Vladimir Putin justifica a acusação afirmando que a quase totalidade dos navios que deixaram as costas ucranianas com cereais, desde que estas rotas marítimas foram abertas, tiveram como destino os países europeus ricos e não as nações pobres de países africanos e asiáticos.
Depois do início da guerra na Ucrânia, a 24 de Fevereiro, as rotas do Mar Negro foram fechadas pela presença da marinha de guerra russa, tendo surgido uma gigantesca campanha de propaganda nos media internacionais a relatar o surgimento de milhões de pessoas em risco de morte, especialmente no Corno de África, por causa da fome gerada pela falta de cereais da Ucrânia, um dos maiores exportadores do mundo.
Foi no decorrer deste cenário que a 22 de Julho, sob os auspícios das Nações Unidas e da Turquia, Rússia e Ucrânia assinaram acordos paralelos com os dois promotores - a União Europeia, como um dos mais fortes apoiantes da continuação da guerra, ficou de fora, beliscando décadas de tradição pacifista - para a abertura de rotas marítimas a partir das costas dos dois países até um centro de controlo e inspecção de cargas em Istambul, no Estreito do Bósforo, antes da continuação para diversos pontos do mundo onde estão a ser entregues milhões de toneladas de cereais, especialmente trigo e milho.
Mas, como o Novo Jornal já tinha noticiado aqui e aqui, verificou-se de imediato que os países afectados pela fome em África não estavam nas rotas dos navios cerealíferos que começaram a sair às dezenas das costas ucranianas, sendo, em vez, os destinos principais os países ricos da Europa e da Ásia, tendo apenas saído em mais de um mês, apenas um navio para o Djibuti, que fora fretado pelas Nações Unidas, enquanto milhares de pessoas perecem em países como a Somália, Etiópia ou Sudão.
E foi nesta circunstância, onde sobressai nitidamente a hipocrisia ocidental, que, depois de usarem a fome em África como pressão sobre a ONU e a Rússia para apressar a abertura, especialmente o Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, que chegou a acusar a Rússia de estar a condenar à morte milhares de pessoas devido à fome pela falta dos cereais ucranianos, eis que se constata que, afinal, a prioridade ucraniana era vender os cereais onde eles pudessem render mais e mais depressa, ou seja, os países ricos da União Europeia, ou os distantes Japão e Coreia do Sul, entre outros.
E foi isso que fez Vladimir Putin já esta quarta-feira, num fórum económico que decorre no extremo oriente da Rússia, em Vladivostok, acusando os países ocidentais de terem mentido de forma consciente quando alegavam a urgência de retoma das exportações de cereais ucranianos devido à fome e aos distúrbios em curso devido aos elevados preços dos grãos.
"A esmagadora maioria dos navios que zarpam dos portos ucranianos com cereais têm como destino a União Europeia", deixando no ar a ideia de que os termos do acordo de 22 de Julho deverão ser mudados rapidamente para que os milhões de pessoas com fome e carências alimentares no mundo sejam fornecidos dos cereais que os países ocidentais lhes prometeram.
De acordo com o estabelecido no documento assinado a 22 de Julho, que consiste em duas partes, uma assinada plea Rússia, ONU e Turquia, e a outra pela Ucrânia, ONU e Turquia, os navios cerealíferos voltaram a percorrer as rotas marítimas do Mar Negro para as costas da Ucrânia para carregar cereais, sendo-lhes feito uma inspecção prévia e posterior em Istambul, para garantir que estes não carregam armas ou outras cargas não especificadas no acordo.
Para a Rússia, este acordo permitiu igualmente a exportação de cereais e fertilizantes, que, embora não estivessem sob sanções ocidentais, o impedimento de feitura de seguros aos navios, de facto impediam que os seus grãos e adubos fossem colocados nos mercados internacionais.
"Como fizeram ao longo de séculos com as suas antigas colónias, os países europeus estão, de novo, a enganar esses povos, usando-os para abrir os portos ucranianos mas para levar os cereais para os seus portos, não dos africanos e asiáticos mais pobres", disse Putin, advertindo para a crescente fome no mundo devido a esta hipocrisia.
Dos quase 90 navios que já deixaram os portos ucranianos com quase dois milhões de toneladas de cereais, apenas dois, fretados pelas Nações Unidas, seguiram para países pobres, sendo que um já chegou ao Djibuti, e o outro está ainda a caminho do Iémen, o primeiro com 23 mil toneladas e o segundo com 37 mil toneladas de trigo.
Para ultrapassar este imbróglio, Putin avançou que vai manter uma conversa séria com os signatários do acordo de 22 de Julho, o Presidente turco, Recep ERdogan, e a ONU de António Guterres, de forma a garantir que os cereais seguem mesmo, e de uma vez por todas, para onde estão os milhões de pessoas em perigo de vida por causa da fome.
Por outro lado, o ministro dos Negócios Estrangeiros russo, Sergei Lavrov, já tinha anteriormente notado que existem problemas quanto às exportações dos cereais russos devido à demora ocidental em limpar as sanções secundárias que impedem o seu expedimento, como a questão dos seguros internacionais sobre os navios em trânsito.
