Num vídeo com mais de 10 minutos, o chefe dos soldados da fortuna Wagner explica, sempre em tom de desafio, que o seu objectivo com a marcha em direcção a Moscovo era para garantir que o seu grupo privado de mercenários não era desmantelado, como o deixava antever a imposição do Ministério da Defesa para a assinatura de contratos com todas as forças paramilitares com as Forças Armadas.
Porém, estas palavras, sem deixar o tom de desafio a que habituou o mundo, são de difícil digestão pela verdade dos factos, porque, logo após o início da marcha dos seus homens, Prigozhin dissew claramente que visava chegar ao Kremlin para substituir Putin na Presidência da Rússia.
Disse mesmo que "foi a sociedade russa que pediu esta acção" robusta, na qual avançou para a capital russa, a partir de Rostov-on-Don, onde está situado o quartel-general da operação militar na Ucrânia, que tomou de assalto sem disparar um tiro.
Yevgeny Prigozhin garante nesta aparição musculada que o Grupo Wagner procurou chamar a atenção para a "grave crise de segurança" que atravessa a Federação Russa, e que não esteve em momento algum na mente do chefe dos mercenários derrubar o Presidente Putin, lembrando que mandou os seus homens dar meia volta quando percebeu que se continuasse iria ver "derramar rios de sangue" russo sobre o chão russo.
E notou que esta travagem a fundo na intentona se verificou também quando percebeu que os problemas para os quais queria a atenção de Putin virada estavam a ser efectivamente analisados.
Para já, não se sabe de qualquer reacção do Kremlin, mas sabe-se que o líder do Grupo Wagner deve seguir para a Bielorrússia, como ficou tratado pela intermediação do Presidente bielorusso, Alexander Lukashenko, que permitiu uma saída airosa a Prigozhin pouco antes de a sua coluna começar a ser destroçada pela aviação russa e pelo grupo tchetcheno de Ramzan Kadirov.
Sabe-se ainda que os seus homens que não integraram a marcha deverão ser integrados nas forças regulares de Moscovo e os outros terão de sair, embora sem castigos pelo que fizeram.
Sobre o futuro da estrutura mais alargada do Grupo Wagner, nomeadamente a sua presença em África, segundo analistas citados pelos media russos e ocidentais, a organização deverá ser dividida com a criação de um ramo internacional a que será dado outro nome mas mantendo, no essencial, a sua missão, que é manter-se ao serviço da estratégia externa de Moscovo.
O Grupo fundado por Prigozhin tem presença consolidada em países como o Mali, o Burkina Faso, a RCA e a Líbia, e também no Sudão... Há ainda registo da sua actividade noutras latitudes africanas, embora sem o reconhecimento oficial.
Mantém-se igualmente envolvo no nevoeiro da dúvida sobre o que realmente se passou, mas há teses com colagem à realidade histórica da Rússia e verosimilhança com o contexto actual,
Entre os observadores militares e especialistas em contra-inteligentsia, uma outra hipótese começa a ganhar dimensão, que é Prigozhin fazer parte de uma operação de grade envergadura para destapar eventuais alçapões no poder do Kremlin, lançando esta operação-teatro para ver eventuais "inimigos" internos a sair da "toca", o que seria uma manifestação de que algo de mais sério ameaça o poder de Vladimir Putin na sombra.
Mas ainda há outras versões e possibilidades admitidas por analistas militares. Uma delas, consistente com os dados conhecidos das últimas 72 horas na frente da guerra, que seria aproveitar esta "trapalhada ficcionada" para movimentar as forças Wagner para norte, com a missão de abrir uma nova linha da frente da guerra, obrigando os ucranianos a destacar algumas das suas brigadas mais efectivas para travar esta nova frente.
Isto, porque, como já foi notado, apesar de Prigozhin ter anunciado que com ele seguiam mais de 25 mil homens rumo a Moscovo, as análises mais apuradas mostram que nem 4 mil estavam na caravana militar, de onde sobressaia a falta de poder de fogo, exceptuando meia dúzia de blindados e alguns camiões sem nenhuma capacidade de enfrentar as unidades regulares das forças leais ao Kremlin.
Ou seja, existe a possibilidade de os mais de 50 mil homens do Grupo Wagner estejam agora, tendo-se deslocado camuflados pela histeria criado em torno do avanço sobre Moscovo, a norte da linha da frente, na região de Belgorod, ou mesmo a partir da Bielorrússia para um eventual avanço sobre Kiev, ou mesmo mais a oeste, rumo a Lviv o que seria uma surpresa e obrigaria a um exercício de contorcionismo muito difícil das forças ucranianas empenhadas na contra-ofensiva, abrindo brechas que permitiriam aos russos abrir caminho para oeste.
Outas possibilidades em aberto passam pela possibilidade de o ocidente ter já concluído que não conseguiu isolar a Rússia do resto do mundo devido à recusa em alinhar nesse objectivo dos EUA e aliados da NATO por parte de grandes potências como China e Índia, ou mesmo Brasil, ou países com importância regional, como África do Sul, Indonésia, Argélia, Argentina, etc...
E ainda que esta guerra, ao invés de travar a emergência de uma nova ordem mundial que desafia a do ocidente/EUA, está a ajudar a esse caminho com o eixo Pequim-Moscovo a ganhar cada vez mais tracção global, como o demonstra a adesão cada vez maior aos BRICS, organização que agrega Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, e à qual há pelo menos 30 países que querem aderir já na Cimeira de Agosto, na África do Sul, o membro africano deste cada vez mais poderoso braço económico que já abraça mais de 50% do PIB global.
Outra abordagem é a crise económica que começa a ser insustentável politicamente para os governos ocidentais, desde logo os EUA, com a pré-campanha já em curso, e outros como a Alemanha, a viverem recessões abrasivas, e onde as suas opiniões públicas começam a exigir o fim do conflito imediato devido ao impacto claro que este tem na sua qualidade de vida.
Apesar de os media ocidentais estarem empenhados em manter longe dos holofotes as cada vez mais ruidosas manifestações e protestos populares no ocidente, para os governos, em fase de ciclos eleitorais em curso ou a aproximarem-se, a guerra na Ucrânia pode ser uma sentença de morte política se não for travada.
O exemplo alemão
O medo de perdas políticas significativas entre os dois maiores partidos alemães e que perfazem a coligação que governa a maior economia europeia, o SPD, sociais-democratas, do chanceler Olaf Scholz, e a CDU, conservadores, começa a fazer sentido, com o avanço claro da extrema-direita radical xenófoba e racista.
Exemplo desse avanço foi a eleição, pela primeira-vez, de um líder a administração local na segunda volta das eleições na comarca de Sonneberg, Turíngia, leste do país, pela AfD (Alternativa para a Alemanha), o partido extremista.
Mas o pior pode estar para chegar, porque a AfD tem vindo a subir com forte consistência nos últimos anos e tem actualmente, segundo algumas sondagens, mais de 20% das intenções de voto no todo nacional, chegando aos 35% nalgumas regiões.