Por detrás desta nova postura, aparentemente mais versátil de Volodymyr Zelensky, embora frisando que a guerra para libertar os territórios ocupados pelas forças russas continua, estão repetidas "fugas" de informação veiculadas pelos media norte-americanos, no sentido de mostrar que os EUA estão a trabalhar já num cenário pós-cessar-fogo.

Nesse xadrez estão as as longas conversações mantidas secretamente entre EUA e Rússia, noticiadas pelo Washington Post e Wall Street Journal, os encontros entre os chefes das secretas russa e norte-americana, noticiados pela Bloomberg, as afirmações recentes do comandante militar norte-americano, general Mark Milley, difundidas pelo The Guardian, a aconselhar o regime de Kiev a aceitar negociações de paz com Moscovo, até ao pedido, em público e sem camuflagens retóricas, do Presidente francês, Emmanuel Macron, ao mesmo tempo que avisava que iria continuar a dialogar com Vladimir Putin, para que o Presidente chinês, Xi Jinping, apele ao senhor do Kremlin para se esforçar mais um bocadinho no sentido de possibilitar negociações entre Moscovo e Kiev.

Depois de o Presidente norte-americano Joe Biden ter elogiado a "tremenda vitória" dos ucranianos em Kherson, de onde os russos se retiraram nos últimos dias, dando um alento extra a Kiev, para sair de um contexto de guerra para outro de negociações, o Presidente Zelensky, foi à cidade "libertada" garantir que as forças ucranianas vão continuar a libertar territórios ocupados, embora repetindo a disponibilidade para negociar com Moscovo no dia em que Putin mandar as suas tropas sair da Ucrânia, de todo o território sem excepções.

Depois de Volodymyr Zelensky ter dito esta frase, com nuances, mas sempre sob a perspectiva de que só existirão negociações com Moscovo com os russos fora dos territórios ocupados, o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov, lembrando que, de acordo com a realidade russa, as quatro províncias ocupadas, total ou parcialmente, Crimeia, Kherson, Zaporijia, Donetsk e Lugansk, são parte integral da Federação Russa, depois de referendos populares realizados em Setembro, as condições iniciais do líder ucraniano "são totalmente irrealistas e inadequadas" e não permitem sequer que se comece a negociar.

Sergei Lavrov, em Bali, na Indonésia, onde participa no G20, acrescentou que, tal como disse num encontro que acabara de manter com o Presidente francês, "os problemas que impedem negociações são do lado ucraniano" porque Kiev "recusa conversar ao impor condições irrealistas e inadequadas" face à situação.

O chefe da diplomacia russa aproveitou ainda para acusar Volodymyr Zelensky de manter uma permanente "retórica militante e agressivamente russofóbica" que permite perceber, ironizou Lavrov, que o Presidente ucraniano "não tem ouvido os conselhos que lhe estão a ser repetidamente dados pelos seus amigos ocidentais", tendo como exemplo mais recente o momento em que o general Mark Milley disse que os ucranianos deveriam "aproveitar o momento" para seguir na peugada da paz.

"Mas nós não recusamos negociações, como, de resto, o Presidente Putin tem dito deste sempre. E se alguém as recusa, são os ucranianos, sendo igualmente claro que quanto mais tempo o fizerem mais difícil será encontrar um terreno comum para partir rumo a um acordo".

Alias, no vídeo que dirigiu ao G20, em Bali, Zelensky, contrariando o tom de apaziguamento geral, apostou em desafiar os presentes, os 20 países mais desenvolvidos do mundo, onde estão os seus principais apoiantes, para tudo fazerem para "obrigar a Rússia a parar a sua guerra de agressão", porque o seu país não pode ser encostado à parede com compromissos que não respeitem a sua "soberania, integridade territorial e independência".

Logo a seguir, o Kremlin, através do seu porta-voz, Dmitri Peskov, fez saber que entende as palavras de Zelesky como a confirmação de que Kiev "não quer nem pretende demonstrar vontade" para que a solução para o conflito passe da frente de batalha para a batalha negocial à mesa de conversações.

A pressão feita nos media

Desde os tempos da Guerra Fria que os media norte-americanos, como, de resto sucede em todo o lado, são usados para que os governos passem mensagens de forma mais ou menos estridente, e, neste caso, a sucessão de notícias divulgadas pelos principais jornais do país não são coincidência, entendendo os analistas que Washington está a mudar de linha de acção quanto a esta guerra na Ucrânia, querendo desbravar os caminhos da paz sem melindrar Kiev.

A notícia começou por ser dada pelo jornal russo Kommersant e apanhou o mundo de surpresa... os chefes das secretas norte-americana e russa estiveram esta segunda-feira reunidos em Ancara, na Turquia, para analisar a situação na Ucrânia, tendo a Casa Branca confirmado a conversa depois de fortes pressões dos jornalistas, o que permite consolidar a ideia de que Washington e Moscovo estão mesmo a definir um roteiro para acabar com a guerra.

Esta notícia sobre as conversas na capital turca entre o director da CIA, William J. Burns, e o chefe da secreta externa russa (SVR), Sergey Naryshkin, surgiu quase ao mesmo tempo que o Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, se sentava à mesa com o seu homólogo chinês, Xi Jinping, em Bali, na Indonésia, à margem da 17ª reunião do G20, onde a Ucrânia foi um dos temas debatidos, a par das relações comerciais entre as duas maiores potências económicas do mundo, e as alterações climáticas...

Ao que tudo indica, a notícia do russo Kommersant não era mesmo para ser divulgada, tendo isso surgido como um incómodo para a diplomacia norte-americana, tendo, antes da confirmação, tanto o Kremlin como a Casa Branca, recusado comentar o assunto, que torna já impossível de contornar a existência de negociações entre russos e norte-americanos para acabar com o conflito no leste europeu.

Isso, porque a conversa secreta entre os chefes-espiões sucede ao que tanto o Washington Post como o Wall Street Journal e a Bloomberg avançaram detalhadamente quanto a conversas mantidas durante largos meses entre Moscovo e Washington com o fito de encontrar uma saída para a guerra na Ucrânia, sempre sob a alegação de que tais conversas visaram negociações em torno do controlo das armas nucleares.

E sabe-se também nos meios diplomáticos que as conversas entre este tipo de intermediários, ao nível das "secretas", já é considerado trabalho técnico depois de as balizas políticas terem sido definidas previamente.

O que deixa perceptível igualmente que os EUA não avisaram os seus aliados europeus, como se percebe pelos lideres da União Europeia que mantêm a mesma retórica guerreira, e o regime de Volodymyr Zelensky, apesar de os norte-americanos terem vindo, a seguir à confirmação destas conversações, garantir que avisaram Kiev sobre o que se estava a passar, também denota que não estava a par pela forma como tem vindo a acentuar o tom agressivo na sua retórica, especialmente após o enorme revés russo em Kherson, de onde Moscovo acaba de retirar as suas tropas.

Esta notícia, apesar de tudo, não apanhou todos desprevenidos, porque, por exemplo, o especialista militar major-general Agostinho Costa, na portuguesa RTP3, defendeu a tese de que a saída russa de Kherson correspondia a um claro padrão negocial, envolvendo Kiev e Moscovo, para desenhar a nova geografia de suporte a um acordo de paz, com a troca do lado direito da província de Kherson pelos territórios de Donetsk ainda em disputa, especialmente em Bahkmut.

Sendo agora suposto as partes consolidarem estas posições durante a inactividade imposta pelo Inverno e, na Primavera, despertar com a notícia de um entendimento sólido sobre o fim do conflito.