"Penso que a razão da caricatura das classes mais pobres em detrimento das elites está relacionada com a origem da própria comédia. É mais fácil e seguro gozar com a desgraça de uns do que gozar com a boa vida de outros. A comédia sempre foi derivada dos infortúnios. Não sei se em todo o mundo é assim. Sei que em Angola, por uma questão sócio-económica, temos muito mais audiência nas chamadas classes de baixa renda do que nas elites - o que pode ser também uma causa para a direcção que a comédia leva", acredita Tiago Costa, um dos responsáveis pelos eventos Jozaqui (festejaram um ano de actividade em Novembro), que acontece todas quinta-feiras no Espaço Bahia, em plena marginal de Luanda.

Nesse caso, o cenário parece sugerir que a atenção pela comédia ao vivo começa a tocar diferentes contextos sociais. O Espaço Bahia é um local caro e apresenta-se aos olhos da cidade como um sítio destinado às classes média-alta e alta.

Às elites que têm possibilidades económicas para esquecer o stress da capital e do engarrafamento e do calor num bar/restaurante que pratica preços bastante acima das possibilidades médias dos cidadãos angolanos. Durante as apresentações no Espaço Bahia os temas vão surgindo ao ritmo do apresentador Edwilson Pinho: a falta de energia, o trânsito na cidade, mas sobretudo as vivências do dia-a-dia nos bairros periféricos, as situações engraçadas que os comediantes vivem, as damas, as famílias e a Luanda da poeira e das lagoas e de isso tudo.

No colectivo do Gozaqui há, no entanto, quem prefira um tipo de humor que acentua os factos sociais e políticos. Que desenha na areia das suas convicções um sol que pode também despertar consciências e fazer piadas com sentido crítico - não o de dizer mal e apenas por dizer, mas o sentido crítico que identifica as pessoas com opinião própria e ideias próprias sobre o mundo que nos rodeia.

Timóteo João, o Timajó, que se apresenta ora de fato e gravata e brilho no tecido, ora de jeans a descair na cintura, ténis brancos-de-poeira e t-shirt casual, fartou- -se de carregar na tecla dos jacarés. Uma alusão por demais evidente ao eventual assassinato dos activistas políticos Isaías Cassule e Alves Kamulingue que, segundo alguns meios de comunicação social, terão sido atirados pelos serviços secretos aos jacarés da zona do Dande.

"A política é uma laranja com muito sumo", reconhece Timajó, de 34 anos de idade, em conversa com o Novo Jornal. "Mas nós temos noção do país em que vivemos. Não estamos ainda preparados para determinadas situações. Posso dizer com orgulho que no Gozaqui, por exemplo, não há tabús - mas devemos abordar certos temas com alguma subtileza.

Precisamos de ter em atenção que o espaço não é nosso, é de outras pessoas, e que algumas situações podem se tornar desconfortáveis também para os proprietários", explica Timajó. Bruno Motta, um dos mais premiados comediantes brasileiros, explica que actualmente o "principal ponto de pesquisa da linguagem "stand-upcomedy" é o texto autoral, feito pelo próprio comediante com base nas suas observações.

Sejam elas do quotidiano ou do dia- -a-dia ou mesmo das notícias ou do ambiente em que a pessoa vive. A possibilidade de dizer o que ainda não foi dito foi uma das principais características que nos levou a instalar o stand-up no Brasil". "Quanto à falta de actuações que olhem para a actualidade política penso que isso deve-se ao nosso actual contexto social.

A verdade é que tudo é política. No entanto, há determinados assuntos que, por razões adversas, ou são mais sensíveis, ou se querem mais sensíveis. É uma espécie de falso tabu na medida em que toda a gente, na mesa de jantar, em casa, entre quatro paredes, acaba por abordar esses assuntos", acredita Tiago Costa. Também é preciso ter em conta que o humorista "embora não devesse", para o seu papel criativo, ter limitações, é "constantemente limitado". "Não por um sistema político propriamente dito mas por influências deste mesmo sistema. Acredito que serão os próprios políticos os elementos-chave para desbloquear a situação", defende Tiago Costa.

