O Governo do Ruanda não tem dúvidas, segundo avança o site AfricaNews, citando a AFP, de que o SU-25 congolês atravessou a fronteira e entrou no seu espaço aéreo, essa a razão pela qual terá sido atingido, embora não de forma a provocar uma falha catastrófica, pelas antiaéreas ruandesas, embora de Kinshasa tenha já chegado um desmentido cabal sobre a violação da linha de fronteira ruandesa.

Com as tensões ao rubo há muitos anos mas com um upgrade faiscante a partir de meados de 2022, com o avanço decidido dos rebeldes do Movimento 23 de Março sobre várias cidades e aldeias do leste congolês, especialmente no Kivu Norte, fortemente armados e organizados pelo Ruanda, como acusa o Governo do Presidente congolês, Félix Tshisekedi, e um relatório das Nações Unidas confirmou em 2022.

Apesar de o Governo do Presidente ruandês, Paul Kagame, negar que esteja por detrás do fortalecimento operativo dos rebeldes do M23, um grupo criado pela minoria Tutsi ruandesa há mais de uma década mas que esteve adormecido até finais de 2021 e que está agora a espalhar terror no leste da RDC, isso de pouco tem valido, não só porque a ONU o confirma, mas essencialmente porque existe um risco claro de um conflito aberto entre Ruanda e a RDC, que, inapelavelmente, iria envolver outros países da já de si trepidante Região dos Grandes Lagos.

Entretanto, o alegado voo ilegal do caça congolês nos céus ruandeses coincide com uma acrescida dificuldade no terreno para obrigar o M23 a cumprir com os acordo de Luanda, assinado em Novembro numa mini-Cimeira organizada por João Lourenço, na qualidade de líder da CIRGL, e ainda do que ficou acordado em Nairobi, no âmbito dos esforços de paz da EAC, cujo facilitador tem sido o ex-Presidente queniano Uhuru Keniatta.

Estes guerrilheiros, que não estiveram em Luanda, começaram por recusar o cumprimento desse acordo, mas, depois, resolveram alinhar, mas, segundo Tshisekedi, apenas fazendo de conta que retiravam das posições que conquistaram no Kivu Norte, porque apenas se movimentam para se reposicionarem noutro ponto estratégico.

Isto, apesar de a EAC, que é a comunidade de países da África Oriental, ter actualmente mais de 3.000 militares num contingente de imposição dos acordos, porque, como tem acusado Kinshasa, com a logística ruandesa, não há forma de o M23 não poder brincar ao gato e ao rato com o conteúdo dos acordos.

Os recados de Kinshasa

Félix Tshisekedi explicou, durante a sua intervenção num painel integrado na agenda do recente Fórum Económico Mundial, em Davos, Suíça, que os rebeldes do M23 estão "apenas a mudar de local" para enganar os observadores da EAC.

O Chefe de Estado congolês sublinhou que os rebeldes, que insiste, são apoiados pelo Ruanda, "fazem de conta que retiram das suas posições mas apenas se movimentam para se reposicionarem de novo nas imediações destas áreas".

"Eles fazem de conta que se retiram, depois percebemos que não deixaram as cidades que ocuparam, apenas enganaram os observadores, ignorando o acordo assinado na mini-Cimeira de Luanda, onde estiveram os Presidente da RDC e de Angola, bem como do Burundi, na qualidade de líder da EAC, e ainda o ministro dos Negócios Estrangeiros do Ruanda.

Recorde-se que, primeiro, as chefias do M23 vieram dizer que não reconheciam acordos assinados sem a sua presença, mas, depois, aceitaram cumprir o seu conteúdo, até porque o Presidente ruandês, Paul Kagame, tinha, anteriormente, prometido usar a sua influência junto do M23.

Numa resposta a este tipo de acusações por parte de Tshisekedi, o líder do M23, Lawrence Kanyaka, citado pelas agências, devolveu as críticas, afirmando que é o Governo congolês que não está a respeitar o cessar-fogo e continua a armar grupos que combatem o M23.

Como o Novo Jornal tem noticiado, o acordo de Luanda, que foi complementado com os esforços da EAC, que contou com o ex-Presidente do Quénia, Uhuru Kenyatta, como intermediário, tem sofrido altos e baixos no terreno, mas esta foi a primeira vez que o Presidente da RDC comentou a sua implementação, dando-lhe, claramente nota negativa.

