Ao aterrar em Kazan, o chefe das Nações Unidas está a ajudar a furar a hegemonia ocidental como é objectivo desta plataforma que promete tirar o Sul Global da condição de subdesenvolvimento em que está desde que os EUA criaram a actual Ordem Mundial após a II Guerra Mundial.

E se acabar com a Ordem Mundial baseada nas regras ocidentais que permitiram aos países ricos do Hemisfério Norte, comummente designados por Ocidente Alagado, é um objectivo de longo prazo, há um resultado que foi imediato desta Cimeira dos BRICS: A Rússia não é um país isolado.

Ao receber 36 delegações de países que representam mais de metade da Humanidade, incluindo dezenas de Chefes de Estado, e com Guterres a encerrar os trabalhos, o Presidente russo conseguiu desfazer o isolamento a que o Ocidente se propôs condená-lo no âmbito da guerra na Ucrânia.

Vladimir Putin não deixou de usufruir deste momento triunfante, apesar de os media ocidentais, com raras excepções, terem mantido o assunto BRICS longe dos seus destaques, para desfazer dúvidas.

"Os países do Sul Global e do Oriente Global partilham valores similares e uma visão semelhante de uma nova e democrática ordem mundial que reflecte a diversidade cultural e civilizacional", disse o chefe do Kremlin, que tem em Kazan mais de 40% da população mundial representada, perto de 36% do PIB global em Paridade de Poder de Compra.

Estes números são importantes porque este "clube", como a ele, ironicamente, se referiu o ministro indiano dos Negócios Estrangeiros, Subrahmanyam Jaishankar, é já largamente superior ao "clube" do G7, dos sete países mais ricos do Ocidente Alargado, que se fica por 10% da população mundial e menos de 30% do PIB PPC global.

E se para os BRICS esta corrida dos números é já uma vitória, porque deixa em evidência que esta plataforma não pode ser ignorada, sob risco de ficar para trás, para o Presidente russo, é-o sobremaneira.

Isto, porque as sanções e o "isolamento" a que Vladimri Putin está sujeito são iniciativa do G7, sendo que, olhando para o mapa do mundo e a abrangência dos BRICS, quem começa a estar isolado é o... G7.

Mas por Kazan não passaram apenas os 10 membros dos BRICS+, com a recente entrada dos EAU, do Irão, do Egipto, da Etiópia e ainda da Arábia Saudita que, todavia, ainda não procedeu à ratificação interna formal da adesão, tendo ficado definido, no que é, provavelmente o mais importante ponto desta Cimeira, a definição do estatuto de parceiro participante, que abrange 13 países.

O próximo passo de alargamento vai abranger países como a Argélia, Turquia (um membro da NATO), República Democrática do Congo, Paquistão, Tailândia, Malásia, Bolívia, Comoros, Cazaquistão, Vietname... numa lista que vai ainda mais longe, chegando aos 38 países se nela se inserirem os países que mostraram interesse.

O que Vladimir Putin viu ser mais que suficiente, para, no que é claramente acompanhado pelos gigantes asiáticos, China e Índia, ou o grande da América Latina, o Brasil e a excepcional África do Sul, e, como o atesta o que já se conhece do documento final da Cimeira, dos restantes membros, vir mostrar o caminho que os BRICS querem seguir.

"Estamos convencidos que a actual Ordem Mundial deve ser baseada nos princípios universais do respeito mútuo pelos interesses locais legítimos e a soberana escolha dos povos e nações em concordância com a Lei Internacional", afirmou no que é um claro alfinete espetado na hegemonia global do Ocidente.

Putin foi ainda mais longe, sublinhando as dificuldades na prossecução deste caminho de construção de uma nova ordem mundial com o facto de "os países ocidentais têm feito tudo para manter o seu domínio sobre tudo e sobre todos".

Todavia, nesta espécie de euforia que emana do sucesso desta Cimeira russa dos BRICS, o primeiro-ministro indiano, Narendra Modi, veio colocar alguma água fria na fervura, ao afirmar que os objectivos dos BRICS não pode ser adulterado, estando delimitado claramente, não pelo objectivo de destruir as instituições internacionais mas sim por reforma-las de acordo com a nova realidade global.

Ou seja, Modi recentrou a discussão na ideia inicial dos BRICS, quando estes foram pensados, em 2006, e depois formalizados, em 2009, que era (e é), criar um bloco sólido de pressão no Sul Global de forma a furar a hegemonia ocidental ao obrigar à reorganização das grandes instituições internacionais.

Para as Nações Unidas, a aposta é dar maior representatividade ao Conselho de Segurança, reflectindo a Nova Ordem Mundial mais inclinada para Sul, porque qualquer alteração levará à perda da maioria dos países ocidentais, sendo que hoje apenas EUA, Reino Unido, França, China e Rússia têm direito de veto.

E no FMI e no Banco Mundial, os BRICS exigem mudanças na lubrificação da mecânica de ajuda aos países mais necessitados, desfazendo as regras que hoje permitem aos ocidentais manter os mais pobres acorrentados aos interesses das grandes economias ocidentais.

A ONU reconhece a urgência das mudanças, e o seu Secretário-Geral, o português António Guterres, ter-se deslocado a Kazan, contra a vontade expressa, de uma ou de outra forma, pelas capitais ocidentais, demonstra-o à evidência.

