Esta terça-feira, 19, ficará para a História como a marca no calendário da infâmia por sublinhar os mil dias que passam desde que o Presidente russo Vladimir Putin lançou a "Operação Militar Especial" sobre a Ucrânia mas também como farol que ilumina a génese deste conflito.

E essa génese não está a 24 de Fevereiro de 2022, quando as forças de Moscovo se lançaram sobre o território ucraniano, está em 2014, quando um golpe de Estado, apoiado pelos EUA e pela União Europeia, derrubou em Kiev o Presidente pró-russo Viktor Yanukovich.

A partir desse golpe de Estado, as regiões ucranianas do leste, o Donbass, constituído pelas regiões de Donetsk e Lugansk, de maioria russófona e russófila, rebelaram-se, não aceitando o novo poder instalado em Kiev após o derrube de Yanukovich.

Entre 2014 e 2022, como o referem organizações internacionais como a OSCE (Organização para a Segurança e Cooperação na Europa), devido a bombardeamentos sucessivos das forças de KIev, morreram 14 mil civis no Donbass.

Nesse mesmo ano, 2014, a Crimeia, a estratégica península no Mar Negro, integrada na Ucrânia em 1954 pelo então Presidente da União Soviética, Nikita Krushchev, já então para reduzir tensões nacionalistas locais, era anexada por Moscovo, sem efusiva oposição, e após um referendo que não foi reconhecido pela comunidade internacional.

Os media ocidentais, nesses anos, noticiaram, aqui e ali, com pouco empenho, o decorrer desse conflito de relativo baixo perfil no Donbass, ao mesmo tempo que, com a eleição do Presidente Volodymyr Zelensky, se apertava a malha legislativa contra a língua, a cultura e a religião russas na Ucrânia.

Desse momento pré-invasão, na memória de alguns estará ainda a concentração de tropas russas do lado este da fronteira, alegando que se tratava de um exercício militar, com Joe Biden, o Presidente norte-americano, em Washington, a repetir que Putin preparava uma invasão.

Estava certo Joe Biden, porque a 24 de Fevereiro de 2022, foi isso mesmo que aconteceu, com a Rússia a conseguir, facilmente, numa primeira fase, ocupar largos territórios do leste ucraniano, lançando mesmo uma imensa coluna militar de 64 kms sobre Kiev.

Esta coluna nunca chegou a entrar em Kiev, mas ficou para a história a entrada nas localidades próximas da capital ucraniana, como Bucha, onde a máquina da propaganda de Zelensky, já com o apoio total e empenhado "até onde fosse preciso" dos países da NATO, ergue uma muralha comunicacional sobre um alegado massacre russo de habitantes locais.

A verdade sobre esse momento, um dos momentos decisivos nesta guerra, foi sempre disputada pelos dois lados da barricada, com o Kremlin a negar de forma insistente que as suas unidades tenham cometidas tais atrocidades.

Kiev insistia em sentido contrário e na memória erguida pelos media ocidentais ficam os cadáveres espalhados pelas ruas com as mãos atrás das costas e as enormes massas retorcidas de carros de combate e de transporte de infantaria russos jaziam nas ruas das localidades suburbanas de Kiev.

As negociações implodidas por Boris Johnson

Entretanto, com a memória a escorrer para fora dos ecrãs pela gravidade gerada nos números da destruição, das mortes e dos impactos mundiais deste conflito, desde logo nos preços das matérias-primas, dos alimentos... a esperança emergia ténue em Minsk, na Bielorrússia, e, a seguir, em Istambul, na Turquia.

Ucranianos e russos sentaram-se à mesa na capital da Bielorrússia, primeiro, e depois, em Istambul, a grande cidade turca porta do Mar Negro, com tudo a correr bem e com muitos analistas a adivinharem já um fim negociado para a guerra.

Havia já um "draft" rubricado pelas partes, para gáudio de Recep Erdogan, o Presidente turco, que chegou mesmo a falar de um momento histórico, quando... o então primeiro-ministro britânico, o frenético Boris Johnson, irrompeu por Kiev e ordenou a Zelensky para abandonar as negociações.

Volodymyr Zelensky obedeceu porque ficou sem alternativa exequível, quando Johnson prometeu, no que viria a ser secundado por Joe Biden e pelos líderes europeus, incluindo a presidente da Comissão Europeia, Ursula von der Leyen, todas as armas e todo o dinheiro que fosse necessário "e até onde fosse preciso" para "vergar a Rússia sobre os joelhos no campo de batalha".

