Se a Ucrânia lançar por estes dias a sua muito aguardada contra-ofensiva, para a qual se apetrechou com milhões de toneladas de armamento fornecido pelos países ocidentais, NATO/EUA, com a qual quer acabar com esta guerra expulsando os invasores russos de forma definitiva para lá das suas fronteiras, provavelmente a primeira vítima é o corredor dos cereais permitido pela Armada russa do Mar Negro, que seria fechado de imediato.
Sendo os cereais a grande fonte de receitas ucranianas no momento, a par do fluxo ininterrupto de dinheiro europeu, norte-americano e do FMI - com um programa de mais de 100 mil milhões USD, um valor recorde histórico -, embora também sirvam aos russos mas menos estratégicos, se a contra-ofensiva avançar, o corredor no Mar Negro fecha a seguir. Portanto, em cima da mesa do Governo ucraniano está decidir o que fazer?
Uma coisa parece já certa: O Presidente Volodymyr Zelensky já veio dizer, numa entrevista à BBC, que as forças ucranianas precisam de mais tempo para preparar a contra-ofensiva, mas não é difícil perceber que o que Kiev pretende é ver assinada a prorrogação do acordo existente por mais alguns meses, estando a enfrentar uma já conhecida relutância russa, justificada com a falta de cumprimento da parte do acordo que permite exportar os seus cereais e fertilizantes sem os espartilhos das sanções ocidentais, entre outros, sobre os fretes e seguros dos navios graneleiros.
Se a contra-ofensiva ucraniana avança, é quase certo que a Armada russa volta a fechar o corredor do Mar Negro por onde a Ucrânia exportou pelo menos 30 milhões de toneladas de cereais desde Julho do ano passado. O que fazer, deverá estar Zelensky a pensar. E a resposta, pelo menos tendo em conta o que disse neste entrevista à BBC, deverá ser esperar primeiro que o acordo seja prolongado para depois mandar avançar as tropas.
Mesmo que disso resulte a esperada acção russa no Mar Negro, Kiev poderá sempre acusar Moscovo de não ter palavra e não ser confiável nos acordos que assina, porque o documento que permite o trânsito dos cereais pelo Mar Negro em lado nenhum refere poder ser condicionado pelo evoluir do conflito e as suas naturais diferentes fases.
Porém, o que Zelensky diz para justificar o refrear dos ímpetos quando à contra-ofensiva, se não se tratar de uma manobra de distracção para os russos baixarem a guarda e, com isso, poder surpreende-los, é que avançar agora traduzir-se-ia por um número de mortos inaceitável.
Alguns analistas já disseram que a Ucrânia vai mesmo ter de tirar um inesperado coelho da cartola para conseguir obter algum efeito surpresa face ao longo tempo que as chefias russas tiveram para preparar o tereno, entrincheirando as suas unidades ao longo de mais de 800 kms nos 1.200 de toda a linha da frente, bem como dispor de unidades de reforço e reforçar as linhas de logística. Será esta entrevista de Zelensky o tal coelho? Ver-se-á em breve.
O acordo do trigo e do milho
Seja como for, a Turquia já veio dizer que as partes têm de chegar a um entendimento esta quinta-feira porque o país vai para eleições gerais nos próximos dias e os seus dirigentes têm de se focar nesse momento decisivo.
Isto é muito relevante porque a Turquia tem um papel-cheve neste acordo dos cereais, oficialmente denominado Iniciativa dos Cereais do Mar Negro, constituindo-se, a par da ONU, como pivot das negociações que passaram por, antes da assinatura, em Julho de 2022, assinar dois documentos separados, um entre Ucrânia, Turquia e ONU, e o outro entre a Federação Russa, a Turquia e as Nações Unidas.
