Para António Coelho, "se já era notada a falta de vontade política no envolvimento na luta contra a SIDA antes da Covid, com a Covid a questão ficou ainda mais complicada".
"O foco do Estado é a Covid-19 e doenças como a SIDA e a malária, que tanto matam em Angola, passaram para segundo plano", continua o rosto mais visível da ANASO, que está no terreno desde 1994, tem 315 organizações espalhadas pelo País e um universo de 5.800 activistas a trabalhar como voluntários.
"Precisamos de um sistema sanitário mais organizado e melhor estruturado", declara. "O nosso, infelizmente tem debilidades visíveis, e temos o problema da falta de resposta social. Noutros países, os ministérios de acção social criaram apoios sociais para as pessoas que vivem com HIV, mas aqui tal não sucedeu. Passam fome, estão na miséria, agora assustadas com a Covid-19".
Do ponto de vista da coordenação da resposta à doença, diz António Coelho, "o País vai mal" porque "a resposta é politicamente liderada pela Comissão Nacional de Luta Contra a SIDA, que não funciona, e que é coordenada pelo Presidente da República, que delegou competências no vice-Presidente Bornito de Sousa".
"É preciso reconhecer que, ao contrário de outros países da região, nós somos um País onde as lideranças políticas são fracas na abordagem do HIV", acrescenta. "O Presidente da República nem sempre está presente, salvo para cortar fitas, e o vice-Presidente tem limitações do ponto de vista da intervenção..."
António Coelho lembra que o papel do Governo é o de definir políticas nacionais convincentes que permitam uma melhor qualidade de vida e bem-estar aos portadores da doença e um maior equilíbrio social para as respostas que se pretendem.
"Nesse aspecto o Governo não tem estado bem. Existem algumas políticas públicas, há um plano estratégico nacional, mas há dificuldades na implementação desses planos porque o apoio que o Governo deve dar aos parceiros operacionais, que são as organizações da sociedade civil que estão no terreno, não existe", explica.
O secretário executivo da Rede Angolana das Organizações de Serviços de Sida e Grandes Endemias queixa-se de que não há fundos do Governo para a luta contra a SIDA no plano da prevenção.
"Os únicos apoios do Governo são no que respeita à medicação, que também falham, como se tem visto", afirma.
"A ONU SIDA, que é a agência das Nações Unidas que nos dá apoio técnico, que faz mais advocacia e fala com os governos para que mobilizem apoios e depois faz a ponte com as organizações da sociedade civil. Aqui têm estado bem, mas estão sempre em cima do muro, para não criarem outros problemas de ordem política, mas ainda assim nós percebemos", declara.
"Governo fez mal o trabalho de casa"
Para António Coelho, o Governo não adquiriu a tempo as quantidades necessárias de retrovirais, o que tem provocado vários constrangimentos.
"Agora estamos a olhar para países mais organizados, como o Zimbabué ou Moçambique, a ver se nos podem fazer algum empréstimo para podermos gerir esta situação", conta. E acrescenta: "Foi criada recentemente pela ministra da Saúde uma comissão para tratar da questão dos retrovirais, liderada pelo Instituto Nacional de Luta contra a Sida, que integra a ANASO e a ONU SIDA. Temos estado a visitar os armazéns de medicamentos e as unidades de saúde, e de facto a situação é alarmante. As unidades de saúde já estão em ruptura, não ruptura a nível do País, a nível da unidade, que é o que conta.".
A taxa de abandono dos tratamentos também é altíssima. António Coelho calcula que a percentagem ronde os 54%, ou seja, "em cada 100 pessoas que no princípio do ano entram para o tratamento, no final do ano 54 desistiram".
"As pessoas estão a abandonar o tratamento por duas razões: a alimentação, pois mais de 85% das pessoas que vivem com o HIV SIDA são de baixa renda, têm problemas gravíssimos de alimentação. Temos estado a distribuir algumas cestas básicas mas isso não resolve o problema. As drogas são muito fortes, requerem uma alimentação saudável, algo a que eles não têm acesso", explica.
"Por outro lado", acrescenta, "temos o problema das unidades de saúde serem muito distantes, e, de acordo com os últimos dados recebidos, a medicação que está a ser dada nas unidades de saúde é apenas para 10 dias".
Coelho explica que, antes do surgimento da Covid-19, as pessoas iam às unidades sanitárias de três em três meses, mas nesta altura estão a receber medicação apenas para dez dias.
"Quer dizer que têm de ir de dez em dez dias buscar medicação", explica. "Se por um lado as pessoas não têm dinheiro para ir de dez em dez dias da sua comunidade até a uma unidade sanitária, por outro, com a chegada da Covid, porque essas pessoas são de alto risco, a orientação é que elas não devem ir às unidades sanitárias", relata, para dizer que a ANASO estava a tentar implementar o programa "Corrente da Vida", que visa sobretudo fazer chegar alimentação e medicamentos a essas pessoas no domicilio, mas não está em execução.
"Apesar de não haver ruptura, há limitações, e, como estamos a viver um mau momento, de Março a Agosto, o País teve uma ruptura nos medicamentos de segunda linha. Foi parcialmente resolvida, mas há a limitação da medicação para dez dias", esclarece.
