Um Presidente-eleito nos EUA, antes de receber as chaves da Casa Branca, não tem mais poder que o Papa, apenas pode anunciar as suas ideias sendo a sua influência alimentada pela certeza de que todos sabem que a partir de 20 de Janeiro as suas ideias são ordens.
E no caso da guerra da Ucrânia, apesar dos media ocidentais pró-ucranianos estarem a alimentar a tese de que, mesmo que a Administração Trump acabe com o envio de armas e dinheiro, as forças de Kiev não vão baixar os braços, todos sabem que sem Washington por trás, a resistência aos avanços russos terá a duração de um fósforo.
Mas nem é sequer entre os aliados europeus da NATO que Trump tem os seus adversários mais empenhados para pressionar Kiev a aceitar negociar com os russos uma saída pacífica para o conflito, é em casa que esles estão.
A actual Administração Biden, em funções plenas até meados de Janeiro, já deixou claro que ainda tem muitos milhões, do pacote de 61 mil milhões USD aprovado no Congresso há alguns meses, para entregar à Ucrânia.
E a visita que o secretário de Estado Antony Blinken está a fazer à Europa demonstra-o sem quaisquer dúvidas, como ficou claro depois de ter, esta quinta-feira, 14, reunido com o ministro da Defesa da Ucrânia, Andrii Sybiha, a quem lembrou que nos cofres em Washington ainda há muito dinheiro para alimentar o esforço de guerra contra a Rússia.
Isto, ao mesmo tempo que procurava, com o secretário-geral da NATO, o holandês Mark Rutte, o homem de mão de Blinken, convencer os parceiros europeus, desde logo a Alemanha, a França e a Itália, a não baixar os braços no apoio a Kiev apesar de na Casa Branca estar a chegar Donald Trump.
O que em Berlin, Paris e Roma já se está a preparar é a saída de cena dos EUA da plataforma de apoio à Ucrânia e nem mais nem menos que da forma que se esperava, saindo também do palco onde a "peça" já está a ficar sem espectadores entre as populações europeias, cansadas que estão dos efeitos devastadores do conflito nas suas economias e na qualidade de vida, especialmente devido às falhadas sanções ocidentais à Rússia.
O que deixa ao ainda Presidente Joe Biden e ao seu chefe da diplomacia acenderem o último fósforo no combate à invasão russa, que não deve mostrar outra coisa que não seja, como dizia o autor norte-americano William Faulkner, numa analogia livre, que aquilo que faz um fósforo aceso na noite mais escura: mostrar a escuridão à volta.
Numa palestra que deu no Instituto "America first", ou "América Primeiro", que é o seu slogan de campanha, a par do "Make America Great Again - Fazer a América Grande de Novo", Donald Trump insistiu com empenho na ideia de que vai "trabalhar duramente" para por um fim rápido ao conflito na Ucrânia.
Quer igualmente lidar com as guerras de Israel no Médio Oriente, mas foi sobre o conflito no leste europeu que usou a expressão mais forte: "Vou trabalhar muito duramente com a Ucrânia e a Rússia".
O que, alias, já começou a fazer, porque, depois de ter falado ao telefone com o Presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, onde participou igualmente o seu agora melhor amigo, o bilionário Elon Musk, Trump esteve, segundo The Washington Post e a Reuters, ao telefone com Vladimir Putin, embora o Kremlin tenha negado que esta conversa tenha ocorrido.
O que os analistas sublinham é que em Moscovo, Vladimir Putin não quer deixar crescer a ideia de que o fim do conflito depende da intervenção de Trump, porque o Presidente russo já disse e reafirmou que as condições para acabar com a guerra estão definidos e são inamovíveis, o que obriga a negar que estejam a decorrer conversas com o Presidente-eleito dos EUA.
O que não choca com a ideia repetida ao longo dos últimos anos por todos os lideres russos, incluindo, nas últimas horas, por Gennadij Gatilov, representante permanente da Rússia na sede da ONU em Genebra, Suíça, que reafirmou a disponibilidade do Kremlin de aceitar negociações que sejam iniciadas pelo Presidente Donald Trump assim que assumir o cargo, desde que o ponto de partida sejam os interesses russos que são os que Putin definiu.
E são estes: Kiev aceitar que as cinco regiões anexadas pela Rússia - Crimeira (2014) e Donetsk, Lugansk, Kherson e Zaporizhia (2022) - são já parte integral da Federação Russa, as tropas ucranianas que ainda estão nas áreas por conquistar deixam as suas posições, a Ucrânia fica fora, em definitivo, da NATO, e a língua, a cultura e a religião são reconhecidas e respeitadas na Ucrânia pós-conflito, e por fim, a eliminação das organizações de cariz neo-nazi no país.
Estas condições, com acertos de pormenor num ou noutro ponto, vão ser impostas a Kiev não apenas por Washington, mas também pelos aliados europeus, como sublinhou já esta sexta-feira, 15, o analista militar major-general Agostinho Costa, porque a mudança de paradigma está já em curso desde que ficou clara a vitória de Trump nas eleições de 05 de Novembro.
Além da vitória de Trump, Volodymyr Zelensky, cujos dias à frente do regime ucraniano, até porque as eleições deviam ter tido lugar em Maio desde ano e foram proteladas com base na Lei Marcial em vigor no país, devido à guerra, tem de aceitar que a guerra está a ser ganha pela Rússia, como o demonstram os avanços diários e volumosos das forças de Moscovo na frente de batalha.
Apesar deste cenário, em Kiev, Zelensky, num discurso no Parlamento em KIev, voltou a insistir, aproveitando as palavras do chefe da diplomacia dos EUA, Blinken, em Bruxelas, na ideia de que mantém como objectivo estrutural "expulsar os russos de todos os territórios ucranianos" reconhecidos pela comunidade internacional.
Como sublinhou Agostinho Costa, em declarações na CNN Portugal, o Presidente ucraniano está claramente a lutar pela sua sobrevivência política e pessoal.
Isso implica empurrar os russos da Crimeia, Donetsk, Lugansk, Kherson e Zaporizhia, o que seria a mais humilhante das derrotas políticas e militares para Vladimir Putin, o que é, de acordo com a generalidade dos analistas, uma impossibilidade, além de que a realidade actual na frente de batalha só poderia ser invertida com a entrada directa da NATO na guerra, não apenas com o fornecimento de armas mas com o envio de forças terrestres para a batalha.
O que já foi defendido pelo Presidente francês, Emmanuel Macron, e voltou agora a sê-lo pelo antigo primeiro-ministro britânico, o histriónico Boris Johnson, que, admitindo que a Ucrânia está a ser derrotada na frente de guerra, o Reino Unido deve enviar o seu Exército para a guerra contra os russos.
A grande curiosidade para as próximas semanas é, seguramente, ver como os dois lados da barricada vão aceitar ceder num ou noutro ponto, qual o plano a partir do qual serão iniciadas as conversações, qual a dimensão das negociações secretas entre Washington, Moscovo e Kiev - a União Europeia é a parte mais fraca destas conversas e não deverá fazer parte delas pela sua irrelevância e redundância - e como vai Donald Trump lidar com a continuidade de Zelensky no poder.