Com o cerco russo a fechar-se sobre Bakhmut, quase integralmente através do Grupo Wagner, uma empresa privada ao serviço das forças russas, liderado por Yevgeny Prigozhin, um aliado próximo do Presidente Vladimir Putin, ou um grupo de mercenários, se visto do ocidente, e quando a cidade aparece há semanas consecutivamente nas capas dos jornais e nos ecrãs das tv"s de todo o mundo, o alto comando das forças ucranianas reuniu-se para decidir se abandonava a cidade, como propuseram os aliados ocidentais norte-americanos, ou se mantinha a defesa a todo o custo do centro da urbe, o último reduto ucraniano na nova "Estalinegrado".

A decisão foi esta madrugada transmitida em mais um vídeo do Presidente ucraniano Volodymyr Zelensky onde este explica que esteve reunido com o CEMGFA, general Valerii Zaluzhnyi, e com o comandante das forças no terreno, general Oleksandr Syrskyi, para decidir o que fazer.

Os generais e o Presidente estavam assim perante a urgência de decidir o que fazer com Bakhmut, se sair e deixar entrar os russos, com a cidade quase integralmente cercada e a abeirar-se do centro, onde estão as últimas unidades ucranianas, ou lutar pela sua manutenção do lado ucraniano, enviando reforços pela derradeira estrada que permite o acesso ao interior da localidade que ganhou uma gigantesca importância simbólica.

A decisão foi de manter Bakhmut a todo o custo e enviar reforços enquanto permanece aberta a pequena estrada terciária que ainda liga o lado ucraniano ao centro da cidade, o que foi igualmente uma resposta musculada aos vídeos recentes onde o líder do Grupo Wagner, Yevgeny Prigozhin, tem desafiado Zelensky a mandar os seus homens retirar para lhes poupar a vida, evitando que estes tenham de regressar dentro de sacos de cadáveres.

Face a esta decisão, surpreendente aos olhos dos analistas militares com olhar mais frio e menos "colados" a Kiev, e de difícil justificação, porque as estradas, com a aproximação da Primavera, começam a ficar enlameadas, impedindo a passagem a carros de combate e peças de artilharia, emergiu como tese mais plausível para justificar a decisão, que hipoteca ainda mais a vida dos milhares de militares ucranianos que ainda permanecem entrincheirados nas ruinas da cidade devastada pela artilharia russa, a necessidade de Kiev fixar as unidades de combate Wagner melhor preparadas para que a anunciada e esperada contra-ofensiva ucraniana possa ocorrer noutras zonas da linha da frente.

Mas há igualmente a tese de que Yevgeny Prigozhin tem feito vídeos provocantes dirigidos a Zelensky de forma a que este force a presença e reforce as linhas ucranianas em Bakhmut - isto depois de o jornal alemão BIld, o de maior tiragem no país, ter noticiado fortes divergências com o seu CEMGFA, que o aconselhou a retirar da cidade -, porque, com a situação controlada, o cerco quase completo - há quem defenda que a estrada apenas permanece aberta porque serve os interesses dos russos -, o Grupo Wagner consegue, através da atrição, a flagelação permanente das posição através de artilharia de médio e longo alcance, ir dizimando as unidades militares ucranianas, desvitalizando as forças de Kiev, em homens e material, no seu todo.

Nesta tese, a verificar-se, porque é apenas possibilidade, também as notícias sobre a falta de munições no Grupo Wagner seria parte da estratégia de deceção para, precisamente, levar as chefias ucranianas a apostar algumas das suas melhores companhias na defesa de Bakhmut, que, na realidade, se está a revelar como um campo de extermínio para ambos os lados.

No entanto, segundo o britânico The Guardian, os mercenários de Yevgeny Prigozhin estão mesmo a ficar sem munições devido a problemas logísticos das forças russas que não estão a conseguir manter o fluxo contínuo de viveres e munições até à área onde decorrem os combates, e a possibilidade de Kiev manter o controlo da zona vital de Bakhmut é mesmo efectiva devido à diminuição da capacidade ofensiva dos russos.

Como pano de fundo para esta situação em Bakhmut, uma cidade que em tempos albergou 70 mil pessoas e que hoje não tem mais de 4 mil civis no seu interior, tanto russos como ucranianos têm em curso supostos preparativos para ofensivas de Primavera/Verão, com Kiev a manter a situação até que chegue o equipamento ocidental prometido, como os carros de combate pesados alemães, Leopard-2 e britânicos Chalenger-2, os misseis de longo alcance para os sistemas HIMARS, e as munições que voltaram a ser produzidas em antigas fábricas na Bulgária para as peças de artilharia de 152 mm, calibre standard do antigo Pacto de Varsóvia.

Do lado russo, depois de o Presidente Putin ter mudado a configuração da chefia das operações militares, colocando o próprio CEMGFA, general Valery Gerasimov, no comando directo das movimentações na linha da frente, de forma a melhorar a operacionalidade inter-armas, e com os reforços a chegar diariamente ao Donbass depois da mobilização de 300 mil homens em Outubro do ano passado, espera-se igualmente uma movimentação com o objectivo de ocupar todas as quatros províncias anexadas por Moscovo, após referendos, em Setembro de 2022.

