Dmitri Kuleba estava consciente que a ida a Pequim lhe causaria dissabores em Washington e em Bruxelas, onde tudo o que envolva a China, queima e não é bem visto, embora neste caso, a questão possa ser bem menos dolorosa.
Uma intervenção chinesa também pode ser bem vista por europeus e norte-americanos que já mal conseguem disfarçar um cansaço crescente com a guerra na Ucrânia mas não podem perder a face depois de dois anos e meio a defender a "vitória ucraniana no campo de batalha" custe o que custar.
E o que até há bem pouco tempo parecia uma impossibilidade, o gigante asiático, que tem somado triunfos no capitulo diplomático global, seja com a aproximação entre a Arábia Saudita e o Irão, ou, mas recente, o Hamas e a Fatah, na Palestina, pode ser a solução que todos agora procuram... e ninguém admite.
Mas este momento não surge do vazio. Há algumas semanas, num processo que teria de estar a ser pensado há meses, o Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensksky, começou a insistir na presença russa numa próxima cimeira de paz, após o falhanço clamoroso da que teve lugar na Suíça, a 15 e 16 de Junho.
Depois, alguns dos seus assessores mais radicais e extremistas começaram a sair dos radares da imprensa, e Dmitri Kuleba inverteu o seu discurso ácido para com Moscovo e enveredou por uma abordagem mais aveludada...
E a razão parece estar agora clara... Kiev está a tentar chegar a conversações com Moscovo para acabar com a guerra, embora, numa primeira fase, indirectamente, através de Pequim, que, recorde-se, tem o seu próprio plano de paz em cima da mesa desde Fevereiro de 2023.
Com este aproximar de Kiev a Pequim para melhor chegar a Moscovo, ou seja, sem uma humilhação flamejante, os ucranianos estão a dar resposta à permanente e persistente disponibilidade do Kremlin para negociar.
Perante o intrincado processo eleitoral em curso nos Estados Unidos, onde a ameaça de uma vitória, como as sondagens continuam a dar como mais provável de Doland Trump, significará o fim do apoio norte-americano aos ucranianos, em Kiev concluiu-se, como denotam alguns analistas, que negociar agora com o Kremlin será mas vantajoso que dentro de alguns meses...
E na Europa Ocidental, onde os líderes nacionais, especialmente na Alemanha e em França, precisam de acabar com esta pedra do sapato das suas economias, embora não o afirmem de forma clara, mas demonstrando-o com um nítido distanciar progressivo das envolvências políticas e diplomáticas da guerra, também a solução chinesa pode ser bem-vinda.
Além destes riscos de ficar sem apoio militar ou financeiro por parte dos EUA, a Ucrânia está ainda com outro problema sério em mãos, que é o facto de, segundo a agência de rating, FItch, o país estar já na condição de incumprimento, tendo mesmo baixado a sua classificação de CC para C.
Esta degradação da capacidade financeira de Kiev, segundo a Reuters, resulta da reestruturação da dívida de 20 mil milhões USD com um grupo de investidores por não ser capaz de cumprir com o acordado.
E a passagem do rating de CC para C indica que a Fitch considera que a Ucrânia está já em "default" ou num processo irreversível de incumprimento com as suas obrigações perante credores.
Normalmente quando estas situações ocorrem é porque os países devedores se encontram perante a escolha entre pagar as dívidas ou pagar salários e manter a sua estrutura de segurança social, como as reforças ou pensões, indicando sempre uma série crise de finanças internas.
Ucrânia: a guerra que já ninguém quer mas ninguém sabe como terminar
Provavelmente, esta pode ser a melhor definição actual para o conflito ucraniano: a guerra que já ninguém quer mas ninguém sabe como terminar. E as razões para isso são muitas e distintas...
Seja porque muitos dos líderes ocidentais, como o Presidente norte-americano, ou da União Europeia, se empenharam excessivamente numa "derrota da Rússia custe o que custar", seja porque a continuação do regime de Zelensky depende do desfecho da guerra, seja porque os interesses envolvidos ainda mandam mais que a vontade dos Governos e dos povos nela envolvidos directamente...
Mas isso pode muito bem ser anulado por novas circunstâncias, como é, sendo essa a mais óbvia, uma mudança na Casa Branca se Donald Trump vencer as eleições de Novembro, o que parece o mais certo, apesar da roca de Joe Biden por Kamala Harris no boletim de voto Democrata, sendo claro que sem o apoio dos EUA, a Ucrânia não poderá manter o esforço de guerra.
Ou ainda porque, dentro da Ucrânia, a continuação da guerra seja insustentável, por razões de vão da incapacidade para mobilizar gente para as trincheiras, seja porque as manifestações antiguerra são cada vez mais ruidosas em Kiev e noutras cidades do país, o que, politicamente, pode ser um nó na garganta de Zelensky...