A par desta promessa robusta de alimentar sem limites a máquina de guerra ucraniana, o que na verdade permitiu que este conflito chegasse aos mil dias e, em breve, aos três anos de duração, Boris Johnson disse ainda a Zelensky que a Ucrânia teria uma via rápida de acesso à NATO e à União Europeia.

Kiev abandonou as negociações, rasgou o documento preambular de um acordo elaborado em Istambul, e começou a receber armas às toneladas dos aliados ocidentais.

Estava lançada a mais trágica das guerras na Europa desde que terminou, em 1945, a II Guerra Mundial, que já ostenta números de guerra mundial no número de mortos, segundo várias fontes, com centenas de milhares de mortos e feridos de um e do outro lado, milhões de refugiados ucranianos na Europa Ocidental e uma tempestade de imagens de morte e sofrimento a correr pelos ecrãs e páginas dos media globais...

Recuos e avanços

Desde que Volodymur Zelensky que chegou a poder em 2019, depois de derrotar o Presidente Petro Poroshenko, que aproveitou o golpe de Estado de 2014 para ganhar o poder, recebeu as garantias dos países da NATO, transmitidas pelo então primeiro-ministro britânico, a Ucrânia passou a deter um poder de fogo capaz de reter os avanços russos e mesmo de reconquistar largas porções de territórios que estavam sob domínio de Moscovo.

Desde então esperava-se uma contra-ofensiva ucraniana, que chegou depois de alguns meses em que ocorreu o rearmamento pelas aliados ocidentais, e em Setembro de 2022, escassos sete meses após a invasão russa, Kiev lançava-se sobre a frente de guerra e os russos foram obrigados a recuar dezenas de quilómetros, e, nalguns casos, como em Karkhiv, centenas de quilómetros.

O tempo foi passando medido pelo sangue a percorrer o trágico percurso das trincheiras que trouxeram à memória imagens desgraçadas da I e da II Guerra Mundial, pontuado por algumas batalhas que, mais tarde, os historiadores vão comparar a outras que marcaram os dois grandes conflitos do Século XX na Europa, como é o caso de Mariupol, na região de Donetsk, junto ao Mar de Azov.

Os media ocidentais, largamente ao serviço da propaganda de Kiev, suportada e desenhada pelos especialistas disponibilizados pelos aliados da NATO, especialmente os americanos, que aproveitaram este momento para testar, com sucesso, novas estratégias de uso das novas ferramentas de comunicação para construir narrativas "adequadas", foram afastando este conflito da sua realidade histórica forçando artificialmente a ideia de tudo tinha, afinal, começado a 22 de Fevereiro de 2022.

E a ideia de que, em Moscovo, Putin aspirava à recuperação do império soviético, numa primeira fase, e depois avançar até ao Atlântico, invadindo a Europa até às praias de Portugal, foi fazendo caminho página a página nos jornais ocidentais, frame a frame, nos grandes canais de notícias ocidentais.

Mas era a Rússia, sendo igualmente verdade, como é claro, que era acusada nessas mesmas páginas e frames, de ter uma máquina gigantesca de propaganda que era preciso debelar, a ponto de, em alguns países, como Portugal ou Espanha, a censura de Estado ter voltado a ser implementada, retirando o acesso a media russos... 50 anos após o fim das ditaduras fascistas.

As críticas a estas medidas, mais fortemente sentida em Maio de 2024. que se forem repetindo, foram imediatas, como se os cidadãos europeus fossem incapazes de discernir a propaganda da informação... mas esse cmainho foi sendo aumentado e não travado.

A segunda contra-ofensiva ucraniana

À medida que as trincheiras se enchiam de sangue russo e ucraniano, num intricado mapa sempre refeito pelos avanços e recuos de um e do outro lado, o mundo era diariamente assoberbado pela iminência da grande contra-ofensiva ucraniana.

Durante meses, os aliados de Kiev anunciavam mais e mais armas, dinheiro a rodos, o treino de milhares de soldados ucranianos nos países da NATO, a entrega de misseis, blindados - ficaram na retina as imagens dos famosos Leopard alemães, dos M1 Abrams, dos EUA ou dos sofisticados misseis de precisão, dos HIMARS... - até que em Junho de 2023 aconteceu.

Essa contra-ofensiva foi de tal modo anunciada, tão esperada pelos russos, que ainda hoje os especialistas se dividem sobre as estratégias ocidentais usadas, face ao descalabro que dela resultou, sendo que a única possibilidade hoje admitida é que os aliados de Kiev entenderam, erradamente, que os russos estariam rapidamente em debandada face ao poder de fogo que estava a chegar à Ucrânia para os combater.

