Para perceber a dimensão deste problema, basta ao leitor desenhar mentalmente o mapa mundi e depois colocar alfinetes vermelhos no Médio Oriente, depois marcar igualmente o leste da Ucrânia, passar para Taiwan e, por fim, espetar o marcador mental na fronteira entre as Coreias do Norte e do Sul.

E se o leitor já tem este "mapa" dos mais flamejantes conflitos, ou potencialmente mais abrasivos conflitos em todo o mundo, actualmente na cabeça, Joe Biden, aos 82 anos, cansado e à beira de sair de cena a 01 de Janeiro, após as eleições norte-americanos de 05 de Novembro, tem-nos em cima da sua mesa de trabalho.

E qual deles o mais preocupante para o velho e debilitado inquilino da Casa Branca?, que ainda há uma semana se viu obrigado a cancelar uma visita a Angola por causa de um letal furacão, e que agora, quando se prepara para viajar para a Alemanha, corre o risco de ter de voltar a deixar o "Air Force One" em terra por causa de quatro tornados geograficamente limitados mas com fúria potencialmente destrutiva que pode mudar tudo em torno da rosa-dos-ventos.

E como se fosse pouco, para Biden e a sua equipa, estas quatro frentes não são as únicas dores de cabeça.

Há ainda o problema da guerra civil no Sudão, a não menos ameaçadora situação entre a Somália e a Somalilândia, a questão da disputa pelas águas do Nilo entre o Sudão, a Etiópia e o Egipto após a construção da "Grande Barragem do Renascimento" etíope, ou a instabilidade nos Grandes Lagos, tudo territórios onde Washington disputa influência com Pequim e Moscovo de forma directa ou indirectamente.

Parece, e é, demasiada responsabilidade para um homem sobre quem o peso da idade é visível, o que o obrigou a sair da corrida eleitoral, e com escassos dois meses e meio de mandato por cumprir, mas nada é em comparação com o que está a emergir nos últimos dias no sudeste asiático.

Há cerca de uma semana, a China anunciou um dos maiores exercícios militares no Estreito de Taiwan, que começaram nas últimas horas e onde oficialmente treina um bloqueio naval à ilha "rebelde", com Taipé a responder com uma reunião de urgência do seu conselho de segurança nacional e uma mobilização geral dos meios militares aéreos, navais e terrestres para enfrenar a "ameaça" de Pequim.

Isto deu azo a uma troca de acusações entre Pequim e Taipé, com, pelo meio, a China a avisar os Estados Unidos que não podem querer paz na região e estarem a apoiar militarmente uma ilha rebelde desrespeitando a política oficial de Washington de "uma só China".

Ao mesmo tempo, a China e a Rússia têm a decorrer no Pacífico aqueles que são, provavelmente, os maiores exercícios militares navais alguma vez realizados por estes dois países, que têm já uma parceria estratégica "ilimitada".

E, como cereja no topo do bolo, a Coreia do Norte esté de novo em pé de guerra com a Coreia do Sul, tendo, nas últimas horas destruído com explosivos todas as estradas que ligam as duas Coreias, com Pyongyang a anunciar uma "acção militar imediata" que visa advertir da forma mais robusta o vizinho do sul para a retoma da guerra que ficou em suspenso em 1953 com um armistício sem que alguma vez tenha sido assinado um acordo de paz.

Foi numa reunião com os seus comandantes militares e elementos do conselho de segurança nacional que Kim Jong-un anunciou o seu plano de acção militar imediata numa altura em que, de um momento para o outro, as tensões com a Coreia do Sul voltaram a inflamar de forma vertiginosa e sem que aparentemente isso fosse expectável.

Com esta renovada tensão na Península Coreana, onde os EUA são parte da força militar dissuasora da Coreia do Sul para eventuais apetites territoriais da Coreia do Norte desde a década de 1950, Joe Biden e a sua equipa em Washington somam quatro frentes onde são o "artista principal".

