A equipa de reportagem do NJOnline visitou a zona industrial do estabelecimento prisional de Viana e falou com empregadores, reclusos e responsáveis do Serviço Penitenciário. "A experiência é positiva", garantem todos.
Acompanhados pelo director do Gabinete de Comunicação Institucional e Imprensa do Serviço Penitenciário (GCII-SP), subcomissário Gomes Pinto, e por membros do seu gabinete, visitámos a "área de produção".
Gomes Pinto vai dizendo que a finalidade do trabalho em contexto profissional é que os reclusos adquiram competências para exercer uma actividade, já que muitos deles nunca o fizeram antes.
Para o subcomissário não estamos apenas a falar de reinserção, mas de inclusão, "de preparação para a vida, dando ferramentas a muitas pessoas que, antes desta experiência, não conheceram outra vida que não a da violência".
O NJOnline fica a saber que todos os reclusos que trabalham na zona industrial da Comarca de Viana são remunerados de acordo com a lei penitenciária angolana.
"As empresas que contratam os presos pagam ao Estado através do Ministério do Interior, que por sua vez paga aos reclusos. Mas o pagamento não é feito de forma directa, ou seja, não é o preso quem recebe o salário, mas um dos seus familiares, desde que indicado legalmente por ele", explica a equipa do Gabinete de Comunicação Institucional e Imprensa do Serviço Penitenciário, acrescentando que "no caso de o recluso não querer que alguém receba a sua remuneração, esse valor fica na posse da área financeira do estabelecimento prisional e pode ser solicitado para despesas pessoais ou ir acumulando para ser entregue quando o preso em questão terminar de cumprir pena".
Dos galénicos à carpintaria já se formaram mais de mil
"Sejam bem-vindos à nossa fábrica", disse-nos logo à chegada Júlio Guedes, director administrativo e financeiro da empresa G-Medical, a primeira porta onde batemos.
Júlio Guedes (na foto acima) explicou que a G-Medical é uma empresa de direito angolano, a funcionar naquele estabelecimento desde 2015, que se dedica à produção de galénicos e cosméticos, como água de rosas, óleos de rícino e de amêndoas doces, vaselina, champô para eliminar piolhos, e sabonete de alantoína, utilizado pelos hospitais como desinfectante.
Há mais empresas, uma de confeccões e outra de serralharia e carpintaria, que, por junto, já formaram mais de mil reclusos.
O luso-angolano conta que há 10 mulheres a trabalhar na fábrica e que uma delas foi contratada depois de cumprir pena e hoje está a trabalhar na área das vendas.
"Os produtos são fabricados em escala reduzida, mas pretendemos aumentar a produção", disse Júlio Guedes, referindo que os produtos são vendidos a nível nacional.
Durante a conversa, salientou que a empresa tem duas grandes missões na zona industrial: a de substituir a importação e a de promover a solidariedade social, o que é concretizado, segundo o responsável, através da formação das reclusas.
"Quando saírem, qualquer delas está em condições de ir trabalhar para uma empresa sem problema nenhum. Porque aqui, para além da formação profissional, aprendem a cumprir regras e horários, e também a socializar", afirmou.
"As reclusas são remuneradas de acordo com a lei. Pese embora o salário seja baixo, permite-lhes de alguma maneira dar um apoio à família que está lá fora ou comprar alguma coisa de que precisam, e, por vezes, até a pagar as multas que lhes são aplicadas pelo tribunal", explicou.
Das reclusas que trabalham na G-Medical, acanhadas com a nossa presença, e sob o olhar atento, mas distante, dos guardas prisionais, apenas uma aceitou falar com o NJOnline.
Ao contrário daquilo que se passa com os homens, as mulheres que são inseridas no programa estão presas por homicídio, diz-nos um dos elementos da equipa.
"A maior parte das mulheres que vem parar aqui matou o esposo depois de anos de violência doméstica", esclarece.
