É com os olhos postos no fim da hegemonia ocidental e a Ordem Mundial baseada nas regras definidas pelos Estados Unidos no pós II Guerra Mundial que os BRICS estão deste ontem, terça-feira, 22, reunidos na cidade russa de Kazan, para desenhar o mapa do futuro do mundo.
Esta é a reunião onde, oficialmente, Egipto, Etiópia, Emirados Árabes Unidos e Irão entram no clube, com a Arábia Saudita a atrasar-se no processo mas, ainda assim, mantendo-se no "barco", somando agora a dezena os membros que vão forjar a tal nova ordem mundial.
E o primeiro passo, quando a quase totalidade dos media ocidentais fala na criação de uma moeda alternativa ao dólar e ao euro, pode bem ser algo muito diferente, como seja limpar a estrada dos escolhos internos, saltando a vista, desde logo, as relações bilaterais de alguns dos membros.
Se o Irão e a Arábia Saudita, antes de saltarem para dentro dos BRICS, soltaram as amarras diplomáticas para acabar com décadas de silêncio, receios e suspeitas, retomando as relações bilaterais com intermediação russa e chinesa, foi já dentro da embarcação que China e Índia desfizeram o nó apertado sobre as fronteiras comuns nos Himalaias.
Isso mesmo acaba de ser consolidado com um encontro em Kazan entre o Presidente chinês, Xi Jinping, e o primeiro-ministro Narendra Modi, que acaba de ser anunciado, depois de Pequim e Nova Deli terem chegado a um acordo de princípios sobre a disputa flamejante, que chegou mesmo a manter o mundo expectante sobre uma guerra entre os dois colossos asiáticos, na linha de fronteira himalaica.
Com a casa arrumada, sendo que ainda se mantenham alguns pontos abrasivos, como, por exemplo, entre o Egipto e a Etiópia, embora existam já sinais de que também em Kazan possa acontecer um empurrão pacífico para a disputa sobre as águas do Rio Nilo Azul que vão ser represadas pela Barragem do Renascimento etíope (ver links em baixo), os BRICS devem esta quarta-feira, o dia mais importante dos três desta Cimeira, anunciar medidas relevantes sobre o futuro do seu funcionamento interno.
Uma delas já se conhece, que é a criação de um sistema semelhante ao SWIFT, que facilita as transferências internacionais de dinheiro para pagamento das importações e exportações entre os Estados-membros dos BRICS, deixando para outras luas a questão da moeda própria, à semelhança do euro da União Europeia, ou do dólar, dos Estados Unidos da América.
Outra é a questão do estatuto dos países que formalizaram ou vão formalizar os pedidos de adesão, cerca de 20, incluindo, ao que se sabe, a Turquia, que é membro da NATO; e a Sérvia, que está em processo de adesão à União Europeia, que, como explicou o anfitrião, o Presidente russo Vladimir Putin, deverão ver-lhes conferidos nesta 16ª Cimeira, a capacidade de presenciar as reuniões de trabalho sem que lhes seja permitido votar no momento de decidir.
Porém, estas e outras decisões só poderão ser vistas como definitivas quando se tiver acesso à declaração final sobre esta 16ª Cimeira dos BRICS que termina nesta quinta-feira, 24, mas o objectivo, como o definiu Putin na terça-feira, é afinar agulhas no âmbito do comércio interno para os BRICS e associados, anunciando que "vão ser tomadas decisões importantes", o que está a gerar forte expectativa.
"Em Kazan, vamos tomar um conjunto alargado de decisões importantes visando o fortalecimento das actividades associadas à natureza da organização e definir o que vão ser a cooperação dentro desta", disse Putin, claramente a demonstrar que, apesar do isolamento a que está sujeito pelo ocidente no contexto das sanções devido à guerra na Ucrânia, não lhe falta palco global.
