Intitulado "o meu corpo pertence-me", o relatório de 2021, ao centrar-se, pela primeira vez, na autonomia corporal, quis sinalizar a autodeterminação sobre o próprio corpo como variável essencial da Igualdade de Género.

Os preocupantes dados do continente africano, constantes do documento, põem em causa o cumprimento da Agenda 2063 da União Africana e os Objectivos de Desenvolvimento Sustentável das Nações Unidas (ODS), no que tange à Igualdade de Género.

A Meta 6 da Agenda 2063 da UA advoga "uma África em que o desenvolvimento é orientado para as pessoas, libertando o potencial das mulheres e dos jovens", enquanto o ODS 5 preconiza "alcançar a igualdade do género e empoderar todas as mulheres e raparigas" até 2030, como factor do desenvolvimento sustentado.

No documento do FNUAP, define-se autonomia corporal das mulheres em três eixos fundamentais, nomeadamente: o poder e a capacidade de fazer escolhas sobre o seu corpo, de decidir se e quando fazer sexo com o parceiro e de decidir sobre o uso de contraceptivos e sobre ter cuidados médicos.

Entre os elementos contra a autonomia corporal, a FNUAP aponta a violência contra as mulheres, a mutilação genital feminina, a esterilização forçada, a imposição de testes de virgindade e os casamentos infantis.

O relatório assinala que a falta de autonomia corporal é visível em situações em que as mulheres não têm autorização para tomar decisões sobre o seu próprio corpo sem correrem o risco de serem violentadas, com ameaças à própria integridade física.

A Agenda 2063 e a sua Estratégia para a Igualdade de Género e Empoderamento da Mulher (GEWE) para o período 2018-2028 foram insuficientes para evitar que países africanos figurassem na cauda do relatório do FNUAP.

No Níger e no Senegal, apenas 7% das mulheres têm autonomia corporal, e no Mali, outro país africano entre os piores, as mulheres sem autonomia corporal atingem os 90%, num continente com disparidades assinaláveis.

Em Angola, 62% das mulheres têm autonomia para tomar decisões sobre o seu corpo, nas três questões analisadas, um valor que desce para 49% em Moçambique e 46% em S. Tomé e Príncipe.

O facto de no Rwanda algumas mulheres concordarem em perder o direito de negar sexo em troca de maior autonomia noutras esferas da sua vida, como na tomada de decisões familiares ou capacidade de decidir se ou quando sair de casa, demonstra a subjugação patriarcal a que ainda estão sujeitas às senhoras.

Subjugação confirmada com os dados indicando que no Níger e na Nigéria mulheres podem satisfazer pedidos sexuais de homens em troca de mais independência nos seus empreendimentos económicos e pessoais.

No conjunto da África Subsariana, apenas 48% das mulheres têm autonomia para tomar decisões em relação ao seu corpo, cifra longe dos insuficientes 53% da autonomia corporal das mulheres, a nível do planeta.

Consciente destas disparidades, a UA, na sua estratégia para a Igualdade de Género, incluiu o pilar da "Dignidade, Segurança e Resiliência", que abrange a defesa da saúde e dos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres e raparigas, contra as "práticas tradicionais prejudiciais".

O casamento infantil tem grande impacto na saúde sexual e reprodutiva e na capacidade das raparigas de tomarem decisões de forma autónoma, tendo como consequência a redução da educação formal das jovens, provocando graves implicações económicas para as mesmas e para as suas comunidades.

Para a UA, a violência contra as mulheres e as práticas tradicionais nocivas são sintomas de normas sociais aceites em muitos países e comunidades, pondo em perigo a segurança humana e a integridade física das mulheres, fundamentais para o alcance da Igualdade do Género.

Segundo o UNICEF (Fundo das Nações para a Infância), todos os anos, doze milhões de meninas casam-se antes de se tornar adultas, engrossando as estatísticas dessa prática nociva que atinge 650 milhões de mulheres no mundo.