Não é o caso de Maria Nora, 40 anos, a única reclusa que aceitou falar: "Estou presa há nove anos e trabalho na G-Medical, na área de apoio, há quatro. Estou a cumprir pena de 18 anos pelo crime de homicídio contra o meu enteado".
Conta que desde que trabalha na empresa muita coisa mudou na sua vida.
"Já consigo enviar dinheiro para os meus filhos. E nunca mais penso em repetir o crime. Aqui, aprendi a respeitar as pessoas e cuidar bem das crianças", garante.
"Tenho uma filha de 18 anos, e o pouquinho que recebo já dá para a ajudar, infelizmente só não vou conseguir pagar a indemnização que o tribunal me aplicou, de um milhão de kwanzas para a parte lesada. Mas que está a me fazer bem trabalhar aqui, está", acentua
A "mãe" Rosa
De seguida, a nossa equipa deslocou-se até à fábrica de confecções Marave, um local onde as pessoas trabalham com calma e eficiência. O espaço enche-se de fardas azuis e verdes com distinções nas costas dos uniformes: verde para os ex-reclusos, azul para os que ainda estão em regime fechado.
A fábrica produz roupas, fardamentos, lenços, lençóis, toalhas e botas. Os produtos são vendidos em diversos hipermercados, clínicas, hospitais, empresas de limpeza e de construção.
A ideia inicial, segundo Rosa Correia (na foto acima), era o projecto ser apoiado pelo próprio Ministério, mas veio a crise financeira e acabaram-se os apoios. "E nós entrámos com meios próprios e aqui estamos a trabalhar", explica.
A directora-geral da empresa, a quem reclusos e ex-reclusos tratam carinhosamente por "mãe", diz-nos que a fábrica existe há mais de 30 anos, mas a sua actividade no complexo prisional de Viana começou em 2015, através do programa Novo Rumo, Novas Oportunidades.
"Nós somos mais de 50 pessoas, trabalham neste momento 27 reclusos e mais de 20 ex-reclusos. Gostaríamos de crescer mais, infelizmente o espaço é pequeno", disse Rosa Correia, que ambiciona ter uma área maior naquela zona industrial.
Numa conversa aberta com o NJOnline, a directora da Marave explicou que já perdeu a conta aos reclusos que formou.
"Foram muitos os que passaram por aqui, até já perdi a conta. Nunca recebi nenhum deles que já soubesse trabalhar, aprendem tudo connosco e jamais dizemos que não serve", contou.
Até à data, prosseguiu Rosa Correia, também nunca desistiu ninguém.
"Muitos são soltos e no dia seguinte estão aqui, às 8:00, para trabalharem, não querem largar esta oportunidade porque aqui têm alimentação e são-lhes pagos os salários mensalmente", explicou.
"Quando se apercebem que vão ser soltos, a primeira coisa que fazem é dizer: "Mãe, amanhã estarei aqui para trabalhar", não querem largar o projecto", disse com emoção a mulher que chegou a Angola vinda de Portugal há mais de duas décadas.
"As pessoas não se importam de ser costureiros, é fundamental que o Estado não deixe morrer este projecto porque seria uma pena muito grande", disse, realçando que a empresa tem uma função social muito forte.
"Muitos, desde que trabalham na empresa constituíram famílias, alguns já estão a construir casas com o dinheiro que levam daqui. Esta é uma grande oportunidade para eles. É preciso que nos apoiem para que consigamos dar mais empregos. Não faz sentido o Ministério do Interior importar roupas, nomeadamente para os reclusos, fardas e outras coisas, quando poderiam ser produzidas por eles", apontou.
