Quando Luiz Inácio Lula da Silva voltar, a 01 de Janeiro de 2023, a entrar como Presidente da República no Palácio do Planalto, em Brasília, 12 anos depois de lá ter saído, já terá, como anunciou no dia das eleições, visitado os Estados Unidos, a China e vários países da União Europeia, porque o Brasil do futuro tem de fazer parte do mundo que importa, deixando do lado de fora do seu "mapa" prioritário o continente africano, apesar de, durante a campanha, ter afirmado que o gigante sul-americano, com ele na Presidência, estaria de volta a África.

Ao fim de dois mandatos históricos para a democracia brasileira ao ter albergado, por oito anos, entre 2003 e 2010, um velho sindicalista metalúrgico, e 12 anos de intervalo, tempo durante o qual foi vítima de uma gigantesca cabala arquitectada por juízes que o levaram à prisão por corrupção, em crimes nunca provados e mais tarde arquivados, Lula da Silva vai aproveitar os dois meses de Presidente-eleito para por a sua agenda interna, através de contactos para formar Governo, negociar termos com o leque de partidos que o apoiaram nesta corrida contra Jair Bolsonaro, e externa, onde pretende ir aos Estados Unidos, à China e à União Europeia... África ficará para depois, não tendo indicado quando.

Mas quer recuperar o tempo perdido pelos quatro anos de mandato de Jair Bolsonaro, no que diz respeito às ligações do gigante sul-americano com o continente africano, tendo ficado claramente fora das suas prioridades para a política externa, apesar de essa ligação ter importância histórica pesada ao ter, por exemplo, sido o primeiro país a reconhecer as independências de vários países, nomeadamente Angola.

Só que essa prioridade esbarra, pelo que se depreende das primeiras etapas que se auto-impôs, com as prioridades da "real politik", que, essas sim, passam por ir afirmar em Washington que um país com a dimensão do Brasil e mais de 215 milhões de habitantes não pode ser ignorado no "grand jeu" global, à China quer ir dizer que as relações comerciais com Brasília não podem ser vistas como factos consumados e com condições inamovíveis e com a União Europeia, Lula que colocar a maior economia latino-americana no mapa mental dos decisores em Bruxelas, de onde parece ter saído nestes quatro anos de liderança bolsonarista, excepto pela pressão constante sobre o descuido evidente com a Amazónia, o "pulmão" do mundo.

Luta muito renhida

Só perto da meia-noite, hora de Luanda, o número de votos contados passavam a dar a vitória a Lula da Silva, quando já estavam contados perto de 52 por cento, mantendo, ainda assim, uma luta voto a voto para ver quem seria o novo Presidente do Brasil, embora, tal como sucedeu na primeira volta, há um mês, a recuperação do candidato da esquerda só seria realidade muito depois do início da contagem e já perto da 01:00, quando estavam contados quase 100% dos votos ficou claro, e assumido pelo Tribunal Superior Eleitioral, que os 50,9% seriam suficientes para a vitória, contra os 49,1% de Bolsonaro, uma muito renhida e histórica disputa eleitoral.

Até às 10:00 desta segunda-feira, Jair Bolsonaro ainda não tinha ligado a Lula da Silva para reconhecer a derrota, visto que felicitar o vencedor não é coisa esperada no quartel-general do Presidente-eleito Luiz Inácio Lula da Silva.

Mas essa "indelicadeza" democrática, como se apressaram a sublinhar alguns analistas políticos brasileiros, deixa em suspenso uma dúvida que encerra um perigo maior que a boa-educação e a cortesia democráticas: a possibilidade de o ainda Presidente não reconhecer a derrota e tentar, como muitos dos seus apoiantes mais fanáticos defendem publicamente e sem receio, um golpe militarizado emoldurado por violência nas ruas das grandes cidades brasileiras.

Até meio da manhã desta segunda-feira, tal indicação não era visível, sobressaindo, isso sim, os prolongados festejos dos brasileiros que elegeram Lula, num panorama que encerra um evidente risco de tumultos tal a divisão quase milimétrica entre apoiantes dos dois adversários.

E se de Bolsonaro, até essa mesma a hora, não era conhecida nenhuma reacção à derrota, de Lula rapidamente se soube ao que vinha na condição de Presidente da República: "Ser o Presidente de todos os brasileiros", colocando entre as prioridades do seu mandato, que prometeu ser apenas um, devido à sua idade avançada, 77 anos, a defesa da Amazónia, o combate à fome, à pobreza extrema

Até essa tarefa democraticamente exigida pela Constituição brasileira parece um objectivo impossível, visto o grau e a violência verbal da rejeição de quase metade dos brasileiros, cujo comportamento ameaçador de gerar desestabilização política e social se espera que não venha a ser materializado, embora o risco tenha crescido nos últimos anos devido às políticas de armamento da população civil desenvolvidas e aplicadas por Jair Bolsonaro, criando aquilo que muitos brasileiros chamam de "exército civil sob comando do capitão Bolsonaro", uma referência ao seu passado militar, tendo chegado ao posto de Capitão do Exército antes de ser expulso das Forças Armadas por comportamento violento e desestabilizador.

Esse elemento do carácter de Bolsonaro permanece como a sua marca de água, o que se percebe pela estrutura dos seus apoiantes, radicais da extrema-direita, as bases religiosas das igrejas evangélicas mais conservadoras e da sociedade mais xenófoba, deixando em suspenso qual o desfecho deste processo eleitoral que, na realidade, só termina a 01 de Janeiro de 2023, permitindo ainda que muita água passe por debaixo das pontes.

Mas já pouco ou nada poderá ser feito pelos bolsonaristas para impedir, mesmo que irrompam tumultos de rua, que Lula seja o primeiro brasileiro a cumprir, democraticamente, pelo menos três mandatos - se não ocorrer qualquer episódio de maior gravidade -, que Jair Bolsonaro passe para a história da democracia brasileira a sair ao fim do primeiro mandato, não conseguindo fazer-se eleger para um segundo.

O discurso da vitória

Do seu discurso de vitória sobressaem ideias como esta: "Nós não enfrentámos um adversário, não enfrentámos um candidato. Nós enfrentámos a máquina do Estado brasileiro colocada ao serviço do candidato da situação para tentar evitar que nós ganhássemos as eleições".

Ou esta "Tentaram me enterrar vivo e eu estou aqui. E estou aqui para governar esse país, numa situação muito difícil. Mas eu tenho fé em Deus que, com a ajuda do povo, nós vamos encontrar uma saída para que esse país volte a viver democraticamente".

"Meus amigos e minhas amigas. A partir de 1º de janeiro de 2023, vou governar para 215 milhões de brasileiros e brasileiras, e não apenas para aqueles que votaram em mim. Não existem dois Brasis, somos um único país, um único povo, uma grande nação", disse aindaLula.

O Presidente-eleito garantiu igualmente: "Estou aqui para governar esse país de forma a que a gente possa inclusive restabelecer a paz entre as famílias, os divergentes, para que a gente possa construir o mundo que nós precisamos" porque "não interessa a ninguém viver em um país em eterno estado de guerra"

"Não interessa a ninguém viver numa família onde reina a discórdia. É hora de reunir de novo as famílias, refazer os laços de amizade rompidos pela propagação criminosa do ódio. A ninguém interessa viver em um país dividido, em permanente estado de guerra", atirou, acrescentando: "Derrotamos o autoritarismo e o fascismo, a democracia está de volta".

"É hora de baixar as armas, que jamais deveriam ter sido empunhadas. Armas matam. E nós escolhemos a vida", declarou no seu discurso de vitória em São Paulo.