Depois do luso-cabo-verdiano Odair Moniz ter sido morto, já noite dentro, por um agente da Polícia de Segurança Pública (PSP), no Bairro do Zambujal, na Amadora, zona da grande Lisboa onde vive uma boa parte da comunidade angolana em Portugal, rapidamente começaram a aparecer caixotes de lixo incendiados.
Mas foi na segunda-noite que a revolta de milhares de jovens, que os media portugueses descrevem como sendo maioritariamente provenientes das comunidades de origem africana em Portugal, alastrou a pelo menos oito municípios da Grande Lisboa, incluindo na margem sul do Rio Tejo.
A noite de quarta-feira, 23, para hoje, quinta-feira, 24, foi a de maior gravidade, com dezenas de carros incendiados e autocarros de transporte público de passageiros, além da destruição de equipamentos públicos, como paragens de autocarro ou unidades de recolha de lixo e de resíduos sólidos urbanos seleccionados.
Há um ferido grave, motorista de um dos autocarros incendiados, que foi levado para o hospital com prognóstico reservado.
A revolta popular levou a um turbilhão de reacções na política portuguesa, incluindo uma sessão no Parlamento, especialmente depois de se ter percebido, devido a um vídeo divulgado nas tvs locais, que, contradizendo a versão oficial da PSP, mostra que o luso-cabo-verdiano morto não representava qualquer perigo imediato para o agente que o baleou mortalmente.
Segundo relatos dos media portugueses, a PSP descreve o momento em que Odair é morto desta forma: a vítima seguia no seu carro e foi mandada parar pelos agentes, não obedeceu e pôs-se em fuga, acabando por se despistar.
E ao ser abordado pelos dois agentes da polícia, segundo a primeira versão da PSP, atacou-os com uma faca, o que gerou a reacção de auto-defesa com o disparo letal; só que, mais tarde, soube-se, devido à insistência dos jornalistas, que o agente autor do disparo confessou à Polícia Judiciária que não havia nenhuma faca envolvida.
E, para piorar as coisas, um vídeo obtido a partir de uma câmara de segurança no local, mostra claramente que Odair Moniz estava desarmado, o que foi o fósforo que faltava para atear fogo ao barril de pólvora que são as dezenas de bairros nos subúrbios de Lisboa, habitados maioritariamente por famílias pobres e com problemas sociais graves.
Há já três noites que focos de incêndio iluminam a revolta de milhares de jovens que afluíram às ruas para largar a sua fúria devido ao histórico de hostilidade com a polícia em vários municípios.
O porta-voz da Polícia de Segurança Pública, subintendente Sérgio Soares, citado pelos média locais, avançou esta manhã de quinta-feira que se registaram focos de incêndio em ruas dos concelhos de Lisboa, Amadora, Oeiras e Sintra e Almada, já no distrito de Setúbal, mas esta lista cresceu com casos em Loures, Oeiras, Cascais...
Apesar de a morte de Odair Moniz ter sido a razão imediata para esta sucessão de tumultos na área da capital portuguesa, a montante está algo mais abrangente, que é o problema da avaria do elevador social que mantém milhares de jovens oriundos de famílias menos favorecidas sem soluções de futuro, seja na escola, seja no mercado de trabalho, abrindo auto-estradas para o mundo da criminalidade juvenil, tráfico de droga e violência de gangues.
E, como se sabe, no interior destas bolsas urbanas sem futuro estão, em grande parte, os descendentes das comunidades dos países africanos de língua portuguesa, com destaque para a cabo-verdiana e guineense, mas também com muitos angolanos.
Sobre este problema, o primeiro-ministro português, Luís Montenegro, já veio afirmar que o Estado não vai pactuar com as agressões à lei e à ordem.
"Nós não vamos pactuar com esses episódios. Nós queremos tranquilidade, ordem pública e que cada pessoa possa exprimir a sua opinião, mas dentro das regras. Não vamos pactuar com a violência", disse, acrescentando que vai "endurecer a contenção" policial a esta vaga de violência.
O chefe do Executivo luso notou ainda que não exista um olhar sobre o comportamento policial, que, garantiu, também está sob escrutínio.
"Não significa que os agentes das forças de segurança não estão sob escrutínio. Neste caso específico, houve uma vida que se perdeu, temos de ter certeza que a actuação da polícia foi correcta. Por isso foi aberto um inquérito", apontou.
O agente da polícia que efectuou o disparo letal sobre Odair Moniz foi constituído arguido e já decorre um processo judicial para apuramento de responsabilidade e posterior julgamento.
Esta situação está ainda a ser aproveitada politicamente, com destaque para o Chega, o partido radical de extrema-direita, que já veio defender, apesar do uso de uma retórica dúbia, a defesa da acção policial e o combate férreo aos gangues de marginais por detrás desta onda de violência.
Aliás, um dos seus dirigentes, Ricardo Reis, assessor parlamentar do Chega, foi à rede social X escrever que não se perdeu nada com a morte de Odair: "Menos um criminoso... menos um eleitor do Bloco (de Esquerda)".
O deputado Pedro Pinto, uma das caras mais conhecidas do Chega, defendeu mesmo, num debate na RTP3, que se os polícias "disparassem mais a matar, o país estaria na ordem"
E o líder do partido, André Ventura, segundo o jornal Expresso, fez um vídeo a dizer que se devia agradecer ao polícia que baleou o homem que acabou por morrer.