Num país polarizado, dividido ao meio, na hora do triunfo, Lula reconhece a "magnitude da missão" que tem pela frente, neste inédito regresso ao Palácio do Planalto, para liderar um Brasil com mais de 33 milhões de pessoas que passam fome, segundo dados das Nações Unidas.
O tema da fome perpassou toda a campanha eleitoral, esteve presente em todos os debates na primeira e na segunda voltas destas eleições que fizeram da conquista de Lula o resgate da democracia e o regresso do Brasil ao seu lugar no mundo.
O Presidente eleito do Brasil, entre as prioridades da sua governação, repetidas até à exaustão durante a campanha eleitoral, enumerou o combate à fome, à pobreza extrema, bem como a conciliação entre os brasileiros, depois de quatro anos de discurso de ódio de Jair Bolsonaro.
O regresso de Lula à Presidência do Brasil, País colocado por Bolsonaro entre a democracia e autocracia, é muito mais do que a vitória de um homem carismático, cujo nome nunca saiu do centro da política brasileira, apesar da prisão e dos processos judiciais.
É também o regresso e a recuperação do lugar do Brasil no concerto das Nações. E as palavras de Lula da Silva são muito claras: "O Brasil está de volta" como actor relevante na cena internacional.
Lula sublinha isso ao defender uma reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas que passe pelo fim do direito de veto, assim como pelo aumento do número de países-membros permanentes, lugar para o qual, percebe-se, o Brasil se perfila como candidato natural da sua região.
Lula mostra coragem e independência ao anunciar a sua oposição a esse direito, numa altura em que o veto é usado, sobretudo pela Rússia de Putin, para impedir qualquer condenação, no Conselho de Segurança, dos ataques russos à Ucrânia.
"O Brasil vai ocupar novamente o seu lugar na cena internacional, ao invés de se limitar ao papel de um simples pária", assegurou.
Sinal da urgência em retirar o Brasil do "orgulhosamente só" para onde foi atirado por Bolsonaro e em reassumir o seu papel de líder da região do MERCOSUL foi o encontro, em São Paulo, entre Lula da Silva e o Presidente da Argentina, Alberto Fernández, sobre política regional, poucas horas depois da eleição do antigo sindicalista.
Para o Chefe de Estado argentino, a vitória de Lula "abre um novo tempo na história da América Latina. Um tempo de esperança e de futuro que começa hoje".
Vitória que segue uma tendência no continente americano, de ascensão da esquerda contra políticos e formações populistas da extrema-direita e da direita, como aconteceu, entre outros, na Argentina, no Chile, na Colômbia, na Bolívia, no México e nos Estados Unidos, onde o democrata Joe Biden derrotou Donald Trump da extrema-direita.
No Brasil, Lula conseguiu que a direita se unisse à esquerda para impedir a reeleição de Bolsonaro de uma extrema-direita inspirada em Donald Trump, anticoncertação mundial, de costas viradas, inclusive, para os países da região e que colocou na lama a imagem externa de um colosso mundial.
Perante este quadro, figuras tidas como símbolos da direita brasileira juntaram-se, nesta segunda volta das presidenciais, à campanha de Lula, mostrando que o que estava em causa era o modelo de sociedade que querem para o Brasil.
Fernando Henrique Cardoso e José Sarney, antigos Presidentes do Brasil, e Simone Tebet, terceira classificada na primeira volta das presidenciais, estão entre as personalidades da direita brasileira que sublinharam em mensagens públicas que o voto em Lula é o voto pela Democracia, pela busca do bem-estar social e pela reunificação do Brasil.
Por isso mesmo, no seu discurso de vitória, Lula elegeu o diálogo como mote da sua governação e lembrou a necessidade de se construírem novas pontes e reerguer as destruídas por Bolsonaro.
"Além do combate à fome, o nosso país precisa do diálogo. Diálogo entre três poderes da democracia (Executivo, Legislativo e Judiciário). Um diálogo não para controlar o outro, mas para estabelecer pontes, confiança na construção do Brasil", disse.
E foi mais longe: "É preciso também diálogo entre o povo e o governo. As grandes decisões sobre as vidas de 215 milhões de brasileiros não serão tomadas no calar da noite, elas serão tomadas depois de um aturado diálogo".
Nessa campanha, destacou-se o papel do Tribunal Eleitoral, que, sempre atento, actuou prontamente, evitando e sancionando as violações das leis eleitorais, muitas das quais incentivadas por milícias digitais que fizeram do vale tudo norma.
No país dividido pelo discurso de ódio de Bolsonaro e depois de uma campanha eleitoral que parecia uma guerra sem quartel, o novo Presidente do Brasil mostra disponibilidade para trabalhar para a reconciliação. O País "está cansado de viver em guerras permanentes. É hora de baixar as armas. As armas matam e nós escolhemos a vida!", enfatizou.
Tal como Trump nos EUA, Bolsonaro fez da liberalização das armas no Brasil um dos países mais violentos do mundo, lema da sua governação.
Contra isso, Lula lembra que "ninguém compra arma para educar, ninguém compra arma para fazer o bem" e anunciou que "em vez de armas, o seu Governo vai distribuir livros, cultura e facilitar o acesso das pessoas às coisas que educam e não às coisas que matam", numa referência clara à educação e cultura como eixos estruturantes do seu programa de governação.
As gritantes desigualdades político-sociais, nomeadamente a desigualdade racial, num país estruturalmente racista, estão também presentes nas preocupações de Lula.
Esta será a última oportunidade de Lula da Silva, 77 anos, para deixar um Brasil menos racista, menos preconceituoso e com menos discriminação de género, e com os mesmos direitos e igualdade de oportunidade para todos.
Os dados positivos da economia brasileira, nomeadamente o facto de a taxa de desemprego ter baixado para 8,9%, a mais baixa desde 2015 (em Setembro de 2020, atingiu um recorde de 14,9%), não foram suficientes para que Bolsonaro se mantivesse na liderança do País, onde, no entanto, subiu a precariedade com o aumento de empregos sem contrato.
Ao tornar-se no primeiro político a fazer um terceiro mandato presidencial, Lula da Silva fez de Bolsonaro o primeiro Presidente não reeleito para um segundo mandato, na nova era da democracia brasileira.
Muitos dos 60 milhões de brasileiros que elegeram Lula votaram no político que, entre 2003 e 2011 (primeiro e segundo mandatos), tirou 44 milhões da pobreza, democratizou o acesso ao ensino superior de classes sociais baixas, permitindo, com isso, que milhares de jovens dessas classes, nomeadamente negros, tivessem acesso ao ensino superior, se licenciassem e enveredassem pela carreira académica.
Mas, as condições de governabilidade que Lula terá nesta terceira passagem pelo Palácio do Planalto, são muito diferentes das que teve nos dois mandatos citados.
O antigo metalúrgico do Partido dos Trabalhadores vai ter de governar com uma Câmara dos Deputados e Senado Federal hostis, em que os bolsonaristas, nomeadamente evangélicos, o principal suporte do Presidente derrotado, estão em maioria.
Lula terá também de saber negociar, talvez ao centro, para criar condições de governabilidade e adoptar políticas que satisfaçam a Frente de 15 formações de esquerda e direita que o catapultaram ao poder, unir os brasileiros, atacar os problemas do País e fazer do Brasil uma referência e exemplo político para muitas nações ricas e pobres, tal como nos seus anteriores mandatos.

Conseguirá Lula, com o diálogo anunciado, conciliar os interesses dos diferentes componentes dessa Frente, nada homogénea em termos político-ideológicos, reconciliar o país e coabitar com um Senado e Câmara dos Deputados hostis?