Na verdade, num discurso em Março de 2023, durante a Cimeira do G20 em Nova Deli, o primeiro-ministro Narendra Modi, que acaba de ser reeleito para o 3º mandato, já tinha avisado que a Índia está cansada da ordem mundial com base nas regras ocidentais.

Este discurso de Modi foi um sinal de aproximação à ideia da parceria estratégica sino-russa, forjada na última década mas com o tirar de todas as dúvidas em 2023, durante a visita do Presidente Xi Jinping a Moscovo, para alterar a actual ordem mundial.

O que o líder indiano estava a fazer naquele momento era a tornar mais forte a ideia de um Sul Global unido para reverter as injustiças das "regras" ocidentais elaboradas a partir da II Guerra Mundial e assente em organizações-pilar, como ONU, FMI ou Banco Mundial.

Por detrás deste olhar novo das grandes potências do Sul Global, que são, de forma inequívoca a China, a Índia e a Rússia, por sinal todos membros dos BRICS, está o mapa mundi da miséria que afoga o Hemisfério Sul há décadas face à bonança que reverbera na parte norte do Planeta.

Como mudar as coisas na direcção de uma mais justa partilha das riquezas do mundo? foi, seguramente a questão por detrás da aproximação sino-russa (ver links em baixo nesta página) e parece ser a mesma que está a conduzir nessa direcção a Índia, o Paquistão, o Brasil, a Arábia Saudita, o Irão, a Indonésia, a África do Sul, o Egipto, a Argélia...

Neste contexto é possível perceber um esforço diplomático denso e pouco efusivo mas persistente de Moscovo e Pequim para reduzir atritos entre velhos rivais importantes para este "grand jeu", desde logo com a inesperada e histórica aproximação entre iranianos e sauditas.

Mas se esse passo foi histórico, o que dizer do que já é visível estar a ser dado por chineses e indianos, ao reduzirem visivelmente os flamejantes episódios violentos nas suas fronteiras na cordilheira dos Himalaias, baixando a retórica belicista que durante décadas foi alimentada por Pequim e Nova Deli.

Há quem defenda que é o velho leão da diplomacia global, o ministro russo dos Negócios Estrangeiros, Sergei Lavrov, que está por detrás deste decapar dos atritos entre parceiros naturais com o objectivo de fortalecer a plataforma onde assentará a nova ordem mundial baseada, ao invés das regras norte-americanas, na cooperação bilateral entre iguais.

Isso mesmo tem sido dito e repetido por Xi Jinping e Vladimir Putin, mas também por líderes doutros países desse Sul Global, que dão sinais de cansaço insustentável do teimoso e aparentemente inultrapassável subdesenvolvimento na parte sul do Planeta Terra.

Se destruir a desconfiança histórica entre russos e chineses não é tarefa para impreparados, a que corrói as relações entre Pequim e Nova Deli não é menos densa nem menos rugosa, mas os sinais são claros e no mesmos sentido, o de que o atrito histórico a todos prejudicou e uma nova etapa só é possível se forem quebradas essas barreiras.

E mais um desses sinais foi dado agora em Nova Deli, pela diplomacia chinesa, que, ao felicitar Narendra Modi pela vitória eleitoral e o início do seu 3º mandato, exprimiu a vontade de Pequim em trabalhar com Nova Deli para melhorar as relações bilaterais de forma sólida.

Ora, estas palavras do porta-voz da Embaixada chinesa na Índia, que são a voz de Pequim, surgem horas depois do ministro dos Negócios Estrangeiros indiano Subrahmanyam Jaishankar ter afirmado, no rescaldo das eleições, que é prioritário para o seu Governo ultrapassar as longas e velhas questões com a China e com o Paquistão.

O que é o mesmo que dizer que este momento não saiu do vazio e é fruto de já maduras conversações em curso pore detrás dos panos e que se preparam agora para ver a luz do dia, como, de resto, fica evidente na frase publicada no X, antigo Twitter: "Relações estáveis e claras entre a China e a Índia são do interesse de ambas as Nações e conduzem à paz e ao desenvolvimento na região e no mundo".

E acrescentou, segundo a agência oficial chinesa Xinhua: "A China está empenhada em trabalhar com a Índia para levar as relações bilaterais na direcção certa", depois de o próprio primeiro-ministro Li Qiang ter felicitado pessoalmente Narendra Modi pela vitória, sublinhando que boas relações entre os dois países são muito relevantes para a estabilidade e desenvolvimento da região e do mundo.

Ora, com estas declarações de vontade em ultrapassar diferendos, o mais provável é que as questões territoriais em disputa nos mais de 3.400 kms de fronteira comum sejam agora dirimidas numa task force em vez das demonstrações de poderio militar, especialmente no intrincado contexto dos Himalaias.

Com alguma, no mínimo, ponderação, deve o Ocidente Alargado, liderado pelos EUA, mas com poderosos aliados nesta região do mundo, como o Japão, a Coreia do Sul, a Austrália ou a Nova Zelândia, onde, curiosamente, o primeiro-ministro chinês está por estes dias em visita oficial, estar a olhar para o desanuviar desta tensão.

Tensão essa que permitia manter dois gigantes, ou três se, como era a egra há alguns anos, China, Índia e Rússia a remar para lados opostos e agora com potencial de união de esforços e poderem começar a remar no mesmo sentido, o tal sentido da nova ordem mundial baseada na cooperação entre iguais.

Por muito que Putin, JInping e Modi, como o fazem amiúde, sublinhem que esta nova ordem não é contra ninguém, a verdade nua e crua é que ela põe em causa a hegemonia global dos norte-americanos e dos seus aliados ocidentais, nem que seja pela mera inércia que gera.

Alias, estas movimentações não apanham ninguém desprevenido, como o demonstra o facto de os EUA estarem há já alguns anos a combater a expansão chinesa no Índo-Pacífico, como o demonstra a recente criação do AUKUS, com o Reino Unido e a Austrália, formando uma frente claramente anti-China.

E se se consolidar esta frente sino-russa-indiana, dificilmente o mundo voltará a ser como antes, até porque nunca como agora o Sul Global, que agrega não apenas os paises abaixo da linha do Equador mas ainda alguns do norte menos ocidentalizado, como a Rússia ou a China, esteve tão de costas voltadas para o Ocidente Global, ao qual se juntam australianos, japoneses, sul-coreanos...