E a guerra continua
Ao fim de seis meses de guerra, a Ucrânia parece estar a conseguir, pelo menos de acordo com fontes norte-americanas e britânicas, empurrar ligeiramente as forças russas que ocupam parte do território no sul, junto à costa do Mar Negro.
Este relativo sucesso, é fruto da previamente anunciada contra-ofensiva das forças ucranianas que visa, segundo o Presidente Volodymyr Zelensky, reerguer a bandeira ucraniana nos territórios perdidos nestes meses para os invasores.
Já esta quarta-feira, 07, Zelensky veio admitir que as suas unidades estão a enfrentar problemas no avanço, justificando com a prioridade de salvar vidas dos militares ucranianos no esforço em curso para expulsar os invasores russos.
Estes avanços ucranianos, apesar de ligeiros, que estão a ser anunciados por Kiev, são resultado do emprego de perto de 100 mil homens nesta contra-ofensiva, em unidades equipadas com armamento sofisticado oferecido pelos EUA, especialmente os Howitzers M777, canhões de longo alcance, e os HIMARS, unidades móveis de lançamento de foguetes de precisão.
Os russos, por sua vez, garantem que as tropas de Kiev estão a ser fortemente combatidas e rechaçadas com elevadas perdas, deixando garantias, que, tal como as certezas ucranianas são impossíveis de confirmar, todos os objectivos da sua "operação militar especial" estão a ser conseguidos no tempo e da forma prevista.
Não há forma de confirmar quem está a mentir porque nesta guerra, tal como em quase todas as outras, a mentira tem mil caras e a verdade foi a sua primeira vítima.
Mas sabe-se que os EUA estão a perder o pudor em entregar cada vez mais armamento sofisticado a Kiev e a reduzir os cuidados em entregar peças que não permitam ataques em profundidade no território da Federação Russa porque isso poderia levar Moscovo a considerar um ataque directo dos EUA à sua geografia existencial.
Numa notícia recente, a publicação norte-americana The Hill diz que o Presidente Joe Biden acredita agora que pode passar incólume se abrir a torneira ao armamento de maior alcance a Kiev sem que isso leve a uma escalada.
Isto, porque os EUA têm mantido um perfil baixo quando se trata de permitir a entrega de peças como aviões, helicópteros ou artilharia pesada de precisão aos ucranianos pelo receio de que estes os usem para ataques de profundidade à Rússia, podendo com isso despoletar uma escalada que conduza a um confronto directo entre russos e os aliados ocidentais da NATO; o que, tanto Joe Biden como o chefe do Kremlin, Vladimir Putin, admitiram desde o início que tal confronto teria como desfecho inevitável o recurso ao arsenal nuclear e, por isso, uma catástrofe atómica global.
Porém, agora, ao que conta The Hill, citado pelo site da Russian Today, esse receio está a diluir e Washington tende a abrir mais e mais a porta para a saída de armamento cada vez mais poderoso para Kiev combater os russos porque, nos últimos meses, os americanos estão a enviar mais, em volume e qualidade, armamento e a reacção russa tem sido ficar-se por ameaças, contando Joe Biden que isso significa que Moscovo não passará disso mesmo, de reacções verbais.
De Moscovo, a reacção, sempre que aumentam os envios de armas para a Ucrânia, é que estas só vão prolongar o conflito sem que isso tenha um impacto importante na disposição das unidades de combate de Moscovo no terreno.
Carne para canhão
O Presidente da Federação Russa, sobre este tema, aproveitou uma conferência sobre segurança em Moscovo para acusar os Estados Unidos de estarem a usar os ucranianos como "carne para canhão" de forma a prolongar o conflito na Ucrânia para desgastar a estrutura militar russa.
A guerra na Ucrânia, que já trespassou a barreira psicológica dos seis meses de duração, após a invasão pelas forças russas, a 24 de Fevereiro, está a entrar numa fase em que os objectivos militares que compreendam avanços e ganhos territoriais, de um e do outro lado, têm de suceder nas próximas duas a três semanas porque a aproximação do rigoroso inverno nesta parte do leste europeu torna impossível quaisquer manobras regulares.
Esse facto permite aos analistas militares colocar como mais forte hipótese a procura dos russos de consolidar posições no Donbass e no sul da Ucrânia, enquanto as forças de Kiev vão aproveitar este espaço de tempo para provocar danos na moral dos invasores.
E é neste cenário que o chefe do Kremlin, há cerca de duas semanas, aproveitando uma conferência sobre segurança que teve lugar em Moscovo, procurou aplicar um golpe psicológico nas forças ucranianas, afirmando que estas estão a ser usadas pelos Estados Unidos da América e pelos seus aliados europeus como "carne para canhão" de forma a prolongar o mais possível esta guerra com a qual Washington quer fragilizar o poderio militar de Moscovo.