O que se passou foi o contrário, a Rússia, que já tinha criado o antidoto para as gigantescas sanções económicas europeias e norte-americanas, ligando-se umbilicalmente à China e ao Sul Global, criando parcerias estratégicas com a Índia, o Irão... para desviar as fundamentais exportações de crude e gás, teve tempo para erguer uma muralha defensiva que se revelou intransponível.

E a contra-ofensiva "maravilha", que fazia lembrar os primeiros dias após a invasão, quando os analistas avençados de Kiev e do ocidente, repetiam à exaustão que os russos não tinham armas, estavam descalços nas trincheiras... afinal revelou-se a "arma secreta" do Kremlin, que a aproveitou para destruir, pela atrição, o equipamento militar ocidental fornecido a Kiev, exaurir a capacidade humana ucraniana e cimentar as suas posições a partir das quais encetou um novo lento mas coerente e persistente avanço para o oeste ucraniano.

A realidade actual

Quando este conflito (nesta página podem ser consultados vários links) chega aos mil dias, nesta terça-feira, 19, a realidade no terreno é de claro avanço russo ao longo de todos os mais de mil quilómetros de frente, e com uma mudança avassaladora no capítulo político internacional, onde o apoio a Kiev se esvanece como o fumo dos disparos da artilharia no campo de batalha.

Apesar de Kiev ter conseguido obter algumas vitórias no que toca a convencer os seus aliados em fornecer algumas "armas maravilha", como os F-16, que, após meses largos de expectativa, chegaram aos céus desta guerra no final do Verão deste ano, o desfecho do conflito está, em grande medida, traçado: será negociado.

E não vai ser a estranha decisão de última hora do Presidente Joe Biden em permitir o uso ilimitado dos misseis norte-americanos ATACMS, ditos comummente de longo alcance mas que têm apenas um voo máximo de 300 kms, o que é quase zero para a dimensão da Rússia, o maior país do mundo, que vai mudar o panorama: a guerra vai acabar em negociações.

Resta saber se essas negociações, que vão definir as condições em que o conflito terminará, terão lugar entre russos e ucranianos ou entre russos e norte-americanos, porque, os europeus, que não têm qualquer palavra a acrescentar, mesmo que em Bruxelas se fale muito, e Zelensky desde Maio deste ano que sofre de falta de legitimidade democrática, visto que o mandato terminou e só manteve o cargo devido à lei marcial em vigor no país.

Zelensky disse ainda hoje, terça., 19, aos parlamentares europeus, que não tem dúvidas de que a guerra termina em 2025. Ele sabe que deixará em breve de ter meios para a manter... porque há dois elefantes na sala de porcelanas.

Um é a eleição de Donald Trump, nas eleições de 05 de Novembro, nos EUA, e que regressa assim à Casa Branca no próximo dia 20 de Janeiro.

Até lá, porque tudo indica que, com Trump, os EUA deixam de apoiar Kiev, exigindo o fim do conflito negociado, provavelmente com a aceitação de perda de territórios, os aliados de Zelensky, incluindo Joe Biden, estão, num derradeiro, esforço, a tentar criar as melhores condições possíveis para essas negociações.

O outro elefante na sala é a resposta do Kremlin à autorização de Washington para que os ucranianos possam usar os misseis balísticos ATACMS na profundidade russa, tendo, já nesta terça-feira, 19, levado a uma nova alteração da doutrina nuclear russa, aliviando as condições em que as ogivas podem ser usadas em contexto de guerra.

Até ver, as exigências russas para acabar com o conflito são as mesmas:

- Saída das forças ucranianas das regiões anexadas onde ainda têm presença militar organizada, garantias incondicionais de que a Ucrânia não entra na NATO, respeito pela cultura, língua e religião russa no país e a desnazificação do regime ucraniano, o que, no limite, levará sempre à saída de cena de Zelensky e do seu círculo mais restrito de conselheiros.

- Do lado da Ucrânia, nada mudou ainda, igualmente, excepto a definição do prazo para o fim da guerra, o ano de 2025, mantendo-se a exigência da saída das forças russas de todos os territórios ocupados, incluindo a Crimeia, a condenação dos dirigentes russos em tribunal internacional, a obrigação de Moscovo pagar a reconstrução do país e a autodeterminação no que respeita à NATO e à União Europeia.

O decreto "nuclear" assinado por Putin

O Kremlin anunciou, em tom de poucos amigos, que os países da NATO devem estudar muito bem a nova doutrina nuclear russa.

O porta-voz do Presidente russo Vladimir Putin, Dmitri Peskov, avança que esta nova política exige um "estudo cuidado" dos lideres ocidentais após a publicação das oito páginas onde está plasmada a nova doutrina nuclear russa.

