Actor e encenador com um currículo vasto e conhecimento mais do que abalizado da arte da representação, Miguel Hurst traça, nesta conversa com o Mutamba, o diagnóstico do teatro angolano e aponta as muitas zonas cinzentas que ainda pairam a céu aberto na cena artística nacional.

Recentemente, o cineasta e realizador Zézé Gamboa fez um comentário segundo o qual em Angola não há actores, facto pelo qual tem optado por trabalhar com actores estrangeiros. Há alguma legitimidade nesta afirmação?

Em Angola há actores. Eu percebo o Zézé Gamboa no que diz respeito à seriedade de um trabalho, a continuidade de um trabalho. Realmente abraçar a profissão actor aqui é complicado. Não dá para ser só actor. Talvez seja por aí que o Zézé abordou esse tema. Porque há actores, ele já trabalhou com vários actores e conhece os actores que cá existem. A verdade é que não podemos ainda fazer uma profissão na representação, porque não há condições que nos suportem.

Onde é que está, no fundo, o grande obstáculo?

Não há uma continuidade. Nós estamos sempre a fazer trabalhos pontuais. Quase todos os grupos fazem trabalhos não continuados, embora eles tenham sempre peças. Mas não há um suporte, nós não temos uma política cultural, que nos possa apoiar no sentido de termos sempre um trabalho constante e podermos contar com isso só como profissão. Temos que ser homens de sete instrumentos para se ser actor. Aqui não dá para ser só actor. É impossível.

O teatro, e referindo-nos concretamente aos actores, peca por esta pontualidade das obras?

Sim, peca-se por uma política pontual. Não temos uma política constante. Não temos uma política que nos apoie. Os grupos de teatro vivem sem apoio e isso, obviamente, não permite um actor ter uma continuidade no seu trabalho. Não temos boas escolas de formação para os actores. E, como tal, ser actor aqui é quase que impossível ser exclusivamente actor.

Luanda, hoje por hoje, está a crescer. Acha que esse crescimento é manco, uma vez que as questões artísticas e culturais não são tidas nem achadas?

Claro que o Estado há-de ter outras prioridades, mas não nos podemos esquecer da cultura. Não nos podemos esquecer do veículo que alimenta as nossas referências, que alimenta a nossa memória colectiva. E esta, sim, está a ser esquecida porque não temos espaço para exercer a nossa arte. Não existem. Não há uma aposta na construção desses espaços. Sim, neste aspecto, pode-se dizer que está manca. A cultura está a ser relegada não sei para onde…

Nem sequer ao certo se sabe para onde é que ela está a ser relegada…

Repare bem. A nossa cena cultural, como já disse, vive de coisas pontuais. Nós não sentimos a nossa cultura como tal. Não sentimos a nossa expressão artística como tal. De vez em quando, alguém faz alguma coisa e depois há outra vez o vazio, até que venha o outro fazer mais uma outra coisa. Portanto, não temos um suporte de tradição, suporte de lógica e de política cultural. Não existe.

É uma malha sem elo? É, sim, uma malha sem elo.

Em tempos, afirmou que em Angola não havia teatro, referindo-se ao espaço. O Miguel está hoje a fazer uma constatação que é sobejamente conhecida por todos. Acha que a voz dos artistas não é ouvida?

Acho que a nossa voz é ouvida. Muito pouco, mas tem sido ouvida. Senão várias manifestações culturais não teriam acontecido, falo na Trienal de Luanda metemos outros núcleos mais jovens que hoje em dia também já se encaminham para tornar efectiva e tornar viva essa nossa cena artística. Somos poucos ouvidos. Não nos levam a sério. Quem é que nos representa no Parlamento? Quem é que nos representa nos partidos? Não conheço nenhum artista que esteja bem representado nalgum partido. Nós vivemos dos partidos. Vivemos numa sociedade democrática…

Acredita que o teatro precisa dessa partidarização ou pelo menos desta politização das artes?

