O mote foi lançado, primeiro, pelo ANC, numa das suas últimas reuniões directivas, que chegou mesmo a propor ao Presidente sul-africano, e também líder deste histórico partido, que o país abandonasse o TPI, mas, depois de, num primeiro momento, Cyril Ramaphosa, ter anunciado que Pretória iria por esse caminho, deu um passo atrás e anunciou que a África do Sul se manteria dentro do TPI... mas com um pé de fora.

Se o ANC, que não esconde o seu agradecimento histórico ao apoio de Moscovo na sua luta contra o apartheid, e às independências africanas no geral, terá reagido por impulso, o que justifica o volte-face registado, provavelmente após fortes pressões dos países ocidentais, como os EUA, já as críticas recentes, e violentas, feitas pelo ministro da Justiça sul-africano aos "dois pesos e duas medidas" com que se rege o TPI, parecem estar revestidas de outra consistência.

Ronald Lamola, que tutela a Justiça e é um peso pesado dentro do Governo de Ramaphosa, acusa o TPI de ter cedido à pressão ocidental, dos aliados da Ucrânia, quando há cerca de dois meses emitiu um mandado de captura internacional contra Vladimir Putin, sob acusação de crimes de guerra na forma de passagem forçada de milhares de crianças ucranianas para território da Federação Russa, apesar de Moscovo negar tal acusação e garantir que se as famílias dos menores que foram levados das zonas de guerra, "para sua segurança e protecção", as quiserem de volta, não há impedimento algum.

Isto, porque, acrescentou Lamola, se o mandato emitido contra Putin aconteceu um ano depois do início da guerra, o mesmo TPI está a investigar há muitos anos o conflito na Palestina, entre palestinianos e israelitas, com atrocidades bem conhecidas e registadas, sem que tenha havido quaisquer mandatos de captura ou acusações contra dirigentes israelitas que estiveram por detrás da ocupação de territórios vizinhos e das atrocidades conexas.

"O facto de as investigações sobre as atrocidades na Plestina não terem ainda sido concluídas, enquanto na Ucrânia, iniciadas muito mais tardiamente, já produziram resultados contra o Presidente de um país que não é membro deste tribunal, é claramente uma injustiça", disse Ronald Lamola, num discurso no Parlamento, sublinhando os dois pesos e as duas medidas em uso no TPI.

Este assunto é de grande relevo na sociedade sul-africana e tem forte impacto político, porque não é só nas "trincheiras" do ANC que está a gerar forte incómodo, também Julius Malema, o líder dos cada mais fortes eleitoralmente Combatentes pela Liberdade Económica - Economic Freedom Fighters (EFF), que veio a público dizer que está pronto para liderar os milhares de jovens que o seguem na criação de uma linha de defesa a garantir a chegada e a partida de Putin, se este quiser estar em Durban, em Agosto, em "total segurança".

Para já, apesar de Pretório já ter feito o convite formal, não se sabe se Vladimir Putin vai estar em Durban para uma das mais importantes e históricas reuniões dos BRICS, organismo ad hoc que agrega o Brasil, a Rússia, China, Índia e África do Sul, onde deve ser discutida a adesão de novos membros, passando a organização a denominar-se BRICS+, tendo o seu porta-voz, Dmitri Peskov, admitido que poderá ir mas só mais tarde haverá um anúncio da decisão que vier a ser tomada.

Esta Cimeira é ainda de grande importância para o chefe do Kremlin, porque os BRICS são uma das mais robustas linhas avançadas da luta titânica que trava, num esforço onde a China é a grande aliada, contra a hegemonia e controlo dos EUA e aliados ocidentais na actual ordem mundial definida por regras saídas do pós-II Guerra Mundial, que pretendem ver substituída por uma nova ordem mundial multilateral baseada na cooperação entre iguais, que tem estado a fazer caminho, especialmente no denominado "Sul Global".

Alguns analistas admitem que Putin não poderá correr o risco de ir a Durban sem que a África do Sul abandone o TPI ou, se existir essa possibilidade, ou criar garantias de imunidade legal para Chefes de Estado ou suspender temporariamente a sua participação, porque existe o risco de uma parte das forças de segurança se sentirem tentadas a forçar o cumprimento do mandato do TPI.

Mas, nessa circunstância, a Cimeira dos BRICS terá menos peso, e brilho, porque, apesar do actual contexto de guerra na Ucrânia, Vladimir Putin é uma das personagens de maior relevo mediático em todo o mundo, embora Peskov também tenha dito que, seja qual for a composição da sua comitiva, a Rússia estará representada.

O TPI, que não faz parte da estrutura orgânica das Nações Unidas, ao contrário do Tribunal Internacional de Justiça TIJ), foi criado ao abrigo do Tratado de Roma, em 1998, entrou em actividade formal em 2000, mas dele não fazem parte as grandes potências como os EUA, a Rússia, a China, mas também dezenas de outros países, entre estes a Ucrânia ou Israel.

O TPI tem como objectivo julgar quatro tipos de crimes: genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crimes de agressão, mas, até hoje, além de chefes de guerra africanos, como o congolês Thomas Lubanga ou o maliano Ahmad al-Faqi al-Mahdi, e líderes regionais do conflito na antiga Jugoslávia, na década de 1990, como o servo-bósnio Radovan Karadzic, a sua actividade tem sido sujeita a fortes críticas pela inércia face a conflitos onde os países ocidentais têm interesses e são aliados dos potenciais condenados.

Esta situação, melindrosa para a África do Sul, pode, no entanto, ser aligeirada na forma como Pretória tem criticado o TPI, porque, numa clara demonstração de proximidade, os lideres do TPI recebem hoje, em Haia, nos Países Baixos, o Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, que ali se deslocou oficialmente, independentemente de esta instância judicial ter emitido um mandato internacional de captura contra o seu "inimigo".

Alias, Zelensky usou mesmo o TPI para se distanciar de um dos episódios de maior melindre nos 14 meses de guerra na Ucrânia, que foi o ataque por dois drones, abatidos pela defesa antiaérea local, na quarta-feira, ao Kremlin, naquilo que Moscovo considerou um atentado terrorista que visava assassinar o Presidente russo.

Ao negar a autoria ucraniana do ataque ao Kremlin, Zelensky disse que o seu país não ataca outros países nem Presidentes desses países, apenas se defende, e espera apenas que "o tribunal (TPI) faça o seu trabalho".

Sobre este episódio, embora alguns analistas tenham admitido que possa ter-se tratado de uma operação de "falsa bandeira", de forma a justificar alguma iniciativa russa, embora seja difícil de perceber o alcance dessa possibilidade, o Kremlin já veio dizer que se roga o direito de retaliar "onde, quando e como entender mais adequado" à gravidade do sucedido.

Embora sem ligação oficial ao ataque ao Kremlin, na noite de quarta para quinta-feira, 04, dezenas de cidades ucranianas foram alvo de ataques russos por misseis e drones, tendo chegado às redes sociais vários vídeos com fortes explosões, alegadamente depósitos de armamento ocidental que seria usado na contra-ofensiva esperada para esta Primavera.