A reunião que vai decorrer na base militar norte-americana de Ramstein, na Alemanha, e que tem lugar periodicamente desde o início da guerra na Ucrânia, tem, como sempre, tema único, que é o apoio dos países da NATO a Kiev.
Ao longo dos quase três anos, 32 meses, que leva o conflito entre Ucrânia e Rússia, foi nestas reuniões de Ramstein - a vários níveis hierárquicos, mas que desta vez será no patamar de Chefes de Estado e de Governo - que a NATO apresentou algumas das mais importantes decisões no apoio aos ucranianos que, depois, são convertidas em medidas dos seus países-membros e não da organização em si mesma.
E, por essa razão, são sempre momentos vividos em Kiev com grande intensidade, porque há sempre uma nova entrega de armas, de dinheiro ou iniciativa político-diplomática que são apresentadas como momentos de viragem no conflito, onde a Rússia há longos meses leva vantagem.
Desta feita não é diferente, porque em cima da mesa, naquilo que a palavra do Presidente dos EUA é decisiva, está o já muito debatido, e dado como "morto" por quase todos os analistas e pelas páginas editoriais dos grandes media ocidentais pró-ucranianos, "plano de vitória" de Zelensky.
"Plano" sem caminho para andar
A sua inexequibilidade já foi confirmada por vários países da NATO, tal como é visível em jornais como o Financial Times, The Economist, Bloomberg, The Washington Post, Politico, THe Hill ou The New York Times, entre outros, mas em Kiev persiste a esperança de que em Washington possa ser decidido outro destino que não o arquivamento para o plano de Zelensky.
Esse plano consiste, como foi já revelado em grande medida, embora ao detalhe ainda não se saiba tudo, em duas medidas radicais: acelerar a entrada da Ucrânia na NATO, o que levaria esta organização militar para uma guerra directa com a Rússia, e a autorização para Kiev usar os misseis de longo alcance ocidentais nos ataques em profundidade no território russo, outra porta aberta para a III Guerra Mundial.
Sobre esse plano, que Volodymyr Zelensky foi mostrar a Joe Biden e à sua equipa, há duas semanas, aquando da Assembleia-Geral da ONU, em finais de Outubro, a Casa Branca optou pela ambiguidade estratégica, que é não o recusar de imediato nem abruptamente mas enviar pelos media sinais de que não tem pernas para andar.
Contexto que manteve uma relativa esperança em Kiev de que, nesta reunião de Ramstein, que está agendada para Sábado, 12, ocorra um volte-face e que os norte-americanos, que são, ainda, os aliados da Ucrânia que podem evitar a consumação da derrota militar iminente no campo de batalha, anunciem algo... "bombástico".
O cancelamento da deslocação que levaria Joe Biden à Alemanha e a Angola, anunciado pela Casa Branca, foi como um balde de água fria sobre a cabeça de Volodymyr Zelensky, porque a pressão para que os amigos americanos apressem a entrada na Ucrânia na NATO, organização que lideram desde a sua criação, em 1949, fica comprometida com a sua ausência, que não pode ser substituída pelo secretário da Defesa, Lloyd Austin.
Pentagono e Casa Branca desalinhados?
Isto, porque o Pentagono já deu claros sinais de que a Ucrânia já não está nas suas prioridades de topo, ao contrário de Biden, que mantém em Kiev boa parte do seu foco neste final de mandato, sendo, isso sim, o Médio Oriente e a latente conflitualidade no Índo-Pacífico visando a China.
Para a maior parte dos analistas, este cancelamento da passagem por Ramstein anunciado por Biden é o golpe de misericórdia no plano de Zelensky para ainda se manter à tona da água no mar de sangue que é o conflito no leste europeu.
Isto, porque o anúncio feito há três semanas pela presidente da Comissão Europeia, a já muito menos exposta à Ucrânia Ursula von der Leyen, de que a União Europeia ia fazer um empréstimo de 35 mil milhões de euros para entregar a Kiev está claramente comprometido, pelo menos para já, devido ao veto de alguns Estados-membros, como a Hungria e a Eslováquia.
Afundado numa crise económica sem paralelo, com as agências de rating a darem a Ucrânia em situação de "default", e com a frente de guerra em colapso iminente, Volodymyr Zelensky pode muito bem ter visto nesta ausência de Biden uma queda no abismo sem retorno para ainda ser possível mudar o curso da guerra.
O britânico The Guardian nota que não é claro como é que a ausência de Biden nesta Cimeira de alto nível, onde os encontros da NATO costumam ser maioritariamente no patamar dos ministros da Defesa, com uma ou outra presença superior, irá afectar as decisões a tomar, mas o chanceler alemão, Olaf Scholz já disse que a importância da agenda é de tal monta que esta reunião tem de ser remarcada.
