Entre as organizações mais relevantes com ligações umbilicais ao Irão estão o Hezbollah no sul do Líbano, os Houthis, no Iémen, o Hamas, em Gaza, e as milícias xiitas no Iraque e na Síria, e todas elas sofreram rudes golpes nas suas lideranças, sendo os mais robustos a morte de Hassan Nasrallah, que dirigia o Hezbollah desde 1992, e de Ismail Haniyeh, líder do Hamas.
A eliminação destes dois dirigentes de organizações próximas do Irão, embora o Hamas não seja uma criação do universo xiita, vieram com a agravante de terem sido humilhações vigorosas para o prestígio iraniano, especialmente a forma como Haniyeh foi abatido na capital iraniana, Teerão.
A generalidade dos analistas interroga-se agora, e com maior ênfase após a morte, nesta sexta-feira, de Nasrallah, e com ele cerca de uma dezena de dirigentes de topo do Hezbollah, incluindo oficiais da Guarda Revolucionária do Irão (GRI) no sul de Beirute, capital do Líbano, num dos mais poderosos bombardeamentos da longa história de ataques israelitas em solo libanês, o que pode estar por detrás desta ruidosa contenção de Teerão.
Até porque, além destes recentes assassinatos de múltiplas figuras de relevo no universo das organizações com ligações ao Irão, está ainda na memória o assassinato de Qassen Soleimani, o líder histórico da GRI e herói nacional iraniano, em Janeiro de 2020, em Bagdade, por um míssil disparado pelos norte-americanos com apoio da Mossad israelita.
Irão promete apoio ilimitado
Como das outras vezes, o líder máximo do Irão, aiatola Ali Khamenei, já veio prometer vingança para a morte de Nasrallah, que deixou tudo e todos sem reacção, como o demonstra não ter ainda sido substituído, como geralmente acontece nestas circunstâncias de forma a mostrar vigor organizacional.
Alguns analistas arriscam apontar como justificação para esta contenção do Irão e dos seus ramos no terreno além-fronteiras, com a existência de um master plan mais vasto, que gera em torno da "guerra global" pela criação de uma nova Ordem Mundial onde o Sul Global, assente no eixo Moscovo-Pequim-Teerão (e Nova Deli, embora menos expressiva) procura desmaterializar a histórica hegemonia planetária do Ocidente Alargado liderado pelos EUA.
Isto, porque, além do conflito na Ucrânia, que a Rússia, se sair dele vitoriosa, inflige um rude golpe nessa hegemonia, porque são os países da NATO/EUA, que suportam a 100% a capacidade militar ucraniana, Moscovo organiza já em Outubro a mais importante Cimeira dos BRICS de sempre, onde se espera o anúncio da entrada de mais um punhado de membros..
E os BRICS são a ferramenta política e económica com que Rússia, China e Irão, Índia, Brasil e África do Sul, pretendem esbater a hegemonia global dos EUA e dos seus fieis aliados europeus ocidentais, especialmente agora que a organização foi alargada a cinco novos membros, o Egipto, a Etiópia, a Arábia Saudita, os Emirados Árabes Unidos e o Irão, estando na calha para aderir mais uma dezena de candidatos, como a Tailândia, a Indonésia, o Vietname, o Bangladesh, a Nigéria, a Argélia, ou, entre outros, Marrocos.
O papel de russos e chineses
Ou seja, uma resposta avassaladora agora do Irão e dos seus aliados regionais, iria abrir uma guerra total no Médio Oriente, com a entrada inevitável no conflito pelos Estados Unidos, ao lado de Israel, que têm na região uma vasta frota naval de porta-aviões, navios de guerra, incluindo submarinos nucleares, tirando o "chão" ao master plan de Moscovo, Pequim...
Isto, porque se há alguma coisa que russos e chineses já perceberam há muito é que a via militar dificilmente poderá afectar a hegemonia ocidental fortemente assente no poderio económico norte-americano, visto que o financiamento das guerras por Washington é feito através da impressão de dólares cujo contravalor é, precisamente, o seu poderio militar e hegemonia económica global.
O que deixa a porta aberta para, como notam analistas internacionais, como o professor da Universidade de Chicago John Mearsheimer, ou o economista e analista em geoeconomia e geopolítica Jeffrey Sachs, da Universidade de Columbia, a possibilidade de russos e chineses terem como objectivo alargado retirar poder ao dólar através dos BRICS, fragilizando assim a capacidade de fogo da mais poderosa arma do arsenal económico norte-americano, ao substituírem a, até aqui, moeda franca global pelas suas próprias divisas.
Essa erosão do poder do dólar, segundo estes analistas, já está a acontecer, como o demonstra o facto de só as trocas comerciais entre a Rússia e a China somarem, em rublos e yuans, o equivalente anual a 200 mil milhões USD, sendo que russos e indianos caminham a passos largos para essa grandeza de valores nos seus negócios bilaterais.
Esta é a tese mais robusta para justificar a contenção iraniana, que, como foi largamente noticiado, também pelo Novo Jornal, começou a ser mais evidente logo após a morte de Ismail Haniyeh, o líder do Hamas, em Julho último, coincidindo com ma viagem-relâmpago do novo presidente do Conselho de Segurança da Rússia, o ex-ministro das Defesa, Sergei Shoigu.