Sem as políticas nós não conseguimos avançar. E o mundo tem-se feito por várias políticas, quer seja de esquerda, direita, absolutista ou não. Agora, não é arte tem que se politizar. A política tem que criar caminhos e elos para que a cultura e arte se possam afirmar.

Neste momento há um caminho possível para o qual se possa encaminhar para se tornar as coisas possíveis. Eu não conheço. Há um apoio do Ministério da Cultura, um apoio irrisório. Entra tudo no mesmo saco. Não me parece que isso seja um caminho para se revolver problemáticas que as várias expressões artísticas vivem. A música anda por si só, é uma indústria. Temos hoje em dia as artes plásticas muito bem representadas, e cada vez mais no exterior. Mas depois o resto cai num saco roto. Sem formação, sem estruturas de apresentação não podemos defender as nossas artes perfomáticas. Nem teatro, nem dança, nem cinema.

Olhando para este quadro que traça, a que conclusão podemos chegar?

Acho que as coisas vão mudar e os artistas têm cada vez mais força, cada vez mais falam e cada vez mais se vê. Graças a Deus temos tido algum sucesso no estrangeiro. Fora das nossas fronteiras, o que pode impulsionar bastante. Acho que os festivais que se fazem têm de ser levados mais a sério. Têm que ser mais organizados…

Está a referir aos festivais internacionais?

Não. No nosso país. Falo do Festival de Cinema, falo agora da última coisa que houve que foi o FENACULT, que não se sentiu tão bem o bater do coração desse tal FENACULT. Portanto, têm que ser levadas mais a sério. Não só com financiamentos esporádicos, mas com financiamento contínuo, anuais.

É preciso que alguém (vou usar a expressão) bata na mesa para se acorde para uma realidade mais objectiva sobre a cultura?

É, sim, preciso bater na mesa, para que, de uma vez por todas, aquando da elaboração do Orçamento Geral do Estado se tome uma decisão muito séria em relação aos apoios aos artistas.

Há sensibilidade para tanto que permita inserir no OGE uma rubrica especial dirigida às artes? Eu acho que sim. Ela já houve quando se fez o Festival Internacional de Cinema, ela houve agora no FENACULT. Acho que, sim, que há. Falta é coragem política de assumir. Sensibilidade existe. Nós temos no nosso Parlamento várias pessoas entendidas na área da cultura, na área artística. Não podemos desprezar. Agora, verdade é que ainda não houve a coragem de o assumir. Há sempre prioridades, há sempre prioridades. O assumir a construção de um belo auditório, de vários teatros, a reformulação de vários teatros não seria muito difícil nas províncias. Isso é necessário e não está a haver.

Acha que a sociedade como tal, como parte integrante do próprio Estado, é hoje o reflexo dessa ausência de políticas culturais?

É. Temos uma sociedade muito desapegada. Temos uma sociedade muito pouco informada, no que diz respeito às manifestações que existem lá fora e mesmo no continente, regional e localmente. Não estamos informados, não sabemos, não nos informamos. Estamos a criar uma classe de artistas muito incultos.

E isso tem-se reflectido em que aspecto?

Na qualidade, na reflexão e na filosofia de estéticas.

Acha que não se tem criado um movimento estético?

Não. Não se tem. Não temos nenhum movimento estético criado. Talvez nas artes plásticas mais e a música tem sempre os seus estilos a defender e a apresentar. Mas não temos uma corrente estética que possamos hoje em dia dizer que seja nossa.

Parece um paradoxo: Grupos como HenriqueArtes, Miragens, vão ao Mindelact e trazem prémios. O Elinga vai ao Brasil e traz prémios... Um paradoxo como? São manifestações pontuais.