"Vamos deixar de ter ilusões", continuou, "em muitos Países, 99 por cento da população, sem grande instrução, tem nas confecções uma forma de estar e de trabalhar. Angola levou o rumo que levou, as confecções fecharam, hoje é preciso reabilitá-las e pôr os jovens a trabalhar. Nós, em Angola, não temos uma indústria de moda, é preciso colocar os jovens a trabalharam em confecções", disse. E acrescentou: "Na verdade, é possível fazer em Angola trabalhos de qualidade. Antigamente, a 'Califa' não fazia uma camisa em Portugal, eram todas feitas em Angola e exportadas para o mundo inteiro".
Ao NJOnline contou que já passaram pela Marave polícias, um engenheiro e o gerente de um banco, entre as centenas de jovens que foram formados pela empresa.
"Eu trato todos por igual. Apesar das histórias que me fazem chorar muitas vezes, exijo, mas também os ensino e os ajudo a aprender um ofício".
Isso mesmo confirmou Baptista Elias, de 22 anos, funcionário da empresa MARAVE. É ex-recluso e cumpriu uma pena de dois anos na Comarca de Viana pelo crime de porte ilegal de arma de fogo.
Agora, em gozo da liberdade e feliz com a profissão de costureiro, contou que hoje é um cidadão renovado e que deixa agradada a sua família.
"Quando fui solto, os meus familiares não acreditaram que tinha um emprego que consegui na cadeia. No dia seguinte à minha soltura, eu disse-lhes que ia trabalhar na Comarca, mas eles não acreditaram, pensaram que estava a voltar para a má vida. Não queriam me deixar sair, mas com o tempo eles acreditaram que estou a trabalhar e gostaram", contou.
"Hoje, depois de ter cumprido a pena, trabalho aqui há um ano. E a coisa mais importante que aprendi foi fazer desenho nas roupas. O que mudou em mim são as atitudes, sou um homem novo e gosto de aprender", detalhou Baptista Elias.
Martins Serafim Bastos, 27 anos, também funcionário da empresa MARAVE, tal como Baptista, cumpriu pena de dois anos de prisão e também pelo mesmo crime. E lembra-se de como foi contratado por Rosa Correia, directora-geral da empresa.
"Quando saí da prisão, já não procurei trabalho noutro sítio a não ser aqui. Porque o coração estava aqui, quando ainda trabalhava como recluso, já falava dentro de mim... Será que quando eu sair a dona Rosa vai-me aceitar de volta? Saí numa sexta-feira e na segunda regressei. Para minha surpresa, a dona Rosa empregou-me. Hoje eu e a minha família estamos felizes e levamos uma vida normal".
"Com o dinheiro que acumulei aqui, no tempo em que fui recluso, pude comprar um terreno e estou a organizar a minha vida e sinto que tenho futuro", concluiu.
Fazer cá dentro o que parece ser feito lá fora
"Os reclusos que trabalham aqui têm aprendido e fazem coisas que muita gente lá fora pensa que estão a ser feitas no exterior".
Estas são palavras de Rui Magalhães (na foto abaixo), o responsável pela serralharia e carpintaria da zona industrial da Cadeia Central de Viana, que explicou como a empresa está a passar por um período de restruturação devido à crise económica que o País atravessa.
A trabalhar na Comarca de Viana há 10 anos, diz que a empresa já formou cerca de meia centena reclusos, tendo contratado para os quadros da empresa mais de 20.
"Aqui o recluso fica quase em liberdade e só vai para a caserna no fim do dia. Temos mais de 20 ex-reclusos, todos contratados, que trabalham nos nossos estaleiros no km 46, aqui em Luanda. A nível do presídio temos cinco, que já trabalham connosco há muito tempo e não conhecem outro patrão", afirmou, afiançando que muitos destes homens, quando saírem da prisão, estarão preparados para trabalhar em qualquer empresa.
"Na verdade, os reclusos que trabalham aqui fazem coisas que muita gente, lá fora, pensa que foram feitas no exterior do País", comentou.
Rui Magalhães defende que o Estado, através do Instituto Nacional do Emprego e de Formação Profissional (INEFOP), reconheça e passe diplomas de formação aos reclusos que por ali passam.