E a ida do ministro dos Negócios Estrangeiros ucraniano a Pequim é um sinal de que algo profundo está a mudar, até porque nem norte-americanos nem europeus veriam, de outra forma, com bons olhos a entrada da China neste jogo, permitindo ao "inimigo" ganhar pontos na disputa global por influência estratégica...
"Foram umas negociações muito profundas e concentradas", definiu Kuleba as conversas com o seu homólogo chinês Wang Yi, naquela que foi a sua primeira visita à China durante todo o conflito aceitando um protagonismo desta dimensão de Pequim como intermediário antes de chegar o momento de conversas directas com Moscovo.
Da China, os ucranianos querem apenas uma coisa, notam alguns analistas, que é aveludar a posição do Presidente russo, Vladimir Putin, que tem dito, repetidamente, praticamente deste o início da invasão russa, em 24 de Fevereiro de 2022, que está disponível para negociar.
Mas as suas condições têm evoluído à medida que a guerra se prolonga, desde aquele momento em Abril de 2022, em que estava prestes a ser assinado um acordo com Kiev mas o então primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, boicotou as negociações.
Nessa altura, o Kremlin contentava-se com o reconhecimento por Kiev dos direitos dos cidadãos russófilos na Ucrânia, da língua russa, da neutralidade do país fora da NATO e da autonomia do Donbass (Donetsk e Lugansk).
Agora, Putin já exige muito mais... quer o reconhecimento de Kiev de que as províncias anexadas em 2014 e 2022 são parte integral da Federação Russa, a garantia de que a Ucrânia fica neutral e fora da NATO e a desnazificação do regime de Kiev, o que deve pressupor o afastamento de Zelensky e dos seus assessores mais próximos...
Kuleba aceita que o objectivo é mesmo negociar com Moscovo
É um avanço de grande relevância aquele que fica plasmado nas palavras do chefe da diplomacia ucraniano, que disse em Pequim que o seu objectivo é conduzir conversações com a China, país que mantém uma parceria ilimitada com a Rússia, que levem a negociações com Moscovo, quando Putin estiver preparado para "dialogar de boa fé" com Kiev.
Para já, como seria de esperar, Kuleba diz que ainda não vê que o Kremlin esteja "pronto para negociar nesses termos", até porque todas estas declarações são já parte integral, e, provavelmente, a mais importante de todo o processo, das negociações de paz com Moscovo.
Fica tão claro quanto é possível nestas circunstâncias que a Ucrânia está em acelerado processo de reatamento das negociações com Moscovo, mas não pode dar de bandeja um "sim" a todas as condições impostas por Vladimir Putin, não apenas porque seria humilhante para Volodymyr Zelensly, mas, essencialmente, porque seria mau demais para os seus aliados ocidentais, europeus e norte-americanos.
Porém, não pode deixar andar até que ocorra um colapso total das suas forças, o que é algo que pode acontecer em breve, atendendo às declarações do comandante militar ucraniano numa entrevista recente, onde o general Sirskyi admite uma clara e inequívoca superioridade russa em toda a linha da frente... porque isso seria chegar ao ponto em que a possibilidade de negociar daria lugar a uma derrota militar incondicional.
Do lado do Kremlin, o porta-voz de Putin, Dmitri Peskov, veio já admitir que por ali é bem visto este novo posicionamento de Zelensky, mas deixou claro que "ainda não é possível perceber com precisão o que estará, em concreto, por detrás das suas palavras".
Só que, provavelmente, o Kremlin já sabe o que é, sendo que estas palavras de Peskov são, também elas, já parte substantiva das negociações não oficiais, consistindo num convite enriptado ao Presidente ucraniano para ser mais preciso sobre os limites das suas novas condições para negociar de forma a que ambas as partes criem um ponto de partida mínimo para se sentarem à mesa.
É, portanto, claro que Moscovo e Kiev já iniciaram as conversações mas ainda por intermédio dos media, sendo que, por detrás dos panos, a diplomacia chinesa já está em pleno vapor a entabular contactos bilaterais que poderão, em breve, chegar à fase da multilateralidade e, depois, de novo bilaterais, mas, dessa feita, entre russos e ucranianos...
Provavelmente, se nada acontecer de extraordinário, como foi a destrutiva ida do então primeiro-ministro britânico Boris Johnson, em Abril de 2022, à capital ucraniana para "matar" o processo negocial Kiev/Moscovo, Volodymyr Zelensky e Vladimir Putin, poderão estar sentados à mesa, a falar em russo, que era a primeira língua do líder ucraniano, em menos de meio ano.