Mas o regresso às acusações ao Ruanda de Paul Kagame de estar por detrás da repentina capacidade do M23 é um elemento perigoso, porque os dois países estão há anos em periclitante equilíbrio, estando sempre em cima da mesa uma guerra aberta.

Contexto

As localidades do Kivu Norte, província do leste da República Democrática do Congo, que já deviam estar sem rebeldes do M23, se fosse cumprido o Acorde de Luanda, assinado em Novembro de 2022, continuam ensombradas pelas presença desta guerrilha apoiada pelo Ruanda, como o prova um relatório das Nações Unidas.

Face a esta escassa ou nula evolução no terreno do que está contido no documento assinado na mini-Cimeira de Luanda de 23 de Novembro do ano passado, que os rebeldes começaram por dizer que não iriam cumprir, os Estados Unidos voltaram a fazer um veemente pedido ao Ruanda para acabar com o "apoio" ao M23, e à RDC para extinguir o apoio à guerrilha contrária ao regime ruandês, as FDLR (Forças Democráticas de Libertação do Ruanda), como o Governo de Kigali tem insistido que existe.

Na denominada mini-Cimeira de Luanda ficou estipulado, no documento assinado por todas as partes, que os rebeldes do M23 seriam sujeitos a um calendário concreto para retirarem das áreas tomadas de forma violenta no leste congolês até 15 de Janeiro deste ano.

Este encontro na capital angolana, a 23 de Novembro de 2022, contou com a presença dos Presidentes da RDC, Félix Tshisekedi, e do Burundi, Évariste Ndayishimiye, enquanto líder da Comunidade de Países do Leste africano (EAC), o ministro dos Negócios Estrangeiros do Ruanda, Vincent Biruta, além do anfitrião, João Lourenço, que lidera a Conferência Internacional para a Região dos Grandes Lagos (CIRGL).

Por detrás de todo este recrudescer da violência nas já de si massacradas províncias do leste congolês, Kivu Norte, Kivu Sul e Ituri, onde se desenrola em trágico contínuo, desde a década de 1990, uma tempestade de violência protagonizada por dezenas de grupos guerrilheiros, criados no húmus do genocídio de 1994 no Ruanda, está o apoio, assim o diz o Governo de Kinshasa, o apoio do Exército e dos serviços secretos ruandeses ao M23, com o objectivo de manter a região desestabilizada.

Desde finais de 2021 que se assiste a uma reorganização do Movimento 23 de Março, abreviado para M23, com moderno equipamento militar, com avanços sólidos na região, assumindo o controlo de dezenas de localidades de uma das mais ricas zonas do mundo em recursos minerais estratégicos - coltão, cobalto, terras raras, ouro, diamantes... -, tendo em meados de 2022 acontecido uma aceleração vertiginosa das acções destes rebeldes.

O M23, tal como outras guerrilhas, nasceu no seio da etnia Tutsi ruandesa, o alvo referencial do genocídio de 1994 perpetrado pela maioria Hutu, e hoje é acusado pelo Governo de Tshisekedi de estar a ser financiado e a contra com apoio logístico do Ruanda, embora não seja muito claro o porquê de tal apoio, que é refutado pelo Presidente ruandês, Paul Kagame, embora este se tenha comprometido com Tshisekedi e João Lourenço a usar a sua influência junto dos lideres da guerrilha para os conduzir a negociações.

Uma das teses mais sólidas para justificar o "apoio" de Kigali aos M23 na sua "conquista" de territórios no leste da RDC - os guerrilheiros dizem que se estão a defender das milícias de origem Hutu - é que, com a sua presença, as forças congolesas e as autoridades se mantêm afastadas da área onde, por isso, mais facilmente, são explorados os seus recursos naturais, nomeadamente o coltão, que os relatórios de organizações internacionais, apontam como facto que o Ruanda é hoje um exportador deste minério essencial na economia mundial, especialmente do universo das novas tecnologias, sem que tal exista no seu subsolo, pelo menos em quantidades comerciais.

Agora, quando a generalidade dos prazos definidos no acordo de Luanda, um roteiro com etapas bem salientes para cumprir por parte dos rebeldes, a EAC e o Governo de Kinshasa estão a, de novo, acusá-los de não estarem a sair das localidades como previsto, dando como exemplo as localidades de Rumangabo e Kishishe, mo território de Rutshuru, no Kivu Norte.