A questão central é a entrada fora das regras da Ucrânia na NATO, onde os estatutos actuais impedem a adesão de países em guerra, questão de deve, por isso, ser uma carta fora do baralho, ficando como topo da agenda a autorização do uso pelos ucranianos dos misseis de longo alcance ocidentais contra alvos na profundidade do território russo.
Os avisos do Kremlin
Ora, este assunto é de elevado melindre porque, de Moscovo, o Presidente Vladimir Putin já avisou, e o seu ministro dos Negócios Estrangeiros, Sergey Lavrov, voltou a dizê-lo esta semana, que essa autorização seria o mesmo que uma declaração de guerra dos EUA, Reino Unido e França à Federação Russa.
Pior que isso é que, foi por causa dessa possibilidade que a Rússia alterou substancialmente a sua doutrina nuclear, passando a ser possível usar armas nucleares contra os países que atacarem a Rússia, mesmo com armas convencionais, se para isso contarem com apoio de potências nucleares, como é o casos destes três membros da NATO e que forneceram as armas de longo alcance a Kiev.
Os EUA entregaram os ATACMS, misseis balísticos com mais de 350 kms de alcance, enquanto britânicos e franceses forneceram os Storm Shadow e os Scalp - G, projecteis de cruzeiro com perto de 250 kms de raio, mas que, actualmente, só podem ser usados para atacar alvos russos dentro do perímetro do conflito.
Porém, para Zelensky, mesmo que essa autorização seja fornecida, o seu impacto pode estar comprometido a breve trecho porque as eleições nos EUA, a 05 de Outubro, podem ditar uma mudança de poder se o antigo Presidente Donald Trump vencer, porque este já disse que acaba com a guerra em 24 horas e isso só é possível retirando todos os apoios a Kiev.
Só a entrada imediata na NATO poderia ter um efeito de longo termo, porque a Ucrânia passaria a ficar protegida pelo famoso Artº 5º dos estatutos da Aliança Atlântica, que impõe a protecção mútua em caso de ataque a um dos seus membros.
O tempo da guerra e o tempo da diplomacia
Há, porém, uma dimensão dos efeitos deste cancelamento da participação de Biden na Cimeira de Ramstein, que pode não ser possível substituir, desde logo pelo calendário apertado do Presidente dos EUA quando faltam pouco mais de três semanas para as eleições Presidenciais, que é a clara falta de tempo de Zelensky no campo de batalha.
Isto, porque se somam umas atrás das outras as localidades que são tomadas pelos russos nas regiões de Donetsk e Zaporizhia, com as forças ucranianas em claras dificuldades para manter as posições, sendo este cenário pode piorar agora com a chegada do Inverno e as temperaturas baixas que podem chegar a 20º negativos.
Não apenas porque os russos têm uma superioridade clara nos céus, mais armamento e carros de combate pesados, que podem circular fora das estradas devido ao congelamento dos solos, mas ainda porque a Ucrânia tem a sua infra-estrutura energética praticamente destruída, sem possibilidade de manter o aquecimento das casas e a garantia de corrente eléctrica por vários meses.
É face a este cenário que o alemão Olaf Scholz, que já defendeu que devem ter lugar conversações com o Presidente russo, fala agora em "apoio de longo termo à Ucrânia" sem especificar que é de armas que se trata.
Isto sendo já visível entre os membros da União Europeia uma vontade de acabar com o conflito, retomar as relações com Moscovo e apoiar a reconstrução ucraniana... como o disse sem titubear, alem de Scholz, também o Presidente da República Checa, Petr Pavel, e já o dizem há muito os líderes da Hungria e da Eslováquia, e agora o francês Emmanuel Macron volta igualmente a defender...
As duas caras de Zelensky
O que contrasta com as posições oscilantes de Volodymyr Zelensky que vai alterando o discurso entre a defesa de conversações com a Rússia e a defesa da continuação da guerra e da derrota de Moscovo como única solução viável.
Isso mesmo diz na antecipação desta Cimeira de Ramnstein, pedindo mais sistemas de defesa antiaérea, como os norte-americanos Patriot ou os alemães Iris-T, "para impedir o terro russo", além de mais carros de combate, misseis de longo alcance e total liberdade no seu uso.
Mas há uma ligeira alteração no discurso inicial sobre o seu "plano de vitória", que foi notada pelos analistas já nesta quarta-feira, 09... que é o facto de Zelensky ter afirmado que admite proceder a alterações aos seu plano de vitória "depois de perceber totalmente as posições dos aliados" da Ucrânia.
O que pode ser um indício de que Zelensky admite voltar à posição de maior flexibilidade negocial com os russos, como o deixa entender as posições dos países europeus já cansados da guerra e com as suas economias a implodir, como é o caso da Alemanha e da França...
Mas há uma certeza que todos têm; Zelensky fará o que Biden entender que ele deve fazer.