Paradoxo no sentido de estarmos diante de uma situação em que não se vislumbra um movimento estético que faça estética como tal. Mas este trabalho é reconhecido lá fora…

São reconhecidos muitos artistas, como já disse. O que não quer dizer que nós tenhamos um movimento. Isso não quer dizer que tenhamos um movimento na direcção da defesa de uma estética que seja angolana. Sim, o HenriqueArtes e o Elinga ganham com o valor que têm. Sim, devem ganhar, mas é, como eu disse, são manifestações pontuais. Não sentimos uma corrente, um movimento como tal.

Quando diz que a situação vai melhorar, está a partir de que princípio?

Estou a partir do princípio do contacto que alguns grupos têm tido e o que têm defendido. E vê-se nas obras que eles fazem. Falo no HenriqueArtes, no Elinga, obviamente, no Horizonte Nzinga Mbande, e etc, que se esforça muito por fazer formações. Também essas pontuais e muito curtas, que não servem para construir um edifício com isso. Agora, a sensibilidade que me parece estar a aumentar no seio dos decisores é que vai mudar isso. Vai demorar algum tempo.

Mas quando, consegue marcar um horizonte temporal?

Não consigo, mas parece-me que estamos mais alertas, parece que estamos com mais vontade e parece-me que, dentro da próxima década, isto poderá mudar.

É que fica-se com a sensação de que está tudo a pairar na expectativa?

Estamos todos a pairar numa expectativa. Sim. Em Portugal consegui viver só da minha arte. Tinha subsídios, conseguia-se vender espectáculos, porque há várias salas pelo país fora a funcionar. Aqui não. Não podemos fazer. Montar uma peça em Benguela quer dizer que vou ter que levar luz e custa dinheiro. Vou ter que levar os meios de transportes e isso tudo custa dinheiro. Isso tudo impossibilita-nos. A falta de condições, não só físicas mas também técnicas. Isto o Estado deve, sim, assumir e munir as salas das províncias com os meios técnicos para se fazer bom espectáculo.

Acha que instrumentos como a própria responsabilidade social das empresas, a Lei do Mecenato, e outros seriam a solução?

Claro que sim, teriam de acompanhar esse desenvolvimento. A Lei do Mecenato existe desde 2012, não se Festise já foi regulamentada. Mas ela existe e não está a ser utilizada. As empresas, acho eu muito sinceramente, ainda desconfiam muito do fazer cultura. Têm medo de apostar, porque não há continuidade.

Não estão a colocar aqui contrapartidas?

As empresas não aderem, porque não há implementação e porque não há um produto que possa ser defendido por elas. Os nossos produtos não têm a força suficiente para que se possam defender por si só. Para o empresário dizer: Eu vou apostar naquilo!

Hoje está pouco presente ou é apenas uma mera impressão que as pessoas têm?

Eu não sei como é estar presente num sítio onde não se produz? Isso é complicado. Como é que estarei presente nas telenovelas se fazemos uma de vez em quando? Mas por acaso há um impulsionar de uma constância. Mas faço as minhas peças de vez em quando, quando se reúnem as condições financeiras. Entro naquilo que chamam. Não há muita coisa a fazer. Acho que a única em que não entrei foi o Windeck. Desde então, não há grandes produções na televisão para se entrar. E cinema aqui é praticamente nulo.

A linguagem que se percebe é ainda uma linguagem de mendicidade…

Esta expressão sempre foi usada. Usa-se também na Europa. Somos um subsídio-dependentes. Não temos uma lógica como a americana, por exemplo, ou mesmo como a brasileira, em que a auto-sustentação de qualquer projecto consegue manter os seus 30/40 por cento. Acredito que aqui tenhamos grupos, como o HenriqueArtes, o Elinga, o Horizonte Nzinga Mbande, que já conseguem ter uma auto-sustentabilidade numa percentagem razoável. Mas tudo isso não funciona se não temos um aparelho a funcionar. A trabalhar para o nosso bem de um povo.

Entrevista de Nok Nogueira e Foto de Ampe Rogério