Com duas frentes de guerra activas, em Gaza, com o braço armado do Hamas, as Brigadas Al Qassam, e no sul do Líbano, com o Hezbollah, o movimento apoiado pelo Irão, Israel optou agora por abrir mais uma linha de combate, não pela via das armas letais mas através do seu poderoso braço diplomático, apontando-o às Nações Unidas e ao seu Secretário-Geral, António Guterres.
Isto, porque o Governo de Telavive não gostou de ouvir o Secretário-Geral da ONU dizer que o bárbaro ataque do Hamas ao sul de Israel a 07 de Outubro (ver links em baixo nesta página) não poderia justificar a "punição colectiva" que está a ser infligida à população civil da Faixa de Gaza, numa clara "violação da Lei Internacional dos Direitos Humanos" e que o assalto do Hamas ao sul de Israel "não veio de um vácuo" mas sim de décadas de ocupação e usurpação de terras aos palestinianos.
Foi com uma fúria jamais vista nos palcos da diplomacia global ao mais alto nível que o ministro dos Negócios Estrangeiros israelita, Eli Cohen, se dirigiu ao Secretário-Geral da ONU, questionando-o directamente, no Conselho de Segurança, em que mundo é que ele vive para admitir a possibilidade de ter outra abordagem ao Hamas que não seja para defender a sua absoluta e rápida extinção no Planeta Terra.
"Não há lugar para uma abordagem equilibrada" disse Cohen, referindo-se ao que ajuizou como procura de normalizar o Hamas, ao apontar a Telavive a necessidade de ter uma postura mais cuidada no conflito em Gaza.
Em Pano de fundo a este conflito diplomático que opõe Israel às Nações Unidas está o actual conflito em Gaza, despoletado na sua actual fase, porque os ataques são mútuos e contínuos há décadas, a 07 de Outubro, quando o Hamas invadiu o sul de Israel, deixando um rasto de destruição, mais de 1.400 mortos e 4 mil feridos, a maior parte civis, mas igualmente cerca de 300 militares foram mortos. Cerca de 200 reféns foram levados para Gaza.
Na resposta, Israel atapetou com bombas, através da sua moderna aviação de guerra e artilharia, todo o território mas com especial pontaria para a Cidade de Gaza, no norte da Faixa de Gaza, de onde Israel exigiu que mais de 1,1 milhões de pessoas se deslocassem para o sul, destruindo milhares de edifícios habitacionais e erguendo um balanço de vítimas mortais que já chegou às 6.000, mais de 2.400 destas são crianças, e ainda mais de 13 mil feridos.
Feridos estes que enchem os hospitais sobrelotados e muitos deles sem energia e medicamentos devido ao bloqueio total imposto por Israel que só agora começou a ser quebrado com os primeiros camiões de ajuda humanitária, que, como sublinhou Guterres, "são uma gota de ajuda num oceano de necessidades" porque, praticamente todos os 2,3 milhões de habitantes deste confinado território estão a atravessar agruras nunca vistas.
O chefe da diplomacia israelita, Eli Cohen, que tem insistido na comparação do Hamas com o "Estado islâmico", com uma agressividade inaudita, virou-se para o Secretário-Geral da ONU, numa reunião do Conselho de Segurança, em Nova Iorque, para debater a situação em Israel e Gaza, dizendo-lhe que se "todas as nações do mundo" não estiverem em sintonia com o esforço israelita para apagar o Hamas da face da terra, "estas serão as horas mais negras da ONU" e que isso acontecerá sob a liderança de António Guterres.
A situação está de tal modo tensa que o embaixador de Israel na ONU, Gilard Erdan, pediu mesmo a Guterres que se demita, se não se retratar das afirmações que fez, e anunciou que o seu país não vai permitir a entrada de elementos das Nações Unidas, o que já está a ser feito, negando visto ao chefe das Operações Humanitárias das Nações Unidas (OCHA), Martin Griffiths.
O que é que, afinal, fez António Guterres que tanto enfureceu o Governo israelita? A resposta é simples. Não foi o facto de ter dito, apesar de ter sido isso o mais sublinhado por Eli Cohen, que os bombardeamentos israelitas a Gaza são uma "punição colectiva" sobre civis palestinianos indefesos, nem sequer que Telavive está a "ferir" a lei internacional dos Direitos Humanos...
Foi sim deixar subentendido, no entender de Telavive, que o Hamas é uma entidade com quem se pode estabelecer um diálogo mínimo para estabelecer acordos. Desde logo um cessar-fogo humanitário e ainda que o ataque deste grupo não aconteceu num "vácuo" sem contexto mas sim num cenário de "ocupação sufocante" israelita da Palestina, cuja população viu as suas terras "devoradas por colonatos e violência" ao mesmo tempo que foram obrigados a deslocamentos forçados aos milhares.
Isto tudo, apesar de Guterres ter igualmente condenado os brutais ataques do Hamas com as palavras mais severas.
Só que, se Telavive estava à espera que Guterres se encolhesse, o tiro saiu pela culatra, porque, já hoje, quarta-feira, 25, através da rede social "X", o Secretário-Geral da ONU, e nessa condição, veio repetir que "estamos num momento crucial onde é vital ser claro no princípio de proteger os civis".
E noutra publicação na mesma rede social, duas horas depois, Guterres acrescentou, repetindo as declarações de terça-feira, 24, que enfureceram os israelitas, dizendo que "os ataques horrendos do Hamas não podem justificar a punição colectiva do povo palestiniano".
