Nos últimos dias sucederam-se múltiplas tentativas de encontrar uma saída que não envergonhe a Ucrânia e satisfaça a Rússia, claramente por cima nesta guerra, desde a conversa telefónica entre Paris e Moscovo à chamada de Joe Biden para Xi Jinping.
Eis a síntese dos variados esforços para acabar com o imbróglio no leste europeu para o qual já quase ninguém tem paciência no mundo, e os principais aliados da Ucrânia já mal conseguem disfarçar o incómodo:
Este "effort" começou com o ministro francês da Defesa, Sébastien Lecornu, a telefonar ao seu homólogo russo, Sergei Shoigu, a quem propôs, oficiosamente, como fizeram saber fontes próximas do Kremlin nos media pró-russos, voltar à fase das negociações de Istambul.
Ou seja, logo após o início da invasão russa, a 24 de Fevereiro de 2022, Volodymyr Zelensky estava a horas de assinar um acordo com Vladimir Putin onde o Presidente russo aceitava sair da Ucrânia por troca da não entrada da Ucrânia na NATO e a protecção das comunidades russófilas.
Foi quando o então primeiro-ministro britânico, Boris Jonhnson, irrompeu por Kiev como um tsunami e obrigou o Presidente ucraniano a sair das negociações por troca de apoio militar ilimitado até à derrota da Rússia, respaldado nessa promessa por Washington e a União Europeia.
Agora, mais de dois anos passados e marcados pela mais devastadora guerra na Europa desde 1945, centenas de milhares de mortos de ambos os lados, um país parcialmente destruído e a ordem mundial em pedaços, os aliados de Kiev querem passar uma esponja por este período e recolocar o conta-quilómetros a zero.
A resposta de Sergei Shoigu a Lecornu não podia ser mais rude, reforçando a ideia de que nem a França nem os restantes aliados ocidentais de Kiev estão em condições de impor condições para quaisquer negociações que possam levar ao fim do conflito, embora mantendo abertura para trabalhar numa saída negociada.
O que está em causa é que em Março de 2022, quando Kiev e Moscovo já tinham o desenho de um acordo de paz rubricado após dias de negociações na Turquia mediadas pelo Presidente Recep Erdogan, a Rússia não tinha anexado quatro províncias ucranianas ao seu território.
E agora, quaisquer conversas que possam acontecer, segundo o Kremlin, têm de partir do pressuposto incontornável de que Lugansk, Donetsk, Kherson e Zaporizhia, tal como a Crimeia, são parte da Federação Russa, além de que a Ucrânia fica fora da NATO para sempre e os direitos das suas populações russófilas serão garantidos constitucionalmente.
Mas este esforço, que começou com Paris a bater à porta de Moscovo, mesmo que o Presidente Macron tenha protagonizado pouco tempo antes um conjunto bizarro de ameaças a Moscovo, com destaque para o envio de unidades militares ocidentais em apoio da Ucrânia, não se ficou por aí, porque, entretanto, Pequim está a emergir como "pivot" de compulsivas negociações oficiosas.
Pequim, o pivot universal da saída airosa
O Presidente Joe Biden ligou ao Presidente Xi Jinping, onde, segundo analistas ocidentais e pró-russos, se apressaram a enfatizar que, além de Taiwan e das relações comerciais, os dois "bosses" falaram demoradamente de uma saída airosa para o conflito na Ucrânia, procurando que o líder chinês intercedesse junto do seu amigo Putin para aceitar as propostas ocidentais.
Entretanto, o ministro russo dos Negócios Estrangeiros, Sergei Lavrov, viajou para Pequim na segunda-feira, onde, com o seu homólogo, Wang Yi, debaterá, essencialmente, a questão ucraniana e a reforçada parceria estratégica sem paralelo entre Pequim e Moscovo.
Também em direcção à capital chinesa viajou a secretária do Tesouro norte-americana, Janet Yellen, embora esta visita só tenha, no essencial, focado a questão ucraniana de forma parcial, visto que o que esta ministra das "Finanças" dos EUA pretendia era proteger a economia do seu país do potencial competitivo inigualável do gigante asiático.
Mais relevante, foi, contudo o anúncio de que o chanceler alemão, Olaf Scholz, vai estar, esta semana, durante quatro dias, em Pequim, para conversações com Xi Jinping, onde a questão ucraniana, no mínimo, terá destaque semelhante às questões comerciais.
Isto, porque grande parte da severa crise económica que afecta a Alemanha resulta quase em exclusivo do conflito ucraniano e das sanções ocidentais à Rússia que fechou a torneira do gás e crude baratos russos para Berlim.
E isto é de grande relevo porque a poderosa base industrial alemã ressentiu-se mais dessa situação que as restantes economias europeias, com indústrias mais ligeiras e com menos necessidade de energia em quantidades colossais e barata que a Rússia garantia antes das sanções.