A ideia inicial era, como se verificou, a frota do Mar Negro russa abrir um corredor para permitir a passagem dos navios graneleiros até aos portos do sul do país, especialmente Odessa, carregando as milhões de toneladas ali paradas, sendo que o mesmo documento obrigava a que os países ocidentais levantassem as sanções que impedem o aluguer e os seguros aos navios que demandam aos portos russos para carregar cereais e fertilizantes, on que Moscovo diz que não está a acontecer como acordado.
A par deste problema, o Presidente russo, Vladimir Putin, que acusou logo a parte ucraniana em Setemro de 2022 de falhar no acordo, porque os seus cereais não estavam a ir para África, como se comprometeu, tal como a ONU, cujo Secretário-Geral se empenhou pessoalmente nessa campanha mediática de pressão sobre Moscovo por causa da fome que grassava no Corno de África, mas sim para os países ocidentais mais ricos, o que o chefe do Kremlin voltou a frisar já este ano.
E essa é a verdade que acabou por se verificar, sem margem para dúvidas. Os países europeus, como a Espanha, Países Baixos, Itália, e asiáticos, como a China, a Coreia do Sul e o Japão, são os principais destinos para os cereais ucranianos, com apenas o Egipto a intrometer-se nesta lista.
Os países mais pobres de África, como a Somália, a Etiópia ou o Sudão e a Eritreia, que estiveram no centro da campanha liderada pelo Secretário-Geral da ONU, António Guterres, e pelos EUA, com forte apoio dos media ocidentais, e que deveriam estar no topo da lista, de longe os que menos cereais ucranianos receberam.
Agora, já no limite mais apertado para renovar este acordo, os russos voltam a exigir que a parte que lhes diz respeito seja cumprida, até porque a anterior prorrogação foi feita com base nisso mesmo, a de que em dois meses estes prolemas seriam resolvidos.
Sabe-se que as Nações Unidas e a Turquia se esforçaram para levar os países da Europa Ocidental e os EUA a anularem as sanções sobre os seguros e os fretes de navios que carregam cereais e fertilizantes nos portos russos, mas se se foi longe suficientemente para Moscovo, só nas próximas horas ou dias se saberá.
Mas sabe-se de forma segura que o acordo termina no próximo dia 18 e que se não for renovado, a prazo isso terá consequências nos mercados internacionais, sendo as mais graves esperadas em África, porque é neste continente que o trigo e o milho russos e ucranianos, além dos fertilizantes, mais falta fazem, sabendo-se, como se pode ver aqui, que nos mais ricos, ma grande parte destes cereais ucranianos são para alimentar... porcos.
A brecha para a paz entrar...
Mas há ainda uma possibilidade, apesar de ínfima, de estas palavras de Zelensky terem um fundo menos pérfido ou negligenciável, que é a de estarem a ser desenhadas saídas alternativas, como a passagem da linha da terra das trincheiras para a mesa das negociações, especialmente agora que a China entrou nesse xadrez complexo e os EUA estão numa nova fase de reaproximação diplomática a Pequim.
Isto tem como base de sustentação as esquivas palavras recentes do secretário Conselho Nacional de Segurança da Ucrânia, Aleksey Danilov, uma proeminente figura do regime ucraniano, que veio dizer que quaisquer negociações entre Kiev e Moscovo só podem acontecer com base nos termos ucranianos.
Mas o mais importante é que Danilov admite existir um conjunto alargado de aliados ocidentais de Kiev que estão a pressionar o Presidente Zelensky para aceitar mudar de caminho da frente de batalha para a mesa das negociações.
"Qualquer tipo de pressão para nos fazer sentar à mesa com os russo sob os termos avançados por Moscovo são totalmente impossíveis de aceitar", disse, acrescentado que "ninguém vai conseguir vender os interesses nacionais ucranianos, por mais importantes que sejam esses países", numa clara confirmação de que essa pressão existe é cada vez mais pesada e tem como origem alguns pesos-pesados da NATO.
