Na última década, as relações sino-russas evoluíram da desconfiança histórica para uma mutuamente vantajosa parceria estratégica, mas, se não é exactamente assim, ambos pretendem fazer crer que assim é, já está no patamar da amizade eterna.

Em ciclos curtos, Vladimir Putin desloca-se à China, Xi Jinping vai a Moscovo, delegações ministeriais de um e de outro país afadigam-se em reuniões de trabalho, e ambos, lado a lado, enfrentam o "Ocidente alargado" em nome do "Sul Global" numa batalha de titãs.

Batalha essa que, como todas as "guerras", sabe-se como começam, neste caso foi por puro interesse económico e geoestratégico, mas ninguém sabe como vai terminar, sendo, no entanto, já claro, que o mundo baseado em regras criado pelos EUA no pós II Guerra Mundial vai desaparecer no calor do amor eterno destes dois gigantes asiáticos.

Basta ouvir as palavras de Putin e Xi esta quinta-feira, 16. na capital chinesa, onde o chefe do Kremlin chegou para uma visita, mais uma, de dois dias, onde a agenda oficial fala de reforço das relações económicas, na cooperação empresarial e na busca do desenvolvimento mútuo...

... mas que se sabe que a agenda que conta é consolidar a estratégia sino-russa para enfrentar os Estados Unidos e os seus aliados ocidentais, num contexto alargado de "guerra" pela nova ordem mundial, que tem no conflito ucraniano o seu mais escaldante capítulo e que nenhum dos lados pode perder.

As ameaças levadas a Pequim

Perante as recentes visitas a Pequim de vários lideres ocidentais, do Presidente francês Emmanuel Macron, ao chanceler alemão, Olaf Scholz, passando pelo secretário de Estado norte americanos, Antony Blinken, e pela secretária do Tesouro, Janet Yellen, todos com a missão única de separar o novo "casal maravilha" do "grand jeu", Vladimir Putin apressou-se a juntar eventuais peças que se tenham soltado da engrenagem sino-russa.

Em declarações ao jornal russo Izvestia, o porta-voz de Vladimir Putin, Dmitri Peskov, disse que a China é "suficientemente forte" para aguentar a pressão ocidental que visa fragilizar os laços que ligam Pequim a Moscovo.

"A China é demasiado poderosa para se deixar levar pelas descaradas tentativas ocidentais" de diluir a substância de que une os dois países, que, recorde-se, o ministro dos Negócios Estrangeiros chinês, Wang Yi, em 2022, classificou como sendo "dura como uma rocha" e impossível de destruir.

E a propósito dos evidentes receios que o "Ocidente Alargado" demonstra, não apenas com a ascensão económica e vertiginosa da China, com a energia fornecida pela Rússia, e a invencibilidade da Rússia conseguida com o apoio, tão simulado como evidente da China, contra as sanções euro-americanas, Vladimir Putin procurou sossegar o mundo.

"Os laços que unem a Rússia e a China não são ameaça para nenhum outro país", asseverou o líder russo, sublinhando que, pelo contrário, "são uma força estabilizadora para o mundo".

O que Putin sabe que o resto do mundo também sabe é que as relações sino-russas não são apenas isso, são também a força motriz dos BRICS, agora 11 Estados-membros, juntando o poderio desta dupla às potencialidades da Índia, do Brasil, da Arábia Saudita...

Os números não enganam

Os BRICS, em PIB PPC (Paridade de Poder de Compra), já passaram, em grande velocidade e a somar distância, o grupo da elite industrial e económica ocidental, o G7, que junta os EUA aos mais fortes do "Ocidente Alargado", o que é, efectivamente, uma mudança muito mais relevante para o mundo que aquela que os conteúdos dos media ocidentais deixam perceber.

Isto, porque, como defende Richard D. Wolff, economista e professor universitário norte-americano da prestigiada Universidade Massachusetts Amherst de 1973 a 2008, a ascensão dos BRICS não pode ser vista apenas em números, porque o mais importante não é terem já deixado o G7 para trás no que diz respeito ao PIB PPP.

O que distingue o Produto Interno Bruto (PIB) tradicional e o PIB PPC é o primeiro mede o valor total de bens e serviços produzidos por uma economia em termos monetários, e o PPC considera as diferenças nos preços de bens e serviços entre países, permitindo uma visão mais precisa das economias em termos reais.

O que verdadeiramente assusta os EUA e os europeus ocidentais é que esta ascensão dos BRICS, onde a China é um dos principais motores, e económica e industrialmente o mais robusto, é que o resto do mundo, se tiver de fazer escolhas de lado da barricada, o lado "sul" começa a ser muito apelativo e será brevemente o, destacadamente, mais interessante.

