Foi já dentro do Air Force 1, o avião presidencial, que, na segunda-feira, Donald Trump, de forma explicita e sonora, disse: "Esta não é a minha guerra, é a guerra de Joe Biden".

A frase que ainda não tinha sido usada com esta frieza foi dita para voltar a frisar que continua empenhado em acabar com o conflito na Ucrânia, contra aquilo que é, ainda, a posição oficial da NATO, como voltou a insistir o secretário-geral da organização militar ocidental.

Com efeito, ao mesmo tempo que os EUA, que são responsáveis por mais de 55% do financiamento total da NATO, assumem cada vez com maior ênfase a "saída" de cena ucraniana, Mark Rutte foi a Odessa, uma cidade ucraniana próxima da linha da frente, segundo The Guardian, garantir que a organização transatlântica continua "totalmente empenhada" no apoio a Kiev.

Quase ao mesmo tempo, naquilo que está a deixar os aliados europeus dos Estados Unidos à beira de um choque térmico, The New York Times veio nas últimas horas largar uma bomba nas relações atlânticas ao divulgar a existência de um documento secreto que mostra que a Administração Trump se está a preparar para cortar quase todo o financiamento para a NATO.

Há muito, desde pelo menos 2019, quando, no final do seu primeiro mandato, Donald Trump admitia retirar os fundos norte-americanos à NATO, que os analistas sublinham que sem o dinheiro de Washington esta organização militar criada em 1949, no rescaldo da II Guerra Mundial, para travar os avanços da então URSS, não tem como se manter nos actuais moldes e capacidades.

O Departamento de Estado, que responde pela diplomacia norte-americana, já veio refutar as alegações do jornal nova-iorquino, embora a sua porta-voz, Tammy Bruce, depois de garantir que os EUA se mantêm empenhados na Organização do Tratado do Atlântico Norte, tenha admitido que onde há fumo há fogo ao afirmar que a Administração Trump quer ver a NATO como uma plataforma para evitar guerras e não para as promover, financiar ou combatê-las.

E, numa das outras frentes onde os EUA demonstram estar em contracorrente perante os seus aliados europeus é na retoma das relações com a Rússia, o que está a ser feito com sucessivas reuniões de alto nível entre delegações dos dois países, seja na Turquia ou na Arábia Saudita, ao mesmo tempo que Washington pressiona Kiev para ser mais flexível de forma a alcançar um cessar-fogo e um acordo de paz com Moscovo.

Além disso, no que enfureceu os líderes europeus, e em especial o Presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, que acusou mesmo o Presidente dos EUA de estar "ao serviço dos russos", Trump veio agora esticar ainda mais a corda afirmando que foram os ucranianos que começaram a guerra.

NATO e Washington quase de costas voltadas

A essa afirmação, num fervilhar de declarações que tornam o actual momento não apenas histórico mas também de difícil entendimento nos seus detalhes, colocando-se claramente contra o país que lidera e paga o funcionamento da organização de Defesa ocidental, o seu secretário-geral desafiou Trump em Odesa garantindo que "a NATO está solidamente com a Ucrânia", ainda que "será sempre assim" porque "a Rússia começou, sem dúvida alguma, esta guerra".

Além deste mau momento nas relações entre a NATO e os EUA, com Mark Rutte, que esteve em Odessa com Zelensky, a chocar de frente com Trump, num confronto que ainda, claramente, terá consequências subsequentes, o enviado especial do Presidente dos EUA para o conflito no leste europeu, Steve Witkoff, veio dizer publicamente, provocando a fúria do Presidente ucraniano, que a paz passará pela cedência territorial ucraniana das cinco regiões anexadas por Moscovo em 2014 (Crimeia) e 2022 (Lugansk, Donetsk, Kherson e Zaporizhia).

A resposta de Zelensky, em mais um desenvolvimento da já periclitante relação entre Kiev e Washington, foi que Witkoff, que é um amigo de longa data de Trump, "não tem qualquer autoridade para discutir com os russos questões territoriais ucranianas".

