Quando alguém vive há tanto tempo, há 112 anos, numa geografia como a província do Cunene e garante que nunca assistiu a nada semelhante é porque a gravidade da situação é séria para todos aqueles que afecta agora mas deve ser encarada ainda de forma mais atenta para aquilo que pode representar no futuro, se nada for feito.
"A água é o que de mais importante existe do mundo", diz o ancião, que o seu Bilhete de Identidade prova, e os seus vizinhos mais velhos confirmam, ter nascido sete anos antes da I Guerra Mundial, mas, sublinha o jornalista Marco Prates, na reportagem publicada na página do UNOCHA (Escritório das Nações Unidas para a Coordenação dos Assuntos Humanitários), água é coisa que não se vê há muito em largas áreas das províncias do sul.
Os dados, que o NJOnline tem noticiado ao longo dos últimos três anos, como pode ser lido aqui, aqui ou ainda aqui, são igualmente sublinhados nesta reportagem, como é o caso dos 2,3 milhões de pessoas directamente afectadas por esta prolongada seca, cujas razões estão, no essencial, ligadas às alterações climáticas e as suas nefastas consequências nas quatro províncias austrais: Kuando Kubango, Huíla, Cunene e Namibe, com impacto sentido ainda no Bié.
Pelo menos meio milhão das pessoas afectadas pela seca nesta geografia angolana são crianças com menos de cinco anos, que vêem assim aumentar dia após dia o risco de acrescentarem à falta de alimento e água, o risco de abandono escolar forçado porque o esforço de procura de água das comunidades não permite dispensar os mais pequenos para irem à escola, visto que, por vezes, encontrar água significa largas horas de caminho.
Nesta reportagem é sublinhado o facto de a chuva ter, mais uma vez, estado ausente nos primeiros meses do ano, quando era fundamental para o sucesso da produção agrícola, que constitui os alicerces da sobrevivência das populações desta parte austral de Angola, sendo ainda de igual monta o impacto na criação de gado.
Esta realidade levou a que o número de pessoas afectadas e a sentir na pele o risco e o perigo inerentes à insegurança alimentar triplicou nesse período de três meses, de cerca de 250 mil para mais de 850 mil.
Educação está igualmente a secar
Citado nesta reportagem, Rogério Kakoi, director da escola primária de Ondobodhola, admite que a seca está a provocar sério impacto em mais de 70 por cento dos 214 mil estudantes da província do Cunene, onde existem 887 escolas primárias, das quais 667 foram já severamente afectadas no seu funcionamento normal.
"Os alunos já não têm energia para ir à escola e os que vão não estão a aprender como devia ser", diz, acrescentando que ele mesmo tem muitos alunos que passam as madrugadas a conduzir o gado para as esparsas fontes de água ainda existentes, o que deixa claro que não existe surpresa quando se olha para os dados e se percebe que 20 por cento dos alunos deixaram a escola desde o início do ano.
Para minimizar o impacto da seca, estão a ser colocados tanques de água de 5.000 litros nas comunidades afectadas, em locais estratégicos, de forma a reduzir as distâncias que as pessoas têm de percorrer diariamente.
Uma situação de gravidade em crescendo
O Escritório das Nações Unidas para a Coordenação dos Assuntos Humanitários divulgou a 26 de Setembro o último relatório das Nações Unidas/UNICEF sobre a situação humanitária em Angola gerada pela prolongada seca que afecta o sul do país, considerando que a situação está a piorar e a afectar mais as crianças e as mulheres.
O UNOCHA nota em mais um ponto de situação que a prolongada seca que abrange de forma mais severa as províncias do Cunene, Huíla, Kuando Kubango e Namibe está a provocar sérias dificuldades a 2,3 milhões de pessoas.
Nestes números da tragédia que abrange o sul do país, este departamento das Nações Unidas destaca o facto de entre os mais afectados estarem 491 mil crianças com menos de cinco anos inseridas num universo total de 1,2 milhões de crianças em risco..
A malnutrição moderada (GAM, na sigla em inglês) afecta 9.8 por cento da população tocada pelos efeitos nefastos da seca e a malnutrição severa (SAM, na sigla em inglês) já chegou a 5.6 por cento da população considerada em risco.
Os números são mais severos no Cunene e na Huíla, sublinha o UNOCHA, onde "70 a 80 por cento da população destas duas províncias do sul de Angola enfrenta situações de insegurança alimentar e tem a sua condição nutricional comprometida".
Alguns destes números não sofreram alterações em relação aos dados do último balanço, como o NJOnline noticiou, como é o caso das quase 200 mil crianças em risco de deixarem definitivamente o sistema de ensino e entrarem no desaconselhável universo do trabalho infantil, como, por exemplo, o pastoreio e a transumância animal em busca de água e de pastagens.
A ONU chama ainda a atenção para o facto de esta crise humanitária crescente está por detrás de um aumento dos casos de violência exercida sobre as mulheres, a deterioração das respostas no sector da saúde para resposta aos casos de doenças novas que resultam da seca, umas, outras apenas com mais facilidade de proliferação, como a pólio, o sarampo e a sarna.
Ainda segundo a mesma fonte, as agências da ONU e os serviços sanitários nacionais já observaram e ajudaram directamente 380 mil crianças com menos de 5 anos, mais de 68 mil crianças, entre os seis meses e os 5 anos, foram tratadas para fome severa.
Em curso estão ainda programas para minimizar os efeitos da seca nas mulheres, na saúde materno-infantil, no acesso à água potável das comunidades mais dispersas, programas de vacinação, de reunificação de crianças que perderam as suas famílias...
Para fazer face a esta dramática situação no sul de Angola, o UNICEF precisa de 14 milhões de dólares mas apenas conseguiu reunir entre os doadores cerca de seis milhões.
Recorde-se que na génese desta situação está uma das mais prolongadas e severas secas que afectam a África Austral, em décadas, e, por conseguinte, o sul de Angola surge entre as áreas afectadas.
O Governo já avançou com várias medidas para minimiza o impacto da seca, como novas barragens, apoio à distribuição de água e alimento para o gado e para as populações, mas o problema continua a acentuar-se.
Recentemente, a UNITA pediu que o OGE para 2020 contemple verbas suficientes para responder a esta situação, e que seja declarado o Estado de Emergência para as províncias do sul.