Segundo a rádio das Nações Unidas na RDC, que faz parte da MONUSCO, uma das mais pesadas missões da ONU em todo o mundo, a Radio Okapi, a EAC vai enviar oficiais para o terreno de forma a verificar o cumprimento dos acordos, nas próximas horas, podendo mesmo começar já nesta sexta-feira.

A EAC recorda que a área em questão já está a ser patrulhada pelo contingente que a EAC tem no local para impor o fim das hostilidades, contando com mais de 2.000 militares de países, entre outros, como o Quénia e o Uganda, cuja missão passa por vigiar o cumprimento das regras assumidas e ainda de intervir militarmente contra os rebeldes se tal se manifestar essencial para concluir o acordado.

Algumas fontes locais citadas pelos media congoleses dizem que a lentidão do processo de retirada é ma manobra táctica dos rebeldes do M23 que lhes permite, na verdade, manter as áreas que consideram essenciais, enquanto vão fazendo de conta que estão a cumprir o Acordo de Luanda.

As razões de fundo para este conflito

O leste do Congo é uma das regiões mais ricas do mundo em recursos naturais estratégicos, desde logo o coltão e o cobalto, dois minerais incontornáveis para as novas industrias tecnológicas e aeronáutica de ponta, sem as quais toda a parafernália tecnológica de comunicações, como os simples smartphones, não existiria tal como a conhecemos, sem o coltão, e a indústria que exige a aplicação de baterias, como a dos automóveis eléctricos, seria algo muito distinto do que é hoje sem acesso ao cobalto, sendo ainda abundantes as denominadas terras raras, com igual uso nas novas tecnologias, o ouro ou os diamantes.

E a piorar o cenário, como combustível para esta fogueira, a RDC possui as maiores reservas do mundo de coltão e cobalto, mais de 80% de um e de outro, quase em exclusivo presentes no leste do país, sendo esta geografia geradora de grandes "apetites" pelas multinacionais do sector, que, segundo ONG"s internacionais de defesa dos Direitos Humanos, usam as guerrilhas para explorar sem controlo estas jazidas, afastar populações ou aterrorizar as forças do Estado que procuram chegar a estas "terras de ninguém" assoladas pela mais hedionda violência.

Mas também os vizinhos, como o Ruanda, desde sempre exploram estas riquezas de forma encapotada, porque, como chegou a ser denunciado publicamente por organizações internacionais, não existem depósitos de coltão no país mas este aparece como um dos grandes exportadores mundiais deste minério estratégico.

A par da questão dos recursos naturais congoleses nos Kivu Norte e Sul, existem ainda questões de natureza territorial com potencial incendiário na região, desde logo por razões étnicas, ou de sobrepopulação, sendo o Ruanda o que apresenta a maior densidade populacional na África continental, sendo apenas ultrapassado pelas Maurícias e Mayotte, pequenas ilhas francesas situadas entre Madagáscar e Moçambique, no Índico.

Este cenário conduz, desde logo, a uma situação em que o Ruanda, um país pequeno, hiperpovoado - mais de 400 pessoas por km2 -, mas um dos mais ricos e desenvolvidos em África do ponto de vista organizacional e económico, se vê fortemente tentado, segundo alguns analistas, a alargar a sua territorialidade para oeste, onde o leste congolês é hoje uma espécie de terra de ninguém, com fraca presença do Estado e dominado por guerrilhas e interesses obscuros ligados às suas riquezas naturais.

É de ter ainda em consideração que o Ruanda foi palco, em 1994, de um trágico episódio, conhecido como o genocídio ruandês, em que mais de 800 mil tutsis, a minoria étnica, foram massacrados com extrema violência, pela maioria Huto.

Este episódio histórico trágico levou a que largas centenas de milhares de ruandeses procurassem segurança na vizinha RDC, onde surgiram, nesse momento, algumas das guerrilhas mais activas, como a Frente Democrática de Libertação do Ruanda (FDLR) que vingou até hoje no leste congolês, sendo, juntamente com a ADF ugandesa, de génese islâmica, actualmente sob domínio do estado islâmico, e o M23, as mais sanguinárias.

Ver links em baixo nesta página para revisitar a cobertura do Novo Jornal à persistente crise no leste da RDC