Com estas palavras, Vladimir Putin estava a dizer aos combatentes ucranianos que não é pela defesa da democracia ou do país que estão a morrer na condição de "carne para canhão" mas sim porque isso interessa aos ocidentais como forma de enfraquecerem a Rússia através de uma guerra de desgaste o mais longa possível que alimenta através de uma máquina propagandística que visa "criar uma fobia aos russos e uma ideia anti-Rússia com base na enfatização de valores fermentados numa ideologia neo-nazi" que vê o povo do Donbass como "objecto natural de aniquilação", apostado no "fornecimento contínuo de armas pesadas aos ucranianos".
Estas palavras foram depois complementadas por uma declaração do ministro da Defesa russo, Sergei Shoigu, que retira a este conflito parte do risco que continha numa escalada catastrófica ao afirmar que Moscovo não prevê em nenhuma circunstância recorrer ao seu arsenal nuclear na Ucrânia, o que tem sido sub-repticiamente admitido pelo vice-presidente do Conselho de Segurança da Rússia, Dmitri Medvedev, antigo Presidente russo, ao longo dos últimos meses, o que representa muito atendendo que se trata de um dos mais fieis colaboradores de Putin.
Mas Shoigu, citado pela Reuters e noticiado pelo The Guardian, fez uma acusação grave aos ocidentais que estão mais próximos de Kiev e mais alimentam o seu esforço de guerra, Washington e Londres, acusando-os de estarem a planear directamente as acções militares levadas a cabo pelos militares ucranianos, na tal condição de "carne para canhão" referida por Putin na mesma conferência internacional de segurança que teve lugar na capital russa.
Contexto da guerra na Ucrânia
A 24 de Fevereiro as forças russas iniciaram a invasão da Ucrânia por vários pontos, tendo o Presidente russo dito que se tratava de uma "operação militar especial", sublinhando que o objectivo não é a ocupação do país vizinho mas sim a sua desmilitarização e desnazificação e assegurar que Kiev não insiste na adesão à NATO, o que Moscovo considera parte das suas garantias vitais de segurança nacional.
O Kremlin critica há vários anos fortemente o avanço da NATO para junto das suas fronteiras, agregando os antigos membros do Pacto de Varsóvia, organização que também colapsou com a extinção da URSS, em 1991.
Moscovo visa ainda garantir o reconhecimento de Kiev da soberania russa da Península da Crimeia, invadida e integrada na Rússia, depois de um referendo, em 2014, e ainda a independência das duas repúblicas do Donbass, a de Donetsk e de Lugansk, de maioria russófila, que o Kremlin já reconheceu em Fevereiro.
Do lado ucraniano, a visão é totalmente distinta e Putin é acusado de estar a querer reintegrar a Ucrânia na Rússia como forma de reconstruir o "império soviético", que se desmoronou em 1991, com o colapso da União Soviética.
Kiev insiste que a Ucrânia é una e indivisível e que não haverá cedências territoriais como forma de acordar a paz com Moscovo, sendo, para o Presidente Volodymyr Zelensky, essencial o continuado apoio militar da NATO para expulsar as forças invasoras.
A organização militar da Aliança Atlântica está a ser, entretanto, acusada por Moscovo de estar a desenrolar uma guerra com a Rússia por procuração passada ao Exército ucraniano, o que eleva, segundo o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov, o risco de se avançar para a III Guerra Mundial, com um confronto directo entre a Federação Russa e a NATO, que tanto o Presidente dos EUA, Joe Biden, como o Presidente Vladimir Putin, da Rússia, já admitiram que se isso acontecer é inevitável o recurso ao devastador arsenal nuclear dos dois lados desta barricada que levaria ao colapso da humanidade tal como a conhecemos.
Esta guerra na Ucrânia contou com a condenação generalizada da comunidade internacional, tendo a União Europeia e a NATO assumido a linha da frente da contestação à "operação especial" de Putin, que se materializou através de bombardeamentos das principais cidades, por meio de ataques aéreos, lançamento de misseis de cruzeiro e artilharia pesada, e com volumosas colunas militares a cercarem os grandes centros urbanos do país, mas que agora está concentrada no leste e sudeste da Ucrânia.
Na reacção, além da resistência ucraniana, Moscovo contou com o maior pacote de sanções aplicadas a um país, que está a causar danos avultados à sua economia, sendo disso exemplo a queda da sua moeda nacional, o rublo, que chegou a ser superior a 60%, embora já tenha, entretanto, recuperado.
Estas sanções, que já levaram as grandes marcas mundiais a deixar a Rússia, como as 850 lojas da McDonalds, a mais simbólica, abrangem ainda os seus desportistas, artistas, homens de negócios, a banca e grande parte das suas exportações, ficando apenas de fora o sector energético, do gás natural e em pate do petróleo...
Milhares de mortos e feridos e mais de 5,5 milhões de refugiados nos países vizinhos da Ucrânia são a parte visível deste desastre humanitário.
O histórico recente desta crise no leste europeu pode ser revisitado nos links colocados em baixo, nesta página.