A organização foi inicialmente criada para fazer face à "ditadura" do G7, o grupo dos países ocidentais mais industrializados, constituído por EUA, França, Itália, Alemanha, Reino Unido, Canadá e Japão, em 2006, com o Brasil, Rússia, Índia e China e, depois, em 2010, entrando a África do Sul, definindo assim o acrónimo BRICS.
Em 2023, na África do Sul, foi anunciada a entrada de cinco países, Arábia Saudita, EAU, Irão, Egipto e Etiópia, somando agora 10 membros, mas com mais duas dezenas à espera de aderir, lançando os BICS para a condição de mais importante plataforma de cooperação económica e diplomática do mundo, à excepção da ONU.
A pressão à porta dos BRICS é de tal forma intensa que o Presidente russo, na condição de anfitrião, anunciou já que nesta Cimeira ficará definido o "estatuto de país parceiro", o que dará a estes quase todos os direitos, excepto no momento de votar e vetar, porque todas as decisões são estatutariamente tomadas por unanimidade.
E este interesse global, a ponto de até a França, no passado recente, ter anunciado o seu interesse em entrar, é claramente percebido quando se olha para os números dos BRICS, uma plataforma que representa como nenhuma outra o Sul Global face à hegemonia ocidental personalizada no denominado Ocidente Alargado liderado pelos Estados Unidos com base nas suas regras assentes nos pilares que são as organizações internacionais como o FMI ou o Banco Mundial.
Alias, é de tal modo assim, que uma das decisões dos BRICS de maior impacto até este 16ª Cimeira em Kazan, foi a criação do Novo Banco de Desenvolvimento, liderado pela antiga Presidente brasileira, Dilma Rousseff, com sede na China e com o objectivo de adquirir músculo financeiro capaz de alicerçar as necessidades financeiras dos países em desenvolvimento.
E os números que sustentam esta realidade, e a razão dos receios que estão a gerar no Ocidente Alargado, são bem demonstrativos do potencial por detrás dos BRICS.
Os BRICS em números
Senão vejamos esta realidade em construção em números compilados pelo filósofo e professor universitário português Viriato Soromenho Marques, na sua coluna de opinião no jornal português Diário de Notícias, onde demonstra que os BRICS já valem mais em PIB - PPC ( Paridade do Poder de Compra - PPC)
Comparando o peso do G7 e dos BRICS no PIB PPC, Soromenho Marques concluiu que ocorreu uma mudança dramática entre 2000 e 2024, com o G7 a passar de 43,28% do PIB PPC global para 29,64%, enquanto os BRICS, no mesmo período, subiam dos 21, 37% para 35,43%, passando de forma acelerada os mais ricos ocidentais.
Alias, toda a retórica de afirmação dos BRICS é, ou quase toda, sustentada na ideia de que esta organização representa os mais pobres ou em via de desenvolvimento do "Sul Global" contra a hegemonia elitista e privilegiada do "Ocidente Alargado" que impede a ascensão do "Hemisfério desprotegido".
Mas não apenas nos números esta realidade ganha peso e sustentabilidade, porque, como nota Soromenho Marques, no plano mais fino da ciência e tecnologia (C&T), os resultados são ainda mais surpreendentes, como o demonstra um estudo do Australian Strategic Policy Institute, um think-tank ligado ao governo de Camberra.
Esta alteração fica clara quando se analisam os países que lideram a C&T em 64 áreas críticas para o futuro: a defesa, o espaço, a energia, o ambiente, a inteligência artificial (IA), biotecnologia, robótica, cibernética, computação, materiais avançados e áreas-chave da tecnologia quântica.
Ou seja, em 2003, os EUA lideravam em 60 das 64 tecnologias, mas em 2023, lideram apenas em sete, quando a China, pelo contrário, passou do lugar da frente em três tecnologias (2003) para 57 das 64 tecnologias em 2023 e outros países dos BRICS têm lugar destacado: a Índia está entre os cinco primeiros países em 45 das 64 tecnologias, o Irão em oito, a Arábia Saudita em quatro...