Desde logo Lugansk, já totalmente ocupada, e Donetsk, com perto de 20% ainda nas mãos ucranianas, completando ambas a região do Donbass, e depois Zaporijia e Kherson, as outras duas províncias, com vastos territórios ainda sob controlo de Kiev, e que permitem a ligação terrestre, na costa do Mar Negro e Mar de Azov, com a Península da Crimeia, anexada em 2014.

Segundo notícias que foram veiculadas pelos mais importantes media norte-americanos nas últimas semanas, desde logo The New York Times, Washington Times ou o Politico, entre outros, devido às alterações de poder no Congresso, com os republicanos a mandarem agora na Câmara dos Representantes, e com uma crescente maioria popular, como mostram sondagens recentes, contra o volume do apoio financeiro e militar dos EUA à Ucrânia, a aproximar-se, segundo algumas fontes, dos 100 mil milhões USD, a Administração Biden, com a eventual colaboração dos aliados europeus mais relevantes, Alemanha e França, deu como prazo a Volodymyr Zelensky para reocupar territórios até final do Verão.

Depois desse prazo terminado, os aliados ocidentais de Kiev impõem ao regime de Volodymyr Zelensky uma solução negociada com Moscovo, sendo, por isso, importante conseguir reconquistar a maior parcela possível de território que a Rússia tomou de assalto desde 24 de Fevereiro de 2022.

Isto quer dizer que, o mais plausível desfecho para esta guerra é que, após o Verão, russos e ucranianos poderão voltar à mesa das negociações com Kiev a ter de ceder uma parte do seu território, que, pelo "mapa" que existe hoje, será em torno dos 20%, margem que, segundo sinais emitidos por Moscovo, poderá contentar o Presidente Putin, se lhe acrescentar garantias de que a Ucrânia se mantém como pais neutral e longe de integrar a NATO.

A oriente... tudo de novo

Com a guerra na Ucrânia a perder importância mediática à medida que o tempo passa, de Pequim chegou mais um "statement" que pode aquecer sobremaneira o caudaloso fluxo de movimentações diplomáticas globais.

Depois de este ano de guerra ter coincidido fortemente com a emergência de um bloco a leste formado pela China e pela Rússia, que afirmam dia após dia a sua parceria estratégica ilimitada e "sólida como uma rocha", como a definiu o ministro chinês dos Negócios Estrangeiros, tanto os EUA como a União Europeia apostam claramente em encostar Pequim à parede com ameaças de "castigos" severos caso essa aliança com os russos leve à entrega de armamento chinês às forças do Kremlin.

Mas Qin Gang, sem refrear o discurso, perguntou porque é que os EUA se mostram tão descontentes com a possibilidade de Pequim entregar armas à Rússia no contexto da guerra na Ucrânia quando se posicionam ao lado dos independentistas de Taiwan e lhes fornecem armas de forma ilimitada? Porque é que se posiciona tão fortemente pela soberania da Ucrânia e não respeita a soberania de Pequim sobre Taiwan?

Sempre com a questão de Taiwan em pano de fundo, com a China a ter, em dois momentos distintos, nos últimos dois meses, reafirmado a inevitabilidade de reintegração total da ilha na China Popular, sem afastar a possibilidade de isso ser feito pela via armada, e com Washington a manter a postura afirmativa da sua "aliança" com Taipé, começa a ser mais claro que nunca o surgimento de dois blocos opostos na disputa de uma nova ordem mundial, baseada em regras, como actualmente, assente na ONU, FMI e Banco Mundial, de acordo com os ditames ocidentais, e uma nova ordem, alicerçada na cooperação entre iguais e multipolar, como preconizam Pequim, Moscovo e um alargado número de países do denominado Sul Global, ao qual a Índia mostra cada vez mais proximidade, como ficou claro no discurso do seu primeiro-ministro, Narendra Modi, na último reunião do G20, em Nova Deli, onde desferiu um ruidoso golpe na hegemonia global norte-americana.

E começa igualmente a ser visível que o plano de paz "made in China" apresentado por Pequim na passada semana também não agradou ao bloco ocidental que apoia KIev.

Face a esta postura ofensiva da União Europeia e dos EUA, que ameaçam Pequim com sanções pesadas se enviar armamento para os russos, o ministro dos Negócios Estrangeiros, Qin Gang, numa conferência de imprensa onde revelou uma postura jamais vista na diplomacia do gigante asiático, não só afirmou o fortalecimento das já historicamente sólidas relações com a Federação Russa, como acusou os Estados Unidos e os seus aliados de serem uma "fonte permanente de conflitualidade" no mundo.

Sublinhou que a parceria China-Rússia visa a estabilidade e a paz enquanto a postura ocidental é agressiva e tem como objectivo a "contenção e supressão" da competitividade chinesa, quando bastaria ver que a postura da Rússia e da China é totalmente diferente e pugna por uma cooperação global, "um exemplo para o que devem ser as relações internacionais".

