Já em Moscovo, Vladimir Putin mandou soar o toque a reunir no Kremlin para atacar a fundo o problema criado pela insurreição tentada por Yevgeni Prigozhin, o seu antigo amigo e cozinheiro, cujo paradeiro saiu dos radares nas últimas horas, sendo uma das primeiras medidas tomadas na sala de crise russa o envio do ministro da Defesa, Sergei Shoigu, para a linha da frente, constatar in loco a situação da guerra na Ucrânia, que o Presidente russo voltou a destacar como a "a única questão que interessa neste momento" da história da Federação.
Em Kiev, claramente surpreendidos com esta movimentação do "cavalo" Prigozhin no xadrez russo, primeiro foi o Presidente Volodymyr Zelensky que procurou insuflar as suas unidades empenhadas na contra-ofensiva pouco conquistadora de territórios ocupados, aludindo ao descambar da estrutura de comando militar em Moscovo, afirmando que o "mal" que Governa o Kremlin está "condenado à autodestruição".
Enquanto isso, o seu ministro dos Negócios Estrangeiros, Dmitri Kuleba, optando por outro caminho, e já quando no tabuleiro do xadrez de Moscovo se colocava a "torre" na frente do cavalo Prigozhin com o "rei" à espreita para lhe atirar com a "rainha" para cima, voltou a atenção para os aliados ocidentais, exigindo-lhes mais armas para aproveitar esta transitória fragilidade das trincheiras russas na frente de batalha.
CNN destapa cartada americana
Depois de na sexta-feira o mundo ter sido surpreendido, já noite dentro, com o motim de Prigozhin, que liderou pelo menos 5 mil homens armados em direcção a Moscovo com o propósito assumido de "destronar o Presidente Putin", ainda não se sabia que desfecho teria esta opção temerária e intempestiva, as primeiras reacções das principais capitais ocidentais, foram claramente cautelosas.
Estava a coluna de centenas de veículos do Grupo Wagner já a caminho de Moscovo, pela auto-estrada do sul, M-4, a partir de Rostov-on-Don, cidade capital da província de Rostov. No sudoeste da Rússia, onde está situado o quartel-general da operação militar na Ucrânia, que Prigozhin tomou sem dificuldades e sem disparar um único tiro, quando se ouviram as primeiras declarações em Washington.
Antony Blinken, mandou dizer nos media norte-americanos, ainda antes de Prigozhin travar o avanço rumo a Moscovo, o que faria 200kms antes de lá chegar, que em Washington se seguida de perto os acontecimentos, mas, já depois de o Presidente da Bielorrússia, Alexander Lukashenko, ter conseguido mediar um acordo (ver mais abaixo como) que poria fim à insurreição armada, foi mais claro e sanguíneo.
Disse o secretário de Estado (ministro das Relações Exteriores) dos EUA que esta intentona "mostrou graves fracturas" no poder em Moscovo, notando serem mesmo "as mais graves" em 20 anos de poder de Vladimir Putin, aproveitando ainda para desferir um golpe sobre a decisão de invadir a Ucrânia, defendendo que "agora fica claro que foi um devastador erro" tanto político, militar, e económico ou mesmo de âmbito geopolítico.
Esta retórica foi de imediato seguida pelos seus subordinados, tanto os aliados europeus como o chefe da NATO, Jens Stoltenberg, que disse ser agora claro que a Ucrânia vai prevalecer e a Rússia está a caminho de se desfazer, embora a generalidade dos analistas militares tenham sido, mesmo os pró-Ucrânia, mais comedidos, enquanto os restantes defendem que, com este desfecho, Putin terá saído com o seu poder reforçado e mais versatilidade política para o endurecimento da guerra na Ucrânia, especialmente com novas "contratações" para as fileiras das Forças Armadas.
Mas há uma abordagem a esta situação, que chegou a ser dramática na Rússia, que ainda terá de ser melhor digerida pelos analistas, que é uma notícia, também da CNN International, sobre o conhecimento antecipado que os serviços de intelligentsia externa norte-americanos tiveram da acção de Prigozhin.
Diz o canal norte-americano que a comunidade dos "serviços" em Washington estava a par deste motim do Grupo Wagner, o que abre uma nova fronteira de análise ao sucedido, como, por exemplo, como está já a ser sugerido em alguns media russos, que os mercenário terão sido "incentivados" por forças ligadas aos aliados ocidentais de Kiev.
Uma das fontes citadas pela CNN diz mesmo que não só tiveram acesso à informação por detrás do motim como estavam à espera de "uma operação muito mais violenta e sangrenta e demolidora do poder" no Kremlin.
O que espera Prigozhin? O que se passa verdadeiramente?
Para já, há mais de 24 horas que ninguém sabe onde anda Yevgeni Prigozhin, que desapareceu depois de ser visto a ser efusivamente cumprimentado por populares quando abandonou a sua correria suicida rumo a Moscovo, onde já estavam a ser montadas barricadas e a aviação leal ao Kremlin estava no ar para atacar a sua coluna e já tinha à ilharga os tchechenos de Ranzan Kadirov.
