Num discurso sobre os grandes problemas que afectam a ordem mundial, era esperado que Guterres colocasse o foco na situação na Ucrânia e o secretário-geral da ONU preferiu assinalar possíveis entendimentos para resolver o conflito ao apontar o acordo, envolvendo as Nações Unidas e a Turquia, para escoar cereais acumulados nos portos ucranianos desde o início da guerra.

"Quando nos reunimos num mundo repleto de turbulências, uma imagem de promessa e esperança vem à minha mente: o navio 'Brave Commander'. Ele navegou no Mar Negro com a bandeira da ONU hasteada orgulhosamente. Por um lado, o que vocês vêem é uma embarcação como qualquer outra navegando pelos mares. Mas olhem mais de perto. Na sua essência, este navio é um símbolo do que o mundo pode alcançar quando agimos juntos", disse Guterres na abertura do seu discurso.

"Está carregado com cereais ucranianos para o povo do Corno de África. Ele navegou por uma zona de guerra - guiado pelas próprias partes do conflito -- como parte de uma iniciativa abrangente sem precedentes para obter mais alimentos e fertilizantes(...). A Ucrânia e a Federação Russa - com o apoio da Turquia - convergiram para que isso acontecesse, apesar das enormes complexidades, dos opositores e até do inferno da guerra. Alguns podem chamar de milagre no mar. Na verdade, é a diplomacia multilateral em ação", observou.

Frisando que a guerra desencadeou uma destruição generalizada, com violações massivas dos direitos humanos e do direito internacional humanitário, Guterres avaliou que os relatórios sobre cemitérios em Izium, cidade na região de Kharkiv, no nordeste da Ucrânia, são "extremamente preocupantes".

"A luta custou milhares de vidas. Milhões foram deslocados. Milhares de milhões em todo o mundo foram afetados. Estamos a ver a ameaça de divisões perigosas entre o ocidente e o sul. Os riscos para a paz e a segurança globais são imensos. Devemos continuar a trabalhar pela paz de acordo com a Carta das Nações Unidas e o direito internacional", apelou.

Contudo, na visão do ex-primeiro-ministro português, a comunidade internacional "não está pronta ou disposta a enfrentar os grandes desafios dramáticos da nossa era", "crises que ameaçam o próprio futuro da humanidade e o destino do nosso planeta, como a guerra na Ucrânia e a multiplicação de conflitos em todo o mundo".

Ainda sobre as consequência directas do conflito na Ucrânia, o líder das Nações Unidas sublinhou a necessidade de o mundo se unir para aliviar a crise alimentar global e "abordar urgentemente" a crise do mercado global de fertilizantes, apelando à "remoção de obstáculos" à exportação de fertilizantes russos.

"Este ano, o mundo tem comida suficiente, o problema é a distribuição. Mas se o mercado de fertilizantes não estiver estabilizado, o problema do próximo ano pode ser o próprio abastecimento de alimentos. (...) É essencial continuar a remover todos os obstáculos remanescentes à exportação de fertilizantes russos e seus ingredientes, incluindo amoníaco", afirmou

"Esses produtos não estão sujeitos a sanções - e estamos a avançar na eliminação dos efeitos indirectos. Outra grande preocupação é o impacto dos altos preços do gás na produção de fertilizantes nitrogenados. Isso também deve ser abordado com seriedade. Sem acção agora, a escassez global de fertilizantes irá transformar-se rapidamente numa escassez global de alimentos", alertou.

Nas palavras de Guterres, "um inverno de descontentamento global está no horizonte" e a humanidade está "presa numa colossal disfunção global".