E afirmou que, quanto mais instável for o mundo, mais se justifica "o estável avanço da parceria da China com a Rússia", considerando que esta parceria tem como âncora a amizade entre os Presidente Xi Jinping e Vladimir Putin e que "só vai crescer e fortalecer-se pelos anos vindouros".

Qin Gang, naquela que foi a sua primeira aparição em público, diante dos jornalistas, admitiu ainda, pela primeira vez desta forma, que a China e os EUA estão em rota de um conflito se Washington não mudar a sua abordagem a Pequim, colocando o fortalecimento das relações com Moscovo como uma linhá prioritária para os anos vindouros.

Numa frase que poderá ficar pra a história destes tempos, Gang disse que "se os EUA não travarem a fundo e continuarem nesta aceleração pela estrada errada, não há segurança possível para uma despiste e será inevitável um conflito", avisou.

E notou que os EUA têm apostado fortemente no desafio à China, como ficou claro no episódio algo caricato do "balão espião" abatido pela força aérea norte-americana, quando Pequim garantia que era apenas um mero balão meteorológico que se desviou inadvertidamente da rota, ou ainda a ordem dada para que todos os telemóveis de funcionários públicos retirem a aplicação da rede social "Tik Tok" ou ainda a causação de que as gruas dos portos produzidas na China e colocadas em todo o mundo estejam a servir para "espiar" conteúdos de contentores americanos.

Contexto da guerra na Ucrânia

A 24 de Fevereiro de 2022 as forças russas iniciaram a invasão da Ucrânia por vários pontos, tendo o Presidente russo dito que se tratava de uma "operação militar especial", sublinhando que o objectivo não era (é) a ocupação do país vizinho, condição que evoluiu depois para a anexação de territórios no Donbass mas também as regiões de Kherson e Zaporijia, mas sim a sua desmilitarização e desnazificação e assegurar que Kiev não insiste na adesão à NATO, o que Moscovo considera parte das suas garantias vitais de segurança nacional.

O Kremlin critica há vários anos fortemente o avanço da NATO para junto das suas fronteiras, agregando os antigos membros do Pacto de Varsóvia, organização que também colapsou com a extinção da URSS, em 1991.

Moscovo visa ainda garantir o reconhecimento de Kiev da soberania russa da Península da Crimeia, invadida e integrada na Rússia, depois de um referendo, em 2014, e ainda a independência das duas repúblicas do Donbass, a de Donetsk e de Lugansk, de maioria russófila, que o Kremlin já reconheceu em Fevereiro, tendo acrescido a esta reivindicação as províncias de Kherson e Zaporijia, depois da realização de referendos que a comunidade internacional, quase em uníssono, não reconhece.

Do lado ucraniano, a visão é totalmente distinta e Putin é acusado de estar a querer reintegrar a Ucrânia na Rússia como forma de reconstruir o "império soviético", que se desmoronou em 1991, com o colapso da União Soviética.

Kiev insiste que a Ucrânia é una e indivisível e que não haverá cedências territoriais como forma de acordar a paz com Moscovo, sendo, para o Presidente Volodymyr Zelensky, essencial o continuado apoio militar da NATO para expulsar as forças invasoras.

A organização militar da Aliança Atlântica está a ser, entretanto, acusada por Moscovo de estar a desenrolar uma guerra com a Rússia por procuração passada ao Exército ucraniano, o que eleva, segundo o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Sergei Lavrov, o risco de se avançar para a III Guerra Mundial, com um confronto directo entre a Federação Russa e a NATO, que tanto o Presidente dos EUA, Joe Biden, como o Presidente Vladimir Putin, da Rússia, já admitiram que se isso acontecer é inevitável o recurso ao devastador arsenal nuclear dos dois lados desta barricada que levaria ao colapso da humanidade tal como a conhecemos.

Esta guerra na Ucrânia contou com a condenação generalizada da comunidade internacional, tendo a União Europeia e a NATO assumido a linha da frente da contestação à "operação especial" de Putin, que se materializou através de bombardeamentos das principais cidades, por meio de ataques aéreos, lançamento de misseis de cruzeiro e artilharia pesada, e com volumosas colunas militares a cercarem os grandes centros urbanos do país, mas que agora está concentrada no leste e sudeste da Ucrânia.

Na reacção, além da resistência ucraniana, Moscovo contou com o maior pacote de sanções aplicadas a um país, que está a causar danos avultados à sua economia, sendo disso exemplo a queda da sua moeda nacional, o rublo, que chegou a ser superior a 60%, embora já tenha, entretanto, recuperado.

Estas sanções, que já levaram as grandes marcas mundiais a deixar a Rússia, como as 850 lojas da McDonalds, a mais simbólica, abrangem ainda os seus desportistas, artistas, homens de negócios, a banca e grande parte das suas exportações, incluindo o sector energético, do gás natural e em parte do petróleo...

Milhares de mortos e feridos e mais de 9,5 milhões de refugiados internos e nos países vizinhos da Ucrânia são a parte visível deste desastre humanitário.

O histórico recente desta crise no leste europeu pode ser revisitado nos links colocados em baixo, nesta página.