O drama que se vive emCape Town, a mais turística e conhecida cidade da África do Sul, logo a seguir à grande metrópole do país que é Joanesburgo, serve na perfeição para pontificar um problema que é, na verdade, muito mais vasto.
A prolongada seca atinge quase toda a África do Sul, com profundo impacto económico, nomeadamente no seu vibrante sector agrícola, e grande parte da África Austral, onde se desenrola uma das mais graves secas do último século, atingindo com semelhante dramaticidade o sul de Angola.
O "Dia Zero", como as autoridades locais decidiram denominar aquele que será o momento em que vão ser obrigados a cortar totalmente a água nas torneiras a uma parte substancial dos mais de 3,7 milhões de habitantes de Cape Town, a mais populosa da África do Sul, a seguir a Joanesburgo, já foi recalendarizado por duas vezes.
Primeiro, o "Dia Zero" estava previsto para 12 de Abril, data que surgiu logo aos primeiros sinais de alarme, quando se percebeu que os reservatórios que abastecem a cidade e a região metropolitana da Cidade do Cabo, como o Novo Jornal Online noticiou, estavam à beira de uma irreversível descida, deixando os leitos dos rios e das barragens em pó.
Depois, com as medidas drásticas anunciadas pelo município, nomeadamente através de uma intensa campanha de sensibilização para a diminuição do consumo, o fim das lavagens de carros, das regas dos jardins, foi possível alargar o período para a aplicação do "Dia Zero", que passou para 21 de Abril, dando mais duas escassas semanas de alívio.
Mas o risco nunca deixou de estar como uma espada em cima da cabeça dos quase 4 milhões de habitantes da Cidade do Cabo.
"If it's yellow, let it mellow..."
A cidade hoje, ao contrário do que acontecia há cerca de mês e meio, quando a imprensa internacional despertou para esta situação, "apetite" aguçado pelo facto de Cape Town poder ser a primeira grande metrópole mundial a trazer para a realidade o que só tinha sido visto na ficção do cinema ou dos livros, está claramente ciente do drama que pode estar ao virar da esquina.
Como explica ao Novo Jornal Online uma visitante frequente da cidade, "hoje não se fala de outra coisa", porque "as pessoas estão, de facto, preocupadas" e isso percebe-se por todo o lado, "desde as conversas de café até aos sinais espalhados por todo o lado".
Um dos exemplos apontados é a frase, apesar de controversa, usada nestas situações, "If it's yellow, let it mellow; if it's brown, flush it down", que em português pode ser traduzido por "se está amarelo, não te preocupes, se estiver castanho, puxa o autoclismo", pode ser lida em todas as casas de banho públicas, mesmo que seja, na maior parte dos casos, utilizada apenas a primeira parte deste conhecido aforismo: "If it's yellow, let it mellow"
"Na verdade, para quem chega à cidade, é impossível ignorar o que se passa, começa logo no avião, à chegada, com avisos sobre o problema e apelos à poupança de água, depois, já no aeroporto, os avisos e apelos continuam, as torneiras das casas de banho do aeroporto, dos restaurantes... estão a deixar de ter água para lavar as mãos, sendo substituída por produtos desinfectantes", descreve ainda.
E, no dia-a-dia, continua a narrar esta visitante frequente em Cape Town, os sinais da sensibilização para o problema vão-se acumulando, ao ponto de, por exemplo, nos ginásios, a regra dos duches de dois minutos ser severamente policiada pelos utilizadores, com os incumpridores a serem "chamados à atenção sem apelo nem agravo".
"Neste momento, na cidade só se fala de água, lê-se sobre água, discute-se sobre água...", descreve.
Algum alívio suplementar
Depois de Abril como o mês do "Dia Zero", o desvio de água de alguns reservatórios privados, nomeadamente de fazendas de criação de gado ou agrícolas, para os reservatórios públicos, isto, apesar de por detrás estarem algumas acusações aos proprietários destas fazendas de que estavam a retirar água indevida, permitiu atirar o "Day Zero" agora para o início de Julho, dia 9.
Pode acompanhar a cronologia desta crise através destes links:
Cape Town vive seca dramática...
África Austral arrisca tragédia...
E alguma chuva que tem chegado à região, embora mais a norte, como é o caso de Moçambique, país igualmente afectado mas com alguma reposição de água nos seus reservatórios, como é o caso do principal abastecedor da cidade de Maputo, que há mais de um ano que não tinha tanta quota, também permitem aliviar alguma da tensão acumulada.
No entanto, a seca que há três anos consecutivos atinge a África do Sul, a mais grave em mais de 100 anos, sendo que em toda a África Austral, a questão se resume à mais grave seca dos últimos 35 anos, está longe de terminada, mesmo que os sucessivos adiamentos do "Day Zero" possam dar sinais errados às pessoas, como têm alertado as autoridades municipais da Cidade do Cabo.
Por detrás deste raro longo período de seca, estão, agora comprovadamente, as alterações climáticas e um dos seus fenómenos subsequentes e mais devastadores, o "El Nino", provocado pelo aquecimento das águas do Oceano Pacífico, que geram correntes de ar anormalmente quentes, provocando secas prolongadas em vastas regiões do mundo - como é o caso, em África, do sul do continente ou no Corno de África - ou tempestades, furacões, nevões e cheias noutras - como se tem estado a ver em praticamente todo o continente europeu.
Aviso global
Para já, o que está a suceder na Cidade do Cabo tem, como alertam os climatologistas, de ser visto como um forte sinal de alerta para o que pode vir a suceder noutras grandes cidades do mundo.
E um dos exemplos mais próximos do que está a suceder na segunda maior cidade da África do Sul, apesar de mais grave, não é nada com que os 20 milhões de habitantes de São Paulo, no Brasil, não se tenham já deparado, depois de em 2016 e parte de 2017 terem estado à beira de ficar sem água, com também as imagens de barragens e rios secos a atravessar os media globais.
Face a isto, os países mais afectados do sul do continente já estão a tomar medidas severas, com a própria Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC) a liderar algumas iniciativas, como sejam a declaração de estados de emergência, acompanhados de programas especiais para a construção de reservatórios, planos para desviar água de rios para as regiões mais afectadas, ou, como é o caso de Angola, nas províncias austrais, como o Cunene e o Kuando Kubango, mas também o Namibe e a Huíla, com a abertura de furos artesianos, reservas de água mais eficazes, etc.
Na África do Sul, foi mesmo declarada a situação de "desastre nacional" com o subsequente anúncio de planos de emergência em todo o país.
E é também deste país que surge, devido ao problema que Cape Town atravessa, que surge um sinal claro de que uma mudança de atitude permite poupar muita água e minimizar problemas, sendo disso mesmo exemplo o facto de o consumo médio de água na área metropolitana andas pelos 1, 200 milhões de litros e estar agora a pouco mais de 600 milhões, graças às campanhas de sensibilização e medidas restritivas implementadas.