Isto, porque ao eterno problema coreano, soma-se a Ucrânia, onde os EUA são o maior contribuinte líquido em financiamento e armas na guerra de Kiev com a Rússia, o Médio Oriente, onde Israel depende quase integralmente do amigo norte-americano para as suas múltiplas frentes, e Taiwan, que, sem a protecção musculada de Washington, dificilmente manteria a sua posição de autonomia ilimitada.

A qual destes cenários que já estão ou podem ficar em breve a ferro e fogo, Joe Biden e a sua Administração vão dar prioridade?

Entre Taiwan e Israel, é difícil perceber, e a Península Coreana não é historicamente menos relevante para Washington, mas é mais fácil perceber que a Ucrânia é a menor destas quatro gigantescas dores de cabeça para o Presidente norte-americano. (Sobre estes quatro temas pode encontrar links em baixo nesta página que permitem um contexto abrangente)

O que permite antecipar sem grande risco que a visita à Alemanha na próxima sexta-feira, se as coisas não sobreaquecerem entretanto no Médio Oriente, onde a todo o momento se espera um ataque de Israel ao Irão, se em Taiwan um erro de cálculo não abrir as portas do inferno e se a Coreia do Norte não passar das palavras aos actos, será aproveitada por Joe Biden para, como, de resto, já era esperado, dar, com Scholz, um fim ao conflito na Ucrânia.

É claro que em Kiev, o Presidente Volodymyr Zelensky está aflito porque sabe que a sua guerra com os russos está a sair do radar principal de todos os seus aliados ocidentais, desde logo os americanos, que há meses estão a sair lentamente de cena, reduzindo o apoio militar e financeiro, passando as suas prioridades para o Médio Oriente.

E entre os europeus, a guerra na Ucrânia é uma dor de cabeça da qual se querem livrar mas não sabem como sem a tremenda desonra que seria abandonar Kiev de um dia para o outro depois de lhe prometerem todo o apoio até quando fosse preciso para, como sublinhou repetidamente a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, "esmagar a Rússia no campo de batalha".

Face a este cenário global, em Kiev a equipa de Zelensky deve estar a procurar a todo o vapor lidar com a situação antevendo que muito em breve e sem aviso podem ficar fora das prioridades dos aliados ocidentais, desde logo dos EUA, que têm nas mãos as batatas quentes de Taiwan, Península Coreana e Médio Oriente.

Mas também dos europeus, onde, e a Alemanha é disso um bom exemplo, cresce já exponencialmente uma crise económica robusta, devido, entre os factores mais importantes, a perda de acesso à energia, crude e gás natural, russa, que permitia à indústria pesadada Europa Ocidental manter uma competitividade que agora já não existe, como o mostra o facto de algumas das maiores empresas alemãs estarem a deslocar as suas fábricas para a China ou para os EUA.

E é aqui, neste cruzamento de escolhas difíceis, porque Kiev em todas elas sabe que vai perder, mas que pode perder menos numas que noutras opções, que o Presidente Zelensky está.

Como ainda tem o seu "plano de vitória" por abrir, porque o que dele deu a conhecer foram pequenos excertos e em nenhum deles com confirmação oficial, apenas através de fontes anónimas, pode, face a este quadro global onde emerge como a última das grandes prioridades norte-americanas, aproveitar para obter o melhor acordo possível com o Kremlin.

Isto, é, como sublinham alguns analistas, como John Mearsheimer, autor e especialista em ciência política internacional da Universidade de Chicago, Zelensky pode estar obrigado pelas circunstâncias a escolher o menor dos grandes males, que será ceder a Moscovo mas mantendo um país viável situado geograficamente entre o Rio Dniepre e as fronteiras leste da União Europeia, onde poderá ter uma porta aberta num futuro não muito distante.

Ou seja, com o apoio da máquina de propaganda ocidental que o tem amparado até aqui, Volodymyr Zelensky pode apresentar a continuidade de um Estado ucraniano viável, a garantia de entrada na União Europeia, e um conjunto de garantias internacionais de segurança para as novas fronteiras ucranianas, como a "vitória" contida no seu "plano".