Este esforço para travar a impetuosidade iraniana tem tracção reforçada no facto de, meses antes, em Abril, o Irão ter lançado um gigantesco ataque directo a Israel, com centenas de drones e misseis, incluindo alguns hipersónicos, após a morte, por um míssil israelita, de vários comandantes da Guarda Revolucionária, no seu consulado em Damasco, capital da Síria.
Porque é que o Irão ripostou fortemente em Abril e nada fez de especial em Julho, quando Israel eliminou em Beirute o nº2 do Hezbollah, general Fuad Shukr, e elemento de grande proximidade ao Irão, e horas depois, Ismail Haniyeh, em Teerão, naquilo que foi uma robusta humilhação para os iranianos ao verem o "inimigo" abater um seu hospede, o que é, na tradição islâmica, uma das piores ofensas, e nada fez agora, com o abate de Hassan Nasrallah, um amigo íntimo do "supremo Líder iraniano, aiatola Ali Khamenei? Apesar das muitas teses, não há uma resposta cabal.
Até porque a outra possibilidade com pés para andar é que o Hezbollah e o próprio Irão, como nota o analista britânico Alexander Mercouris, que sendo claramente pró-russo, tem marcado as suas análises em factos reconhecidos, podem estar profundamente infiltrados, seja por agentes israelitas, ou porque a Mossad e a AMAN, a secreta militar de Telavive, desencriptaram os códigos de comunicação entre o Hezbollah e o Irão.
O que deixa em aberto igualmente a possibilidade de que qualquer resposta em larga escala às operações israelitas possa ser antecipada e anulada por contramedidas, cujas capacidades ficaram de novo bem patentes ainda esta noite, de domingo para segunda-feira, 30, ao abaterem o líder do Hamas no Líbano, em pleno coração de Beirute, o que sucede pela primeira vez em largos anos.
Além disso, tamém recentemente, Israel desferiu, num golpe que mais parecia saído de um guião de Hollywood, através da explosão de pagers e walkie talkies que devastou uma boa parte da sua capacidade organizativa nos seus quadros e lideranças intermédias.
Quem pode substituir Nasrallah?
Enquanto a mortandade continua no Líbano, onde os israelitas, em menos de uma semana, já mataram mais de mil civis nos seus ataques poderosos ao bastião do Hezbollah, fontes libanesas apontam para mais de 400 só no ataque ao quartel-general do movimento xiita em Beirute, que estava situado numa zona de prédios habitacionais, - um quarteirão foi totalmente arrasado na mais violenta explosão alguma vez sentido neste conflito - no qual morreu Nasrallah, permanece por conhecer o substituto do histórico líder.
Numa análise divulgada esta segunda-feira, a Al Jazeera aponta para a possibilidade de o novo líder do Hezbollah poder vir a sair de dois nomes sonantes do movimento que escaparam à vaga de eliminações israelitas.
A morte do secretário-geral do Hezbollah deixou um profundo vácuo difícil de preencher, embora o Irão, pela voz de Ali KHamenei, ter já garantido todo o apoio à sua reorganização, que será difícil porque Nasrallah liderava desde 1992, quando substituiu o igualmente eliminado por Israel Abbas al-Musawi.
O problema é que toda a solidez do Hezbollah estava assente no rosto de Nasrallah, uma figura hegemónica no grupo, que reconstruiu totalmente à sua imagem, e a sua ligação umbilical ao Irão.
Porém, a sua substituição terá efectivamente de ser feita rapidamente, correndo o risco a organização de deixar uma imagem de fragilidade ainda maior, e os nomes que mais surgem nos radares mediáticos para a difícil tarefa de ocupar o lugar de Hassan Nasrallah são Hashem Safieddine e Naim Qassem.
Hashem Safieddine, com 60 anos, libanês, mas com a sua formação a passar pelo Irão e pelo Iraque, em teologia, é o actual chefe do Conselho Executivo, visto como o na prática nº2 do grupo, sendo ainda primo direito do falecido líder, e claramente o favorito à sucessão.
Se for nomeado para o cargo, Safieddine passará a ser, automaticamente, um dos alvos a abater por Israel, indo claramente para o topo da lista, não apenas por ser o líder do Hezbollah, mas também porque tem, até agora, assumido a liderança do Conselho Jihadista do importante Conselho Shura, que é um órgão alargado mas sem limites para consulta das lideranças antes da tomada das grandes decisões.
O outro nome com possibilidades de suceder a Nasrallah é Naim Qassem, de 71 anos, e o actual efectivo nº2 do Hezbollah, que tem a seu favor ainda um longo currículo de participação em batalhas contra os israelitas e internamente, no Líbano, também, sendo uma figura respeitada por ter sido um discípulo do famoso aiatola Mohammad Hussein Fadlallah.
A sua vasta experiência colhe ainda o facto de ter sido eleito vice-secretário-geral do Hezbollah em 1991, ainda no tempo da liderança de Abbas al-Musawi, e ser uma figura religiosa muito respeitada entre os xiitas de todo o Médio Oriente.
É igualmente membro do Conselho Shuria e é autor de um livro importante, que é lido tanto pelos correligionários como pelos seus inimigos, traduzido em várias línguas, denominado "Hezbollah, a história a partir de dentro".
Durante as próximas horas, ou dias, saber-se-á qual dos dois, se não aparecer uma surpresa, vai ocupar o lugar físico de Hassan Nasrallah, porque para ganhar a mesma preponderância no seio do movimento xiita precisará de tempo, muito tempo...