Questões culturais comprometem a luta contra a SIDA
Segundo António Coelho, "infelizmente explora-se muito pouco os aspectos de foro cultural, sobretudo porque o próprio Ministério da Cultura funciona mal".
"Nós temos estado a tentar despertar o ministério por causa dos aspectos culturais que comprometem a luta contra a SIDA, mas sentimos que o ministério tem debilidades visíveis muito grandes", explica. "Quando visitamos as diferentes comunidades, falamos com as autoridades tradicionais, com as autoridades comunitárias, os sobas, etc, e sentimos que há muito desconhecimento, muita desinformação..."
Para salientar que há um longo caminho a percorrer, António Coelho dá alguns exemplos: "Se olharmos para a província do Cunene, o cidadão visitante, quando chega à província tem direito a uma mulher a custo zero, faz parte dos rituais, não importa se a mulher está ou não interessada. Nas Lundas, quando morre o marido, a viúva tem de fazer sexo sem preservativo com um dos irmãos do falecido, não importa se ele tem SIDA ou não".
"Mas", acrescenta, "vamos continuar a trabalhar, o compromisso mantém-se, e é preciso o envolvimento de todas as pessoas, das comunidades, e aqui reconhecemos a grande intervenção, quer do ponto de vista político quer do ponto de vista de intervenção comunitária que trouxe a primeira-dama com o projecto 'Nascer livre para Brilhar', que na nossa opinião poderia ter resultados muito mais positivos, uma vez que estamos a falar da primeira-dama da Republica, que tem disponibilidade financeira e disponibilidade política, mas infelizmente continua escondido, com muitos problemas de visibilidade, muito ruído na comunicação, problemas também de articulação", realça.
"Nas províncias, as primeiras-damas estão com dificuldade em liderar o processo, mas nós, enquanto actores envolvidos nesta luta, vamos também tentar aproveitar melhor o envolvimento e a contribuição da primeira-dama neste processo", continua o porta-voz da ANASO.
O secretário executivo da associação diz que os angolanos continuam a infectar-se e a morrer por causa da SIDA e que "aqueles que mais contribuíram para a disseminação do HIV em Angola foram os senhores de gravata que se aproveitaram das dificuldades sociais das pessoas para fazerem caminho".
"Lutar contra a SIDA pressupõe atacar esse grupo específico que tem a responsabilidade de contribuir para uma maior disseminação da doença. Estamos a falar de pessoas com saúde financeira, e quase todas as pessoas com saúde financeira em Angola já praticaram esse tipo de acto, comprometendo a luta contra a SIDA. E nós temos testemunhos vivos", ataca António Coelho, para depois dizer que os trabalhadores de sexo estão a aumentar consideravelmente no País.
"Neste momento calcula-se que haja 37 mil trabalhadores, entre mulheres e homens, espalhados pelas várias províncias do País, com predominância em Luanda", revela.
"Temos estado a trabalhar com este grupo específico através de várias organizações no sentido de prepará-los para, sempre que possível, possam negociar sexo seguro, usando preservativo nas relações sexuais, mas nem sempre temos os resultados que pretendemos, precisamente por causa da fome e da miséria. As pessoas preferem morrer de SIDA do que de fome"
Os clientes continuam a preferir sexo inseguro e pagam para isso, revela António Coelho.
"Fundamentalmente as pessoas que têm alguma saúde financeira, ou seja, pagam mais e têm estado a promover aquilo a que chamamos contaminação dolosa, ou seja, transmissão consciente do vírus", explica.
"Em Angola, os factores que determinaram o surgimento e a continuidade da SIDA como uma doença de saúde pública até hoje continuam presentes", diz António Coelho. E acrescenta: "Factores como a pobreza, a desigualdade de género, a falta de informação e outros de ordem cultural continuam presentes. Infelizmente, apesar do esforço dos actores-chave na luta contra a SIDA, essas determinantes continuam presentes".
Mas houve avanços, mesmo em Angola, salienta Coelho: "Do ponto de vista do tratamento dos grupos minoritários, como os LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgéneros), as trabalhadoras de sexo, os camionistas e os presidiários, houve alguns progressos".
Já temos uma organização que foi reconhecida no âmbito dos direitos humanos, que é a IRIS, que tem estado a fazer uma grande intervenção no combate à SIDA, mobilizando e trazendo a comunidade para o despertar necessário. E, sobretudo, já há um maior respeito pela orientação sexual dessas pessoas. Naturalmente que ainda há muito trabalho pela frente mas vamos continuar a fazê-lo.
António Coelho diz acreditar que "estão lançadas as bases".
"Ao nível das trabalhadoras de sexo, apesar de a profissão não ser reconhecida, elas estão mais conscientes dos seus direitos e das suas responsabilidades", afirma. "Têm estado a criar grupos de entre-ajuda, que repassam a experiência de como viver positivamente com HIV e como lidar com a SIDA em tempo de Covid-19, sobretudo em Luanda e Benguela, mas vamos continuar a lutar para estar presentes nas restantes províncias."