Isto, quando contextualizado, sublinha este académico conhecido pelas suas análises frias e surpreendentes, com a luta titânica, e, provavelmente, existencial, entre o "Sul Global" e o "Ocidente Alargado", tem ainda mais brilho à luz das mudanças inevitáveis na ordem mundial actual.

Em síntese, esta visita de Putin à China não é apenas relevante na consolidação das relações sino-russas, nem na certificação por parte de Moscovo de que Pequim não lhe vai falhar na fuga aos efeitos das sanções ocidentais no contexto da guerra na Ucrânia, é igualmente cimentar ainda mais o redesenhar da ordem mundial.

Ordem no mundo actual é injusta

A actual ordem mundial baseada nas regras saídas da II Guerra Mundial, cujos pilares são as plataformas globais como o FMI, o Banco Mundial ou mesmo as Nações Unidas, que foram definidas pelos EUA, servem melhor os seus interesses hegemónicos que os dos "Sul Global", dizem russos, chineses, indianos, brasileiros, sauditas...

E também porque é isso que dizem os números da pobreza, do desenvolvimento, do crescimento e está bem explicito no Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do Programa de Desenvolvimento da ONU (PNUD), onde o sul empobrecido esbraceja por sair do subdesenvolvimento enquanto o norte rico pretende manter as suas vantagens substanciais, quase todas fruto da exploração das riquezas naturais da "parte de baixo" do Planeta.

Na agenda escondida de Putin e Xi estará ainda a questão da fortaleza ocidental que é o Dólar norte-americano, a moeda franca mundial que é ainda a mais usada nas trocas comerciais em todo o mundo e que é uma das tais vantagens substantivas de Washington garantida pela ordem mundial erguida após 1945.

Mas isso também está a ser, apesar de lentamente, alterado pelo eixo Pequim-Moscovo, não apenas com a substituição do USD como moeda corrente das suas trocas comerciais, mas também porque a China, como grande "dono" da trilionária dívida dos EUA, começou a livrar-se dos dólares em grande velocidade deste 2021.

E isso é, claramente,uma ameaça para Washington, que, como muitos economistas admitem, a sua dívida global está já em níveis perigosos, actualmente na casa dos 35 triliões USD, um valor gigantesco que só se percebe quando se compara com os 27 triliões que são o Produto Interno Bruto (PIB) dos EUA, que é a maior economia mundial, que compara, por exemplo, com os 17 triliões USD da China.

Do USD ao Rublo e ao Yuan

Para já, segundo dados da economia russo-chinesa, as trocas comerciais entre estes dois gigantes é feita em 90% com recurso às moedas nacionais, o Rublo e o Yuan (Renminbi), sendo esta situação fruto de uma decisão tomada pelos dois Governos nos últimos 10 anos..

Isso mesmo disse Putin no encontro com Xi: "Estamos a dar um poderoso ímpeto na expansão das nossas trocas comerciais e a opção por usar as nossas moedas nacionais foi fundamental nesse sucesso".

Por seu lado, Xi Jinping, citado pelos media chineses, apostou em sublinhar a importância das relações com a Rússia como substância de "rejuvenescimento" dos dois países, sublinhando que a China "será sempre um bom parceiro" de Moscovo.

O líder chinês admitiu que o actual estado das relações bilaterais foi "duramente conquistado" e que os dois lados têm de "alimentar e cuidar" de forma a consolidar esse estado de forma permanente.

Ora, estas palavras foram dirigidas a Putin mas são claramente um recado para o ocidente que tem, como refere o Kremlin, "descaradamente" tentado destruir os laços sino-russos, porque, ao falar de "rejuvenescimento", Xi está a colocar o desafio nas mãos das novas gerações, dando-lhe carácter de perpetuidade que, na cultura chinesa, dificilmente se encontra algo de mais relevante.

E também o faz quando sublinha que a amizade actual entre Moscovo e Pequim foi duramente construída, sublinhando como factor indelével o esforço feito por ambos os lados, contra o veneno" que os lideres ocidentais procuraram inserir nas suas recentes visitas à China, especialmente Blinken, que ameaçou mesmo sancionar Pequim pelo apoio à Rússia.

Mas o mais relevante é sem dúvida quando Xi Jinping diz que os dois países têm de "alimentar e cuidar" o tal "amor" exigente entre Moscovo e Pequim, o que, sendo conhecido pela sua abordagem fria e pragmática às relações internacionais, o líder chinês significa que estas já estão no nível familiar.

E, tal como Putin, Xi também, segundo a Xinhua, procurou aliviar qualquer receio no resto do mundo, embora estas palavras sejam mais dirigidas ao resto do mundo que à elite do G7, afirmando que chineses e russos estão e vão "trabalhar para criar um mundo (ordem mundial) mais justo e leal".

Recorde-se que os dois países definiram a sua parceria estratégia assinada em 2022 como sendo "sem limites" e "sólida como uma rocha".