O acordo conseguido pelo Presidente bielorusso pressupunha que o líder dos mercenários passe a viver no país vizinho e principal aliado da Rússia, sendo prometida uma amnistia geral para os seus guerreiros que integraram a coluna, embora ficando impedidos de entrar nas fileiras regulares russas, enquanto os que não o fizeram, vão agora poder assinar contratos com o Ministério da Defesa russo e voltar à linha da frente.
Mas os analistas não-militares admitem que Prigozhin pode não chegar a Minsk, porque o Kremlin dificilmente poderá admitir tamanho desafio sem um castigo exemplar. Alias, muitos dos comentadores ocidentais aproveitaram mesmo para ironizar, aconselhando Progozhin a contratar um provador para a sua comida, evitar casas com janelas ou varandas ou não sair de casa durante a noite...
Já entre os observadores militares e especialistas em contra-inteligentsia, uma outra hipótese começa a ganhar dimensão, que é Prigozhin fazer parte de uma operação de grade envergadura para destapar eventuais alçapões no poder do Kremlin, lançando esta operação-teatro para ver eventuais "inimigos" internos a sair da "toca", o que seria uma manifestação de que algo de mais sério ameaça o poder de Vladimir Putin na sombra.
Mas ainda há outras versões e possibilidades admitidas por analistas mlitares. Uma delas, consistente com os dados conhecidos das últimas 72 horas na frente da guerra, que seria aproveitar esta "trapalhada ficcionada" para movimentar as forças Wagner para norte, com a missão de abrir uma nova linha da frente da guerra, obrigando os ucranianos a destacar algumas das suas brigadas mais efectivas para travar esta nova frente.
Isto, porque, como já foi notado, apesar de Prigozhin ter anunciado que com ele seguiam mais de 25 mil homens rumo a Moscovo, as análises mais apuradas mostram que nem 4 mil estavam na caravana militar, de onde sobressaia a falta de poder de fogo, exceptuando meia dúzia de blindados e alguns camiões sem nenhuma capacidade de enfrentar as unidades regulares das forças leais ao Kremlin.
Ou seja, existe a possibilidade de os mais de 50 mil homens do Grupo Wagner estejam agora, tendo-se deslocado camuflados pela histeria criado em torno do avanço sobre Moscovo, a norte da linha da frente, na região de Belgorod, ou mesmo a partir da Bielorrússia para um eventual avanço sobre Kiev, ou mesmo mais a oeste, rumo a Lviv o que seria uma surpresa e obrigaria a um exercício de contorcionismo muito difícil das forças ucranianas empenhadas na contra-ofensiva, abrindo brechas que permitiriam aos russos abrir caminho para oeste.
Zelensky e Biden ao telefone
Os Presidentes da Ucrânia, Volodymyr Zelenskym e do EUA, Joe Biden, que é o maior apoiante do esforço de guerra de Kiev, a quem já entregou mais de 100 mil milhões USD em armas e financiamento, estiveram a falar ao telefone, após o motim de Prigozhin, tendo o líder do regime ucraniano pedido "mais pressão do ocidente para derrotar os invasores".
Especialmente "artilharia de longo alcance" é o que Zelensky pretende agora, o que vem de encontro às análises militares menos comprometidos com o ocidente sobre a contra-ofensiva em curso, onde não só se desconhecem avanços com significado como as perdas do lado ucraniano começam a atingir números insustentáveis.
Kiev quer mais misseis de longo alcance, como os britânicos Storm Shadow, ou as versões mais poderosas dos HIMARS norte-americanos, que pdoem chegar aos 300 kms, o que é essencial para neutralizar, não só a capacidade de artilharia russa que está a dizimar as suas unidades que procuram abrir brechas nas defesas montadas por Moscovo.
Com estas novas armas, argumenta Zelensky, poderia atingir os locais de onde partem os helicópteros e a aviação russa que está a mostrar grande eficácia a neutralizar os blindados pesados, como os Leopard 2 alemães, e leves, como os Bradley norte-americanos, ocidentais, cujas carcaças começa a ser impossível de esconder nos campos de batalha.
Mas também foi sujeito desta conversa a situação gerada pelo motin Wagner na Rússia, que Zelensky disse que trás ao palco a "necessidade de o mundo colocar mais pressão sobre Moscovo" para restaurar a ordem internacional.
A quase certa impossibilidade de entrada da Ucrânia na NATO foi outro dos tópicos, adivinhando-se um claro desconforto do Presidente ucraniano, especialmente quando se aproxima a Cimeira da organização de Vilnius, na Lituânia, a 10 de Julho.
Isto, porque, recorde-se, a entrada na NATO foi uma das razões pelas quais Kiev aceitou travar o processo negocial que estava a correr com Moscovo pouco depois do início da invasão, e que o então primeiro-ministro do Reino Unido, Boris Johnson, numa erupção na capital ucraniana encostou Zelensky à parede impondo-lhe a continuação da guerra a troco de apoio infinito tanto em armas como em dinheiro e político, com promessa de entrada na NATO e na União Europeia, embora esta última promessa tenha sido vocalizada pela presidente da Comissão Europeia, Ursula Leyen, que defende publicamente que "a Rússia tem de ser derrotada no campo de batalha".