O pacote de ajuda financeira a Israel de pouco mais de 26 mil milhões USD, aprovado no conjunto com o apoio à Ucrânia (61 mil milhões USD) e a Taiwan (8 mil milhões USD), no valor total de 95 mil milhões USD, não oferece quaisquer dúvidas sobre o inequívoco e incondicional apoio norte-americano a Israel.
Mas deixa em evidência, como sugerem alguns analistas, que a Administração norte-americana não tem total controlo dos mecanismos de decisão para enviar dinheiro e armas para Israel.
Isto, porque este gigantesco pacote de ajuda de 26 mil milhões USD e um lote de 25 F-35, os aviões de guerra mais modernos do mundo, além de milhares de misseis e munições de artilharia, chegam a Israel quando é mais evidente que nunca que os apelos de Washington a Netanyhau para reduzir o número de mortes de civis em Gaza não obtém, há meses, qualquer eco.
Pelo contrário, nos dias que antecederam a aprovação, no Sábado, na Câmara dos Representantes do Congresso dos Estados Unidos das América do pacote financeiro para Israel (os aviões de guerra fazem parte de outro plano de ajuda), os ataques israelitas ceifaram a vida a mais de 200 pessoas, como sempre, maioritariamente crianças e mulheres.
O desafio continuado do Governo de Benjamin Netanyhau à Administração Biden, mesmo que os EUA sejam, de longe, o grande financiador do Exército israelita, foi ainda "premiado", na semana passada, com o veto de Washington no Conselho de Segurança a uma proposta da Argélia para que este órgão aceitasse a Palestina como um membro de pleno direito das Nações Unidas.
Isto, apesar de, quase sem outra excepção, além dos EUA, o mundo inteiro defender há décadas que o único plano de paz viável para ser duradouro na Plestina é o que está plasmado nos Acordos de Oslo de 1993, mediados pelos EUA, e que passa pela criação de dois Estados soberanos (Palestina e Israel) na região.
Este pacote de ajuda norte-americano a Israel contém uma parcela substancial destinada à ajuda humanitária, mas a sua aprovação, que deve, tal como as parcelas para a Ucrânia e Taiwan, ser ainda ratificada no Senado, a câmara alta do Congresso, surge com uma proibição rígida de apoio à UNRWA, que é, apenas, a agência das Nações Unidas para os Refugiados da Palestina, o principal veículo de subsistência de milhões de palestinianos esfomeados e doentes.
Enquanto na Palestina se olha para este apoio dos EUA como aquilo que ele é, uma carta branca para a continuidade do massacre de palestinianos pelas Forças de Segurança de Israel (IDF), o que levou a Autoridade Palestiniana a ameaçar cortas relações com Washington, em Telavive, Benjamin Netanyhau enfatizou que se trata do "apoio total dos EUA a Israel e à defesa da civilização ocidental".
Perplexidade do 07 de Outubro começa a emergir
Entretanto, aquele que é, provavelmente, o mais intrigante caso de inépcia da intelligentsia israelita, ao qual muitos atribuem uma dimensão de "cabala", que foi o ataque do Hamas a 07 de Outubro do ano passado, e que lançou a escada para a actual destruição de Gaza, começa a saltar nas sombras em Telavive e a fazer vítimas internas.
Para já, foi o chefe da AMAN, a secreta militar, Aharon Haliva, que se demitiu, porque, segundo a Al Jazeera, estava sob forte pressão interna para dar explicações para aquilo que, logo na altura, muitos analistas afirmaram ter sido um embuste.
É que, não apenas a AMAN, como a Mossad, a secreta externa, e a mais conhecida organização de intelligentsia do mundo, a par da CIA, e o Shin Bet, interna, todas elas tidas como estando entre as mais eficazes do mundo, não perceberam quaisquer indícios prévios ao avanço das Brigadas Al Qassen, o braço armado do Hamas naquele dia 07 de Outubro.
Além disso, a fronteira entre Israel e Gaza é a mais vigiada do mundo, com milhares de câmaras e postos de vigia por satélite, os mais sofisticados do mundo, ficou às escuras quando perto de mil - algumas fontes falam em menos - combatentes do Hamas apanharam os quarteis desprevenidos, tendo capturado e matado centenas de militares das IDF, além de centenas de civis, num total de 1.200 mortos.
Essa mortandade serviu para o primeiro-ministro Benjamin Netanyhau lançar a operação militar ainda em curso em Gaza, que culminou com a destruição quase total do território onde sobrevivem 3,2 milhões de pessoas em apenas 365 kms2.