Por outro lado, a mesma agência da ONU estima que até 2030, mais 120 milhões de mulheres e meninas ter-se-ão casado antes de completar os 18 anos, com destaque para países da África Ocidental.

O Níger, por exemplo, tem a maior taxa de prevalência de casamento infantil do mundo, com 76% das meninas a casarem antes dos 18 anos.

Para o sucesso da Estratégia da UA que abarca as raparigas, devem merecer particular atenção os casamentos infantis, sobretudo na região subsaariana onde mais de 40% das menores são vítimas desta "violação legalizada", na opinião de Fátima Maada Bio, Primeira-Dama da Serra Leoa.

A essas menores é totalmente negada a soberania sobre os seus corpos, ao mesmo tempo que lhes é recusada a infância e adolescência e a possibilidade de estudarem e saírem do ciclo de pobreza que caracteriza as suas famílias.

Os dados do relatório mostram uma forte correlação entre poder de decisão e altos níveis de educação. Com o casamento, adianta o documento, termina a educação da criança, que fica exposta à violência doméstica e sexual e aumenta-se os riscos de morte por maternidade precoce ou por HIV.

Neste contexto, a UA deve adoptar planos estratégicos exequíveis, capazes de contrariar as previsões do UNICEF, que estima que até 2050 o número de menores casadas em África atinja os 310 milhões.

A Covid-19 veio exponenciar todos esses males, como retrata o relatório, levando a que muitas sociedades tenham secundarizado os programas de planeamento familiar e de saúde sexual e reprodutiva.

Apesar de a maioria dos países africanos ter constituições que proíbem a discriminação com base no sexo e reconhecerem os direitos socioeconómicos das mulheres, existe ainda uma lacuna significativa entre as disposições legais a favor da Igualdade do Género e a realidade quotidiana das mulheres.

Na opinião da própria UA, a reforma legislativa é um pré-requisito, mas não a única condição para a governação com perspectivas de género que implica a adopção de medidas deliberadas para transformar instituições através de "Sistemas de Governação de Género, incluindo um Orçamento Sensível ao Género (GRB)".

Tudo isso, ainda de acordo com a UA, passa pelo reforço das capacidades institucionais e sua responsabilização e proporcionar às mulheres e raparigas uma voz de influência em todas as esferas da vida em sociedade.

A maior parte dos países africanos está longe de atingir os níveis de Igualdade de Género já alcançados por Rwanda, Namíbia, África do Sul, Maurícias, Lesoto, Tunísia e Argélia, os melhores países no que tange ao desempenho no Índice do Quadro de Resultados de Género da União Africana, Índice de Género e Desenvolvimento do PNUD e Escala do Fosso de Género Global do Fórum Económico Mundial.

África tem de adoptar medidas para que mulheres e raparigas logrem maiores oportunidades de sobrevivência, gozando da protecção dos seus direitos, combatendo as estatísticas que dizem que o nível de desenvolvimento humano das mulheres africanas é 13% mais baixo que dos homens do continente.

Ou para combater dados como os da Tanzânia, onde as mulheres dedicam cinco vezes mais tempo a tarefas domésticas do que os homens.

O relatório do FNUAP vem corroborar com a UA que reconhece a violência doméstica, estupro, mutilação genital feminina, intimidação e ameaças adicionais à segurança pessoal da mulher em períodos de guerra e conflitos, como principais violências contra a mulher africana.

Violência que tende a acentuar-se em situações de conflito, perigando a segurança humana e a integridade física da mulher, fundamentais para a conquista da Igualdade de Género, dizem as autoridades africanas.

Se, em 2014, o presidente da UA nomeou um enviado especial para as Mulheres, associado à Paz e Segurança, em 2015, os líderes africanos decidiram-se a acelerar a Agenda da Mulher, Paz e Segurança, e, em Julho de 2016, a UA lançou o relatório "Implementação da Agenda da Mulher, Paz e Segurança em África". Hoje é imperioso olhar para o futuro e impedir que tais iniciativas se tornem letra morta.

Em nome da Paz, da Estabilidade e dos Direitos Humanos.