Neste contexto, onde alemães precisam de uma saída que não envergonhe, os EUA de uma jogada de mestre que alivie e afaste o fardo ucraniano da campanha eleitoral de Joe Biden, os franceses, também com problemas económicos complexos mas com ligação estreita ao conflito ucraniano, anseiam por novas oportunidades a leste que permitam reduzir a perda de influência na FranceAfrique saheliana...
... e os britânicos, cada vez mais embrulhados nos problemas gerados pelo "brexit", a saída da União Europeia que criou mais problemas que resolveu, enviou o seu ministro dos Negócios Estrangeiros, David Cameron, aos EUA para falar com Biden e, curiosamente, com Donald Trump, querem, todos eles, um "reset" que devolva a normalidade perdida com a mortandade no leste europeu... mesmo que o não possam admitir publicamente.
Ver por detrás do palco mediático
Alguns analistas garantem que é muito mais o que se passa por detrás dos panos que aquilo que se vê no palco a partir da plateia mediática, onde se procura não perder a face e ser engolido pela vergonha da derrota da estratégia ocidental para vergar a Rússia sobre os seus joelhos, como dizia a presidente da Comissão Europeia, Ursula Leyen.
E uma das possibilidades é que, secretamente, ou já de forma assumida interpares, a solução possa estar a ser desenhada, de forma pensada ou num acaso da sorte, por Donald Trump na forma como pensou a sua campanha eleitoral para as eleições Presidenciais nos EUA que vão ter lugar a 05 de Novembro deste ano.
É que, e basta ver e ouvir os recentes vídeos de Volodymyr Zelensky para o confirmar, sem desatar o nó no Congresso dos Estados Unidos que mantém amarrado o pacote de 60 mil milhões USD em apoio militar a Kiev, a iminente derrota ucraniana face ao avassalador poderio russo rapidamente vai evoluir para o colapso das linhas de defesa de Kiev, permitindo ao Kremlin avançar até assimilar todo território ucraniano a leste do Rio Dnipre, ou além disso...
Ora, ao garantir que a maioria republicana na Câmara dos Representantes mantém o bloqueio à aprovação do pacote de 60 "biliões" para Kiev, Donald Trump, o candidato republicano, que lidera as sondagens face a um fragilizado Joe Biden, pode estar a fazer o serviço "sujo" que interessa a todos os aliados ocidentais da Ucrânia.
E como? Simples. Os "amigos" de Kiev não podem dizê-lo publicamente mas, secretamente, desejam que a guerra termine rapidamente porque os efeitos colaterais e directos deste conflito começam a ganhar dimensão de "ameaça existencial" para as suas economias.
E se para isso for necessário uma derrota do "aliado", pois que assim seja... porque a realidade está a demonstrar claramente que os EUA precisam de aliviar o peso da tragédia ucraniana face ao peso da guerra em Gaza e da questão chinesa... que pode mesmo hipotecar as possibilidades eleitorais do actual Presidente na sua procura de um segundo mandato.
A Alemanha está a perder tracção económica num evidente traço paralelo e contínuo ao desenrolar do conflito na Ucrânia e a França, o Reino Unido ou a Polónia, os outros três países europeus que contam neste xadrez, mostram cada vez mais dificuldades em proteger-se dos estilhaços económicos e sociais da guerra.
A "traição" ocidental como runfo na manga
Porém, apesar de admitir para breve um fim sem glória da capacidade de resistir ucraniana, o Presidente ucraniano mantém como fórmula para o seu discurso oficial a exigência da saída dos russos de todos os territórios ocupados na Ucrânia, e de acordo com as fronteiras reconhecidas pela Lei Internacional em 1991, quando o país deixou de pertencer à então URSS.
Volodymyr Zelensky não aceita que as cinco regiões anexadas pelos russos, a Crimeia, em 2014, e Kherson, Zaporizhia, Donetsk e Lugansk, em 2022, sejam dadas como perdidas para a Federação Russa, e exige ainda que os dirigentes russos sejam julgados e condenados em tribunais internacionais e que Moscovo pague a reconstrução do país.
É, no entanto, antes de considerar estas condições, como o chefe da diplomacia russa, Sergei Lavrov, as definiu, como irrealistas e sem ligação á realidade, atentar a que Zelensky ainda não usou o seu maior trunfo.
E esse trunfo tem-no guardado na manga para usar no momento mais oportuno, que é recuperar as promessas e os compromissos assumidos pelo então primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, quando foi a Kiev, como uma tempestade e com os cabelos em pé, desmoronar as negociações que decorriam entre Kiev e Moscovo para acabar com a guerra.
Que foram, como depois foram repetidas por Joe Biden, pela alemã Ursula von der Leyen, da Comissão Europeia, e pelo chefe da diplomacia de Bruxelas, Josep Borrell, o apoio militar e financeiro sem limite no tempo e no volume, "até onde for preciso", embora depois este tiro tenha sido corrigido por Biden para "até onde for possível".
Com a redução astronómica desse apoio, falando já Zelensky de falta de munições e defesas antiaéreas até para defender Kiev, o regime ucraniano pode mesmo falar em traição dos aliados ocidentais em caso de, como é cada vez mais evidente, derrota militar face aos russos.