O documento é agora oficial mas não é propriamente novo, porque já em Setembro tinha sido conhecido o seu conteúdo, que se aplica especialmente às condições de retaliação nuclear em caso de agressão à Rússia.

E, no caso actual, algo mudou, que foi a questão da autorização norte-americana para os ucranianos usarem os seus misseis para atacar alvos na profundidade do território russo, porque esta nova doutrina dilui as limitações do uso das armas nucleares para defender a Federação Russa ou os seus aliados estratégicos.

Ao mesmo tempo que Peskov aconselhava os lideres ocidentais a estudarem bem as oito páginas do documento agora autorizado pelo chefe do Kremlin, afirmava que não é aconselhável ficar pelas parangonas dos media.

Mas não deixou de usar uma parangona para dizer que estas novas regras permitem olhar para os países que são potências nucleares e que apoiam com armas convencionais outros países para as usarem em ataques à Federação Russa, como igualmente co-atacantes.

Reservando-se Moscovo o direito a usar esses sistemas nucleares quando a sua soberania e integridade territorial, os dos aliados, for considerada em risco. É o caso da autorização de Biden para Kiev usar os ATACMS contra a Federação Russa.

Com esta nova disposição dos limites para o uso da tríade nuclear russa - plataformas terrestres, submarinos e aviação estratégica -, a Rússia passa a poder usar os seus sistemas estratégicos para prevenir a agressão de potências inimigas que possuam armas de destruição massiva.

Esses limites diluem-se ainda para os países que cedam os seus espaços aéreos soberanos ou o seus solos para lançamento de ataques contra a Rússia.

Os media russos sublinham que a decisão de fazer com que um ataque de um país que tenha recebido apoio para isso de uma potência nuclear faça desta um alvo potencialmente legítimo, tem como objectivo clarificar que os potenciais agressores se convença que uma "retaliação é inevitável".

E uma das questões mais sonoras neste documento é a retirada da condição de uso da tríade nuclear estando a Rússia já sob ataque, porque, a partir de agora, esse uso passa a ser possível bastando para isso existir informação sólida proveniente dos sistemas de intelligentsia da Federação de que um ataque está a ser organizado.

Contexto da guerra na Ucrânia

A 24 de Fevereiro de 2022 as forças russas iniciaram a invasão da Ucrânia por vários pontos, tendo o Presidente russo dito que se tratava de uma "operação militar especial", sublinhando que o objectivo não era a ocupação do país vizinho, condição que evoluiu depois para a anexação de territórios no Donbass mas também as regiões de Kherson e Zaporijia, mas sim a sua desmilitarização e desnazificação e assegurar que Kiev não insiste na adesão à NATO, o que Moscovo considera parte das suas garantias vitais de segurança nacional.

O Kremlin critica há vários anos fortemente o avanço da NATO para junto das suas fronteiras, agregando os antigos membros do Pacto de Varsóvia, organização que também colapsou com a extinção da URSS, em 1991.

Moscovo visa ainda garantir o reconhecimento de Kiev da soberania russa da Península da Crimeia, invadida e integrada na Rússia em 2014, e ainda de Donetsk, de Lugansk, de Kherson e de Zaporijia (2022), anexadas depois da realização de referendos que a comunidade internacional, quase em uníssono, não reconheceu.

Do lado ucraniano, a visão é totalmente distinta e Putin é acusado de estar a querer reintegrar a Ucrânia na Rússia como forma de reconstruir o "império soviético", que se desmoronou em 1991, com o colapso da União Soviética.

Kiev insiste que a Ucrânia é una e indivisível e que não haverá cedências territoriais como forma de acordar a paz com Moscovo, sendo, para o Presidente Volodymyr Zelensky, essencial o continuado apoio militar da NATO para expulsar as forças invasoras.

A organização militar da Aliança Atlântica é acusada por Moscovo de estar a desenrolar uma guerra com a Rússia por procuração passada ao Exército ucraniano, o que eleva, segundo o Kremlin o risco de se avançar para a III Guerra Mundial, com um confronto directo entre a Federação Russa e a NATO, que tanto o Presidente dos EUA, Joe Biden, como o Presidente Vladimir Putin, da Rússia, já admitiram que se isso acontecer é inevitável o recurso ao devastador arsenal nuclear dos dois lados desta barricada que levaria ao colapso da humanidade tal como a conhecemos.

Esta guerra na Ucrânia contou com a condenação generalizada da comunidade internacional, tendo a União Europeia e a NATO assumido a linha da frente da contestação à "operação especial" de Putin.

Na reacção, além da resistência ucraniana, Moscovo contou com o maior pacote de sanções aplicadas a um país, que causou danos avultados à sua economia mas que acabou por recuperar com o passar do tempo.