Mas serviu principalmente para que Netanyhau deixasse de ter a pressão das ruas, onde diariamente, milhares de israelitas pediam a sua cabeça, e da justiça, onde estava (está!) a ser julgado por corrupção e branqueamento de capitais, servindo esta guerra para se manter no poder.
Com esta demissão do chefe da AMAN, esta questão, a estranha inoperância da intelligentsia militar, da Mossad e do Shin Bet, volta em força para atormentar Benjamin Netanyhau, podendo ter consequências no próprio Governo, porque, já havendo a assunção de responsabilidades "técnicas", terá igualmente de haver o reconhecimento de responsabilidades políticas.
Este processo teria de ser aberto com estrondo com o fim da guerra em Gaza, mas, com este escândalo, outro começa ainda a ganhar dimensão e não é menos grave, que é o facto de Israel, com o mais poderoso Exército do Médio Oriente, e um dos mais temidos do mundo, com apoio ilimitado da maior potência mundial, os EUA, e acesso sem freio aos seus arsenais, ao fim de quase sete meses, ainda não ter conseguido derrotar o Hamas e os seus combatentes, com armas ligeiras e pouco mais.
Além disso, nenhum dos três objectivos definidos por Benjamin Netanyhau, e o seu ministro da Defesa, Yoav Gallant, que eram libertar todos os reféns levados para Gaza a 07 de Outubro, aniquilar o Hamas de uma vez por todas e fazer de Gaza uma zona segura para Israel, foi conseguido...
Pelo contrário, essa tarefa, mesmo com mais de 34 mil mortos entre civis em Gaza, com mais de 80% dos edifícios destruídos, com a obstrução da entrada de alimentos e água e medicamentos no território, com apenas 40 kms de extensão por nove de largura, e onde se amontoam 3.2 milhões de pessoas, parece cada vez mais uma miragem...
A outra vulnerabilidade...
A par desta situação em Gaza, o Governo israelita, o mais radical de sempre, desde que existe Estado israelita, desde 1948, foi agora confrontado com outra realidade que Netanyhau também vai ter de explicar, que é a vulnerabilidade face ao poderio demonstrado pelo Irão no ataque de 13 de Outubro em resposta ao míssil lançado por Israel contra o seu consulado na Síria, a 01 de Outubro.
Em cima da sua mesa de trabalho, Netanyhau tem uma questão à qual terá de responder muito em breve: como é que o Governo mais radical, religiosa e ideologicamente, composto por radicais ortodoxos, que visam a limpeza étnica da Palestina para dar lugar ao "grande Israel", explica ter colocado o país na sua situação mais frágil de sempre.
Isto, porque extinguiu a "mística" que havia sobre as IDF, que não conseguem derrotar, como sublinha o analista militar major-general Agostinho Costa, um bando de guerrilheiros com sandálias e kalashnikovs, e deixou que o Irão mostrasse a vulnerabilidade do "mítico" sistema de defesa antiaéreo composto pela "Cúpula de Ferro", a "Fisga de David" e os misseis "Flecha", que em inglês são, respectivamente, conhecidos pela "Iron Dome", "David"s Sling" e "Arrow".
Ainda em curso está, todavia, a incursão sobre Rafah, no sul, junto à fronteira com o Egipto, que é a última cidade de Gaza onde as IDF ainda não entraram e arrasaram, e onde estão refugiados mais de 1,2 milhões de civis, a maior parte mulheres e crianças, que para ali se dirigiram para fugir dos ataques israelitas no norte e centro do território.
A carta-branca dada por Washington para avançar sobre este derradeiro refúgio em Gaza, alegadamente surgiu porque os EUA trocaram esse "livre trânsito" para Rafah pela redução da intensidade do ataque ao Irão, de forma a reduzir a tensão no Médio Oriente, onde é produzido 35% do crude consumido no mundo, e que poderia explodir face a um confronto directo e alargado entre os dois países-inimigos.
Mas, essa carta-branca é igualmente a garantia de que mais alguns milhares de mortos se vão juntar à extensa lista de vidas inocentes ceifadas nestes mais de seis meses de guerra.
E para antever isso basta pensar que Gaza já tem uma densidade populacional de mais de 5.000 pessoas por km2, uma das mais altas do mundo, que em Rafah, depois de para ali terem ocorrido 1,2 milhões de refugiados, estará, seguramente, em mais do dobro da média do território antes da invasão israelita.