"Quando os políticos passarem a ser mais comunicativos prestarão mais declarações que poderão ser utilizadas contra ou a seu favor de forma satirizada. Parece-me que, actualmente, era impossível termos um programa televisivo como o "Contra-Informação", uma sátira política que existiu em Portugal, na televisão pública.

Não falo aqui de vontade política porque para se fazer humor "ainda" não estamos tão dependentes dos políticos mas é preciso que haja maior abertura da parte de todos", frisa Tiago Costa. E conclui: "Eu penso que a pouca crítica social tem que ver com estes três pontos: história recente do país, falta de liberdade, ao que eu costumo, com medo de errar, chamar de auto-censura e a pouca experiência dos comediantes. Os jornais muitas vezes passam somente o que lhes convém, verdades pela metade que acabam por condicionar o trabalho do comediante".

Histórias sérias

Entre os diferentes grupos de comediantes que fazem parte do cenário angolano Os Tuneza merecem maior destaque. Eles foram os primeiros a ter uma grande visibilidade em todos os meios de comunicação.

As abordagens divertidas sobre o dia-a-dia, a crítica de costumes, e a forte presença nas redes sociais e nas plataformas de partilha de vídeos na internet deram-lhes um elevado reconhecimento. Mas sem tocar nas elites. Constituído pelos actores Daniel Vilola "Costa", Orlando Rodrigues, GilmárioVemba, Cesalty Paulo, José Chieta "Tigre", "Os Tuneza" nasceram em Março de 2003 como grupo humorístico, sendo o resultado da junção de vários elementos que integravam o extinto grupo de teatro "Colectivo de Artes Tuneza Teatro".

As suas exibições iniciaram-se no Miami Beach, em Luanda. Apresentaram um espectáculo de stand- -upcomedy cujo êxito despertou o interesse dos promotores culturais angolanos. O ponto alto foi atingido com presenças regulares, primeiro na Rádio Luanda, onde o sucesso com o programa "Chibados da Vida" se transforma num convite directo para apresentarem o programa "Fora de Série", na TPA 2, passando pela Rádio 5 e continuando depois na TV Zimbo.

Hoje em dia fazem, todas as quintas-feiras, um espectáculo no Belas Shopping. Calado Show é outra das figuras da emergente stand-upcomedy angolana. A influência teatral e dos grupos de teatro também é evidente. E histórica porque vem das raízes da comédia e do stand-upcomedy. Adão Jinga, ou Kunandembo, começou por fazer parte de um grupo de teatro da Maianga ("Makamami").

"Gosto de falar de mim, de satirizar a sociedade e o nosso dia-a-dia. Gosto de me satirizar a mim próprio, de falar das minhas coisas, mas com piada", explica o humorista. Já Timajó explica que vem de "uma família que gosta de estigar". "Desde os 7 anos que gosto de contar anedotas.

Mas sobretudo as minhas influências vieram dos encontros de família. Até hoje é completamente normal juntarmo-nos para fazer piadas e estigar os sobrinhos, tios e restante família", conta entre sorrisos. Timajó tem alguma experiência acumulada: primeiro no seio familiar, depois com o grupo Levarte - que também tem dinamizado este tipo de actividades - e agora com o Gozaqui.

Já passou pela Esplanada Alvalade, pelo bar Floresta Lounge (onde o colectivo Gozaqui começou por se apresentar) e agora está no Espaço Bahia. "Para além da família, durante o ensino médio convivi algum tempo com um colega conhecido como Bob Dollar. Nos anos 90 ele fazia um jornal comunitário no Mutu-ya-Kevela que eu apreciava bastante", lembra Timajó.