"A Ucrânia é um Estado soberano e os seus territórios são parte do Estado unitário da Ucrânia, o que garante que apenas o povo ucraniano pode falar destes assuntos", disse o chefe do regime ucraniano.

E a ideia de reconhecer que territórios ucranianos possam ser cedidos ao regime russo é "outra linha vermelha", garantiu, notando que quando Witkoff discute essas questões está "claramente a exceder as suas competências", como, de resto, já tinha feito há semanas, provocando um incómodo notado na Casa Branca, quando disse que o enviado de Washington "repete as narrativas do Kremlin".

O que é uma sugestão de que Washington está do lado de Moscovo na guerra com a Ucrânia, como reafirmou numa entrevista recente, assumindo que "as ideias russas estão a prevalecer" nos corredores da Casa Branca, ideia que voltou a cair mal na Presidência norte-americana.

Isso mesmo ficou claro com as palavras duras que o vice-Presidente J.D. Vance lhe dedicou de seguida, considerando que o que Zelensky disse "é um absurdo" e são palavras que "de certeza não são produtivas" na defesa dos seus interesses.

Os russos concordam com Vance

E isso porque, frisou Vance, é um absurdo Zelensky estar a dizer aos EUA, "que são quem sustenta o seu Governo inteiramente" bem como são quem mantém "o seu esforço de guerra intacto", que estão do lado dos russos, acrescentando que não há forma de acabar esta guerra sem "perceber onde estão os objectivos estratégicos dos dois países".

Isso mesmo parece ser também o entendimento dos russos, como fica claro na entrevista recente do ministro dos Negócios Estrangeiros, Sergei Lavrov, a um jornal de Moscovo, o Kommersant, onde este defende que é do agrado do Kremlin verificar que os norte-americanos estão a "tentar chegar ao fundo da questão e perceber as razies do coflito".

E aproveitou para relembrar alguns dos pontos essenciais para o Kremlin, como a questão da adesão de Kiev à NATO, afirmando que Trump está certo ao acusar o anterior Presidente, Joe Biden, de ter "cometido um erro colossal" ao tentar "arrastar a Ucrânia para a NATO".

Lavrov insistiu que a neutralidade de Kiev "é um dos pontos essenciais" das exigências russas para se caminhar para o fim deste conflito, ao mesmo tempo que volta a apontar como fundamental a "desnazificação e a desmilitarização do país", bem como o reconhecimento por Kiev de que as cinco regiões anexadas são parte integral da Federação Russa.

O já morto e enterrado cessar-fogo parcial "conseguido" pelos americanos há cerca de um mês, abrangendo "apenas" as infra-estruturas energéticas e o corredor marítimo comercial do Mar Negro, é outra frente em que Washington parece estar já de fora, como, de resto, tem ficado claro nas declarações de Trump sobre o mais recente episódio dramático.

Kiev acusa Moscovo de ter matado 35 civis e feridos largas dezenas num ataque "deliberado" a uma área civil, como afirmou Zelensky, tendo Trump reagido, diferentemente dos seus "aliados" europeus, de que se tratou de um "erro dos russos" ao dispararem dois misseis balísticos Iskander, sobre a cidade de Sumy, a escassas dezenas de kms da linha da frente.

Sobre este ataque, de Moscovo chegou uma versão diferente, garantindo o Ministério da Defesa que se tratou de um ataque a um concentração de oficiais ucranianos e estrangeiros (mercenários e oficiais de ligação da NATO) numa cerimónia de entrega de condecorações militares, onde foram mortos 60 oficiais militares seniores.

Uma e outra parte insistem na sua versão, mas há vários vídeos, ao que tudo indica, dessas explosões, que mostram pelo menos um dos dois misseis a explodir no meio de uma avenida, e no rescaldo da explosão não é perceptível a presença de militares entre as dezenas de mortos e feridos dispersos pela rua.