"Porque não basta dizerem que aprenderam a profissão X. É preciso mostrar também documentos", precisou.
O NJOnline falou também com Vladimir Alberto Kissanga, de 23 anos, a cumprir uma punição de cinco por furto e que já vai no segundo ano da pena.
"Aprendi muita coisa, desde a preparação, selecção, corte e várias outras coisas aqui na carpintaria. Quando soube que vinha para esta área me senti muito feliz, porque tinha a noção de que vinha aprender uma profissão. Quando cá cheguei não sabia fazer nada e agora já sinto que tenho uma profissão que vai me ajudar quando sair daqui", declarou.
O critério da selecção dos reclusos
O subinspetor prisional Adriano Manuel, chefe de secção de assistência e reabilitação penitenciária da Comarca de Viana, explicou ao NJOnline como é feito o processo de selecção dos reclusos.
Segundo Adriano Manuel, o critério mais importante para se selecionar um recluso no sistema penitenciário é a disciplina.
"Mas antes passam por muitos processos de avaliação por parte das equipas que trabalham nos blocos prisionais. Dentro destas equipas encontram-se os reabilitadores, psicólogos, controladores da ordem interna e os enfermeiros", explicou, acrescentando que "o enquadramento é feito somente aos reclusos condenados, porque já têm a sua situação definida, mas depois de cumprirem uma boa parte da pena".
O chefe de secção de assistência e reabilitação penitenciária referiu que, após o cumprimento da metade da pena, eles (os serviços prisionais) fazem uma avaliação que lhes permite saber quais são as aptidões que os reclusos apresentam.
"A secção de reabilitação elabora as propostas e faz uma convocatória, o director do estabelecimento define a data e a comissão de análise chama os reclusos e avalia as condições física e psicológica para exercerem as funções".
Porém, prossegue o subinspetor prisional, "neste processo há muitas reprovações porque os condenados apresentam características não muito adequadas às empresas".
"No processo de avaliação que fazemos, também colocamos em causa o crime praticado pelos reclusos. Porque temos de perceber se esse recluso é um potencial criminoso ou se foi um acidente de percurso", expõe.
Outro critério levado em conta pela direcção dos Serviços Prisionais, no processo de selecção, é a tipologia dos crimes. A norma penitenciária proíbe que as unidades enquadrem directamente reclusos que tenham cometidos crimes contra as pessoas, ou seja, crimes de sangue.
Adriano Manuel frisou, durante a conversa, que mais de mil reclusos já passaram pela zona industrial.
Quanto à certificação da formação dos reclusos, o chefe de secção de assistência e reabilitação penitenciária da Comarca de Viana disse que existe um acordo entre o INEFOP e o estabelecimento prisional para que se passe a certificar as formações.
"Os da Cadeia de Kakila, no Ícolo e Bengo, já começaram a receber os seus certificados de formação profissional, e essa actividade também vai começar, no próximo ano, aqui em Viana" precisou.
Segundo Adriano Manuel, há muitos reclusos que querem fazer parte deste projecto.
"Esta área é profissionalizada, coisa que não acontece com os reclusos que estão nas oficinas de aprendizagem de artes e ofícios. Ali é somente um processo de aprendizagem, já aqui, os reclusos choram para ver porque sabem que é uma forma de sustentar a família lá fora", relata.
"Tivemos reclusos que no fim da pena saíram com o seu dinheiro, por isso há muitas solicitações. Só que, verdade seja dita, não temos capacidade de colocar a funcionar a maior parte dos pedidos. Gostaríamos muito, porque o recluso quando tem trabalho, menos trabalho dá ao próprio processo reabilitativo", concluiu.
Trabalham actualmente na zona industrial da Comarca de Viana cerca de 110 elementos da população prisional, apesar de as instalações terem capacidade para formar até 500 reclusos.