Actualmente gosta do humor inteligente de Lord Nilo e Mauro Sérgio, que também costumam participar como convidados no Gozaqui. A sala térrea do Espaço Bahia costuma ficar quase cheia. O cenário é montado de forma simples mas acolhedor.

Com pouca luz. Algumas velas ao fundo complementam o olhar. Os frequentadores são, na sua maioria, jovens na faixa dos 20-30 anos. Riem-se com as piadas, interagem com os comediantes, fazem comentários. Comem e bebem.

No meio da apresentação de Timajó, que já tinha beliscado com piadas os serviços bancários, a TPA, os grupos religiosos, o processo de comercialização nas novas centralidades e a educação, surge a sátira política sem rodeios: "Hoje não estou a falar muito porque estão a atirar as pessoas aos jacarés". As gargalhadas foram sonoras.

Para fazer rir é preciso técnica

Ao contrário do que se possa pensar, a comédia é dos géneros mais difíceis de fazer. E implica alguma técnica, sobretudo na preparação dos textos e das chamadas "punch-lines" - que é a designação da resolução da piada, daquilo que dá graça ao texto.

É o final inesperado que dá o tom humorístico à apresentação. Até chegar ao final, à punch-line, é preciso pensar numa ideia e desenvolvê- la. Estas actividades resultam de um misto de atenção ao contexto, facilidade em agarrar uma ideia e boa pesquisa. É fundamental fazer uma boa pesquisa para construir boas piadas.

Em Angola não há formação superior de teatro. Por isso, a forma de aprender a fazer é mesmo na tarimba, no palco, no dia-a-dia. Testando fórmulas, a família e os amigos. Durante os espectáculos de stand-upcomedy no nosso país é fácil constatar que muitos dos comediantes não dominam este tipo de técnicas. "É preciso muito treino, muito ensaio e bastante leitura. Uma das dificuldades que encontramos é precisamente neste aspecto", destaca Tiago Costa, organizador dos eventos Gozaqui.

"A vida em Luanda não é fácil. O humor não paga contas a menos que a pessoa tenha imensos anos de estrada. O que não acontece com todo o elenco. Assim sendo, entre conciliar o trabalho ou os estudos com o humor, mais as dificuldades do dia-a-dia, confesso que deve sobrar pouco tempo para que se apresente uma linha com cabeça, tronco e membros", explica Tiago Costa.

Os comediantes vão aprendendo também com os vídeos disponíveis na internet. A comédia e o stand-upcomedy são das actividades que mais tráfego aglutinam no mundo virtual. Adão Jinga, o Kunandembo, destaca estes factores.

O que é a stand-up comedy?

A comédia ao vivo ou stand-upcomedy, como é mais conhecido, é um estilo em que um comediante se apresenta em frente a uma plateia ao vivo. Que fala directamente para a assistência. Na comédia stand-up do comediante geralmente recita um agrupamento rápido de histórias engraçadas, piadas curtas ou monólogos. Alguns comediantes usam adereços, música ou truques de magia para melhorar os seus actos.

O género stand-up comedy é frequentemente realizado em clubes de comédia, bares, discotecas, faculdades e teatros. No stand-up comedy o "feedback" do público é imediato e crucial para o acto do comediante. O público espera o comediante para fornecer um fluxo constante de risos. Esta pressão pode ser emocionante mas também ameaçadora.

O actor de comédia norte-americano WillFerrell diz que o stand-upcomedy pode ser "duro, solitário e cruel". Os primeiros actos de stand-up são relatados em países como a Inglaterra ou os Estados Unidos ainda no século XIX. Sobretudo relacionados com actividades teatrais ou ligados à comédia tradicional. Muitos dos autores deste tipo de espectáculos também enfrentaram a censura e as divergências políticas.

Em África, a tradição oral influenciou certamente o desenvolvimento deste tipo de capacidades mas nos últimos anos o género dispersou-se um pouco por todas as principais cidades do continente, juntamente com os grupos de leitura e declamação de poesia e as actividades de intervenção social ligadas ao género "spokenword".