No entanto, a exoneração do governador de Sumy por Zelensky, tido como o organizador da cerimónia militar, acusado de negligência, vem dar lastro a versão de Moscovo de que o ataque visou um alvo militar legítimo e não enquadrado no cessar-fogo que, apesar de já inexistente, ainda não foi dado como abortado.

Este episódio serviu, porém, para Zelensky voltar a insistir com os seus aliados europeus para reforçarem o apoio militar ao seu país, pedindo especialmente novos sistemas de defesa antiaérea, novas sanções sobre Moscovo e o envio de mas força militar ocidental de dissuasão para os avanços russos, naquilo que seria a deflagração de uma guerra entre a Rússia e os países da NATO, com consequências devastadoras.

O fim da guerra, que com a chegada de Trump à Casa Branca, parecia estar a aproximar-se, está agora mais longe... pelo menos na retórica de Kiev.

Trump procura chegar a Putin sobre a Ucrânia a pensar em Pequim

Os líderes europeus, ou parte substancial deles, já perceberam que o objectivo da Administração Trump é normalizar as relações com a Rússia e que não vão criar um "irritante" com Putin por causa dos europeus, porque neste jogo de póquer está em cima da mesa muito mais que a guerra na Ucrânia, pode estar mesmo o equilíbrio da futura Ordem Mundial na qual Bruxelas é um interveniente menor.

Enquanto isso, a partir de Washington, Donald Trump, que já falou com Vladimir Putin e com Volodymyr Zelensky várias vezes, tendo-se referido a ambas como conversas "muito boas" e auspiciosas, mostrando que não precisa, mesmo que não tenha sido essa a intenção, dos europeus para nada.

Tem insistido como certo que em breve haverá um acordo de paz definitivo que será um passo curto na quilometragem diplomática, mostrando mais uma vez que os esforços europeus para se intrometerem neste processo negocial podem até ser malvistos em Washington.

A questão permanece: o que quer mesmo Donald Trump com esta "aproximação" a Vladimir Putin?

É cada vez mais evidente que em Washington, como o Novo Jornal tem vindo a abordar, se procura desligar Moscovo de Pequim e desmantelar a já famosa "parceria estratégica sólida como uma rocha" entre russos e chineses, como a definiu o ministro chinês dos Negócios Estrangeiros, Wang Yi, fundamental para quando chegar o momento do confronto decisivo entre os Estados Unidos da América e a República Popular da China.

Se, embora existam cada vez mais dúvidas entre os analistas, os EUA são ainda uma potência militar e económica superior à China, podendo contar com essa superioridade num eventual confronto, se tal suceder num momento e que Pequim e Moscovo estão juntos na sua parceria estratégica e "sólida como uma rocha", tal deixa de ser verdade.

É que face à capacidade industrial e produtiva chinesa, bem como os seus infindáveis recursos humanos, aliada aos inesgotáveis recursos energéticos, minerais e alimentares, ou a cada vez mais reconhecida capacidade tecnológica militar dos russos, os EUA perdem a vantagem.

Como já dizem há muito vários analistas, Washington procura nesta aproximação a Moscovo agradar a Putin com cedências na questão ucraniana de forma a levar os russos a amolecer a dureza da sua parceria estratégica com Pequim...

Até porque o tal momento do tira-teimas entre americanos e chineses parece estar já em cima da mesa de trabalho do Pentágono, como o deixa perceber a notícia de 20 de Março do norte-americano The New York Times, sobre um "briefing" que as chefias miliares terão feito ao dono da Tesla e da Space X, Elon Musk, sobre os planos para a guerra com a China.

Embora a notícia do NYT tenha sido desmentida pela Casa Branca, até porque seria ilegal Musk ser informado de tais planos se eles existirem de facto, considerando que não é parte da Administração mas sim uma espécie de contratado de Donald Trump, a verdade é que a preparação dos EUA para uma guerra com o gigante asiático antes que seja também um gigante militar global e imbatível, há muito que não é segredo para ninguém em Washington.