Provavelmente, Israel e os seus serviços de recolha de informações passaram por cima do período em que Guterres foi dirigente partidário e depois primeiro-ministro em Portugal, na década de 1990, onde forjou, com frieza, a imagem de homem com uma sólida formação cristã e uma irredutível teimosia e coragem face a todos os desafios, onde sobressaia a ideia de que, para ele, antes quebrar que torcer.
Depois das palavras duras e inéditas dirigidas pelo ministro dos Negócios Estrangeiros e pelo embaixador de Israel na ONU, este país cancelou um encontro que tinha com Guterres, perante alguns dos lideres mundiais mais relevantes, entre estes o secretário de Estado norte-americano, Antony Blinken, que tem sido um dos mais robustos apoiantes de Israel, tendo mesmo, aquando da sua visita a Telavive, afirmado que estava ali como judeu e ao lado de Israel incondicionalmente.
Há 17 dias consecutivos que a Faixa de Gaza, um território que conta com a mais densa concentração de população em todo o mundo, com 2,3 milhões de pessoas emparedadas, sem terem para onde sair, em apenas 365 kms2, com 40 de comprimento e nove de largura, entre o Mar Mediterrâneo, Israel e o Egipto, a sul, é bombardeada com severidade, enquanto as IDF, forças de defesa de Israel, erguem uma gigantesca máquina de guerra na fronteira norte, com milhares de carros de combate, peças de artilharia e mais de 300 mil militares prontos a avançar sobre o norte de Gaza.
Conter os falcões de guerra em Telavive
Tanto os aliados israelitas europeus como o maior de todos eles, os EUA, têm procurado conter a impetuosidade belicista dos falcões de guerra em Telavive, especialmente o ministro da defesa, Yoav Gallant, que ainda nesta segunda-feira, 23, 17 dias após o ataque inicial do Hamas, repetia que Israel vai "avançar com uma força nunca vista" sobre Gaza, onde vivem, como o mesmo afirmou, "animais com forma humana".
Tanto os EUA como os países europeus, quase em uníssono, têm feito flamejantes pedidos de contenção às forças israelitas nos ataques a Gaza, de forma a evitar a morte de civis, embora os norte-americanos sejam os menos efusivos nestes pedidos.
Só que, segundo noticiou agora The New York Times, situação para a qual alguns analistas militares já tinham chamado a atenção, Israel não tem mesmo um plano exequível para invadir Gaza por via terrestre e tem sérias dúvidas de que, se esse passo for dado, daí resultará a total aniquilação do Hamas.
Isto, sabendo-se que este movimento tem a sua estrutura política fora do território, e as suas principais chefias militares salvaguardadas dessa eventual incursão terrestre, sabendo ainda Israel que, mantendo as estruturas de comando, o Hamas não tem quaisquer dificuldades em recrutar combatentes para as suas Brigadas Al Qassam, sendo esta mortandade entre civis em curso em Gaza um "chamariz" extra para atrair voluntários entre uma população radicalizada, desesperada e extremamente jovem.
Segundo o mais influente jornal norte-americano, que cita fontes do Pentagono e da Administração Biden não identificadas, foi mesmo o secretário da Defesa dos EUA, Lloyd Austin, que chamou o ministro da Defesa israelita, YOav Gallant, para o avisar da insensatez de uma incursão terrestre, que carece de uma "séria ponderação" por causa da densidade populacional no terreno.
Mas a questão que mais sobressai desta notícia no The New York Times é a dúvida que existe entre as chefias norte-americanas se Isral tem mesmo um plano bel elaborado para emoldurar a invasão terrestre com a qual Netanyahu pretende conseguir erradicar totalmente o Hamas da Palestina.
O olhar americano
Todavia, esta notícia foi, quase em simultâneo, acompanhada por uma declaração de John Kirby, o porta-voz do Pentagono, que esclareceu a posição dos EUA sobre a guerra em Gaza e que consiste em achar que ainda é cedo para um cessar-fogo, que Israel tem direito a criar condições para a sua segurança e que o Hamas deve ser efectivamente erradicado.
Sabe-se ainda que o Pentagono deslocou para Israel um grupo de oficiais especializados em guerrilha urbana para servirem de conselheiros aos comandantes das IDF, chefiados pelo general James Glynn, que teve um papel de relevo na guerra contra o `estado islâmico" e ainda no Iraque, durante a invasão deste país pelos EUA, em 2003.
Entretanto, a ajuda humanitária, embora a conta-gotas, já começou a chegar ao sul de Gaza. Pela fronteira de Raffah, com o Egipto, tendo, desde Sábado, entrada no território perto de 80 camiões, sendo que as agências da ONU estimam que para acudir às necessidades mínimas, serão necessários pelo menos 100 camiões por dia.
Isto, porque as mais de 800 mil pessoas, dos 1,1 milhões que Israel exigiu que deixassem o norte de Gaza em direcção ao sul, estão alojadas de forma provisória, sem condições de salubridade, alimentos, água ou medicamentos... enquanto as mais de 1,2 milhões que já habitavam a região a sul do Rio Wadi, ficaram igualmente inundadas de miséria e escassez.
É ainda de sublinhar que o Hamas já libertou quatro dos mais de 220 reféns que mantém sequestrados em Gaza, feitos durante a operação de 07 de Outubro, no sul de Israel, especialmente nos kibutz mais próximos da fronteira com Gaza e na festa de música moderna no deserto do Negueve, onde milhares de jovens estavam concentrados naquele dia, tendo sido mortos perto de 300 às mãos dos terroristas deste movimento e da Jihad Islâmica.