Mas, se fosse preciso confirmar isso mesmo por palavras, o seu porta-voz, Farhan Haq, disse aos jornalistas, em conferência de imprensa, que "esta Cimeira em Kazan é de extrema importância para a ONU, com os BRICS a representarem quase metade da população mundial", estando o Secretário-Geral "muito empenhado em aproveitar a oportunidade para realizar vários encontros com os lideres presentes", como, de resto, o faz sempre que ocorrem reuniões do G7 ou do G20.

As conclusões

Como sempre sucede nestes grandes encontros, o foco dos media está no documento final acordado por todos os Estados-membros, embora seja igualmente usual este documento ter demasiadas páginas, 43 neste caso, para acomodar os potos de vista que todos exigem e crêem fundamentais na defesa dos seus interesses.

Em síntese, a Declaração de Kazan insiste na reforma do sistema financeiro global, "de forma a que este vá de encontro aos verdadeiros desafios mundiais, incluindo uma arquitectura financeira mundial mais justa e inclusiva e justa".

A questão da criação de um sistema de pagamento interno que substitui o SWIFT, que permite às instituições financeiras mundiais transferir fundos e pagamentos de forma célere mas que, ao mesmo tempo, permite enclausurar quem não alinhar com as "regras" ocidentais, como aconteceu com a Rússia no curso da guerra na Ucrânia.

Este avanço levará mais cedo ou mais tarde à criação de uma moeda interna para ocupar o lugar do dólar dos EUA, que já está ameaçado porque os membros dos BRICS estão num acelerado processo de pagamentos bilaterais com as respectivas moedas nacionais.

No que respeita aos pagamentos transfronteiriços, os BRICS reconhecem os "benefícios alargados de um sistema de mais célere, barato, mais eficiente, transparente, seguro e inclusivo e criado no princípio de reduzir as barreiras comerciais e o acesso indiscriminado".

Neste ponto, o documento refere-se claramente aos instrumento que um dia substituirá internamente o SWIFT, embora, para já, note que o principal é fomentar o uso das moedas nacionais nas transacções financeiras entre os Estados-membros e os seus parceiros comerciais".

Aponta ainda para um inesperado acordo sobre uma plataforma de comércio interno de grãos (cereais), alargando depois esta ferramenta para outras áreas agrícolas, o que vai permitir consolidar uma espécie de seguro de abastecimento de alimentos que dará aos BRICS uma garantia única em todo o mundo.

Notam que os membros devem manter um comportamento de acordo com os princípios integrais da Carta das Nações Unidas, apontam como fundamental a procura de soluções pacíficas e negociadas para todos os conflitos através da diplomacia.

Dirigindo-se aos grandes desafios neste capítulo actuais, a Declaração de Kazan diz que, no que toca ao conflito no Médio Oriente, "reitera-se a grande preocupação com a deterioração da situação humanitária nos territórios palestinianos ocupados, em particular sobre a escalada sem precedentes da violência na Faixa de Gaza e na Cisjordânia".

Considera que a ofensiva israelita conduziu à morte em massa de civis", aos "deslocamentos forçados" e a "destruição total" além de uma crise humanitária de extrema gravidade.

"Expressamos o alarme sobre a situação no sul do Líbano, condenamos a perda de vidas civis e a imensa destruição de infra-estruturas civis em resultado dos ataques de Israel a zonas residenciais no Líbano e pedimos um imediato cessar das hostilidades", diz o texto.

O texto é fortemente crítico dos ataques de Israel em países vizinhos, como sucedeu com o ataque ao consulado do Irão em Damasco, capital da Síria em Abril deste ano, alargando o conteúdo subsequentemente a este tipo de assuntos, sem deixar de fora a questão ucraniana ou a crescente exposição de regiões africanas, como o Sahel ou no Corno de África, ao terrorismo internacional.

Como era de esperar, a Declaração de Kazan, que encerra todos os pontos acordados por unanimidade nesta 16ª Cimeira dos BRICS+, está nela plasmada uma nota sobre as sanções, como as que estão actualmente impostas à Rússia pelos países ocidentais.

Refere o texto que os BRICS "estão preocupados com a disrupção causada por medidas coercivas ilegais e unilaterais, incluindo as sanções", apontando o dedo especialmente às que incidem sobre o universo económico e ao comércio internacional, com impacto inaceitável sobre as metas de desenvolvimento".

Neste texto pode ainda ler-se que os BRICS+ incumbem a liderança russa actual de impulsionar o diálogo da organização com as plataformas representativas de regiões e sub-regiões como a Ásia, África, Europa, América Latina e Médio Oriente".

Temas como as alterações climáticas, a ajuda ao desenvolvimento dos países mais afectados pelas transformações climáticas, a segurança alimentar, a urgência de reduzir o uso de combustíveis fósseis, está solidamente presente nas 43 páginas do documento.

No ponto 21 pode ler-se uma forte reafirmação na necessidade de todos os países cooperarem na "promoção e protecção dos Direitos Humanos e liberdades fundamentais" sobre os princípios da "igualmente e respeito mútuo".

E, lá pelo meio, deixa um aviso à navegação que pode não ser totalmente do agrado de alguns dos membros, como a Rússia, por exemplo, que é o endosso ao G20 como plataforma fundamental e insubstituível para o diálogo global.

(o texto integral em inglês pode ser encontrado (aqui).