSU das empresas dos 23,75% para 18% e um aumento da contribuição dos trabalhadores de 11% para 18%, transferindo recursos dos trabalhadores para as empresas.
Mas, a grande manifestação de 2002 levou milhões à rua do Norte ao Sul do País para ensinar ao então primeiro-ministro que em política não há "custe o que custar" contra a vontade popular.
Estes exemplos de latitudes diferentes, aparentemente sem qualquer conexão, provam a força e o papel da opinião pública e das populações, em geral, na correcção de desvarios e devaneios do poder político.
Traduzem os novos tempos e as novas formas de fazer protestos, de lutar por causas políticas, inclusive afastar do poder políticos indesejados.
Para esses combates, as redes sociais, ultrapassando os meios de comunicação social tradicionais, desempenham um papel primordial.
Os exemplos traduzem, também, a urgência e a necessidade de governantes estarem permanentemente atentos e disponíveis para ir ao encontro das mutáveis necessidades e expectativas dos governados.
Os exemplos citados trazem ao de cima uma discussão que está na ordem do dia em meios académicos, políticos e intelectuais sobre a relação entre a legitimidade política e a vontade popular e a crise de legitimidade.
Coloca a legitimidade fora da exclusiva dependência de resultados eleitorais, de competências político-legais e programas sufragados eleitoralmente.
Mostra, ainda, que, na era das TIC (Tecnologias de Informação e Comunicação), a política já não pode ser construída apenas em função da situação local, mas também atendendo à realidade global de acesso facilitado com o advento da internet e das redes sociais.
Muitas vezes, sem acesso aos grandes media, aos opositores das políticas do poder, não lhes resta alternativa que não seja a utilização das redes sociais como meio de convocação, difusão da sua mensagem de protesto e de organização de manifestações populares.
Redes sociais que, para além de meios de mobilização, são também criadoras e geradoras de influencers, incluindo na política, capazes de fazer eleger ou derrubar políticos ou ajudar a chumbar medidas políticas.
Actualmente, sobretudo em regimes autocráticos, as redes sociais funcionam como aliados naturais dos grupos de pressão, da sociedade civil e do combate à opacidade na gestão da coisa pública.
Nos quatro casos aqui mencionados, apesar da legitimidade jurídica para a aplicação das medidas pretendidas, verifica-se um divórcio entre as pretensões dos detentores do poder e a vontade popular.
Hoje, a legitimidade é questionável de tal forma que deixou de ser um dado adquirido por si só, um cheque em branco ou uma autorização ilimitada para o quero, o posso e o mando, passando a ser cada vez mais circunscrita, circunstancial e contextual.
É assim que a vontade popular, muitas vezes representada pela força da pressão da rua, surge a sobrepor-se à legitimidade jurídica propriamente dita.
Neste sentido, a avaliação do tipo de regime e do nível de democraticidade de uma sociedade são feitos também pela maior ou menor propensão dos seus políticos para recuarem nos seus programas e projectos perante pressão popular ou exigências da sociedade.
Assim, a vitalidade e a força da democracia são definidas pela "participação máxima das diferentes categorias da população" nos processos políticos, definida pelo pensador africano do Burkina Faso, Joseph Ki-Zerbo, como uma das "principais referências da democracia".
A sociedade civil não pode ser ignorada por quem governa, e os partidos deixaram de ser os únicos interlocutores válidos e principais actores, responsáveis pelo destino e mudanças nas sociedades, nos períodos que medeiam dois actos eleitorais.
Ignorar ou afrontar a opinião pública, mesmo que traga residuais ou efémeros ganhos imediatos, a médio e longo prazos será sempre desvantajoso e prejudicial para quem está no poder.
Se é verdade que a forma mais democrática de ganhar legitimidade ainda é através do voto popular, nos tempos actuais, essa legitimidade tem barreiras e limites bem definidos pelas populações, cada vez mais decididas em ser actores permanentes do seu próprio destino.
Limites esses que passam pela compreensão por parte dos políticos de que foram eleitos para servir e atender primeiramente às necessidades dos cidadãos e não para se servir do poder.
Significa também que o papel do eleitorado na democracia representativa não se limita ao depósito do boletim de voto na urna, aguardando tranquilamente pelo dia de eleições para penalizar ou premiar quem está no poder.
Os eleitorados, sobretudo os jovens, vão dando sinais da sua disponibilidade para interromper o curso dos mandatos de políticos incapazes, através de impeacheament popular sempre que a situação se justificar.
Dos políticos actuais, espera-se que tenham consciência e bom-senso, que evitem sacrificar um país, arrastando-o para uma instabilidade em nome da sua permanência no poder ou do cumprimento do tempo dos mandatos, como aconteceu no Mali e na Argélia.
Se, ainda de acordo com Ki-Zerbo, a ética e a moral fundamentam a legitimidade, então significa que a ausência de ética e de moral constitui um pressuposto para a deslegitimação de políticos e a cassação de mandatos.
Quando o poder é incapaz de satisfazer as aspirações das populações, de cumprir promessas eleitorais, perante a indignação popular, prolongar a instabilidade com sofismos e artimanhas, não só enfurece o eleitorado como acrescenta instabilidade à instabilidade.
E o poder deixa de ser a solução e passa a problema.