Alias, isto só confirma uma mudança de agulha na Europa ocidental, onde a crise económica, a crescente pressão popular sobre os governos e a fragilidade de alguns políticos, com clara perda de tracção eleitoral, já vem a ser notada, mesmo com o esforço concertado dos media ocidentais para o esconder.
Contexto da guerra na Ucrânia
A 24 de Fevereiro de 2022 as forças russas iniciaram a invasão da Ucrânia por vários pontos, tendo o Presidente russo dito que se tratava de uma "operação militar especial", sublinhando que o objectivo não era (é) a ocupação do país vizinho, condição que evoluiu depois para a anexação de territórios no Donbass mas também as regiões de Kherson e Zaporijia, mas sim a sua desmilitarização e desnazificação e assegurar que Kiev não insiste na adesão à NATO, o que Moscovo considera parte das suas garantias vitais de segurança nacional.
O Kremlin critica há vários anos fortemente o avanço da NATO para junto das suas fronteiras, agregando os antigos membros do Pacto de Varsóvia, organização que também colapsou com a extinção da URSS, em 1991.
Moscovo visa ainda garantir o reconhecimento de Kiev da soberania russa da Península da Crimeia, invadida e integrada na Rússia, depois de um referendo, em 2014, e ainda a independência das duas repúblicas do Donbass, a de Donetsk e de Lugansk, de maioria russófila, que o Kremlin já reconheceu em Fevereiro, tendo acrescido a esta reivindicação as províncias de Kherson e Zaporijia, depois da realização de referendos que a comunidade internacional, quase em uníssono, não reconhece.
Do lado ucraniano, a visão é totalmente distinta e Putin é acusado de estar a querer reintegrar a Ucrânia na Rússia como forma de reconstruir o "império soviético", que se desmoronou em 1991, com o colapso da União Soviética.
Kiev insiste que a Ucrânia é una e indivisível e que não haverá cedências territoriais como forma de acordar a paz com Moscovo, sendo, para o Presidente Volodymyr Zelensky, essencial o continuado apoio militar da NATO para expulsar as forças invasoras.
A organização militar da Aliança Atlântica está a ser, entretanto, acusada por Moscovo de estar a desenrolar uma guerra com a Rússia por procuração passada ao Exército ucraniano, o que eleva, segundo o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov, o risco de se avançar para a III Guerra Mundial, com um confronto directo entre a Federação Russa e a NATO, que tanto o Presidente dos EUA, Joe Biden, como o Presidente Vladimir Putin, da Rússia, já admitiram que se isso acontecer é inevitável o recurso ao devastador arsenal nuclear dos dois lados desta barricada que levaria ao colapso da humanidade tal como a conhecemos.
Esta guerra na Ucrânia contou com a condenação generalizada da comunidade internacional, tendo a União Europeia e a NATO assumido a linha da frente da contestação à "operação especial" de Putin, que se materializou através de bombardeamentos das principais cidades, por meio de ataques aéreos, lançamento de misseis de cruzeiro e artilharia pesada, e com volumosas colunas militares a cercarem os grandes centros urbanos do país, mas que agora está concentrada no leste e sudeste da Ucrânia.
Na reacção, além da resistência ucraniana, Moscovo contou com o maior pacote de sanções aplicadas a um país, que está a causar danos avultados à sua economia, sendo disso exemplo a queda da sua moeda nacional, o rublo, que chegou a ser superior a 60%, embora já tenha, entretanto, recuperado.
Estas sanções, que já levaram as grandes marcas mundiais a deixar a Rússia, como as 850 lojas da McDonalds, a mais simbólica, abrangem ainda os seus desportistas, artistas, homens de negócios, a banca e grande parte das suas exportações, incluindo o sector energético, do gás natural e em parte do petróleo...
Milhares de mortos e feridos e mais de 9,5 milhões de refugiados internos e nos países vizinhos da Ucrânia são a parte visível deste desastre humanitário.
O histórico recente desta crise no leste europeu pode ser revisitado nos links colocados em baixo, nesta página.