Este posicionamento do chefe da diplomacia ucraniana surge num contexto de notória crispação entre o Governo de Kiev e uma boa parte dos seus aliados mais próximos no apoio à guerra contra a Rússia que já leva ano e meio sem que se veja um fim à vista.

Crispação essa que começou logo após o cumprimento de um mês de contra-ofensiva, quando tanto as chefias da NATO, pela voz do seu secretário-geral, Jens Stoltenberg, como das chefias militares norte-americanas, viaram a público, primeiro, dizer que Kiev tinha recebido todo o equipamento militar que tinha pedido para garantir o sucesso da ofensiva, e depois quando um subalterno do secretário-geral da NATO veio defender publicamente que Zelensky devia aceitar a perda de territórios já ocupados pelas forças de Moscovo.

Houve ainda a alimentar esta fornalha a questão do bloqueio à entrada de cereais ucranianos pela Polónia, o maior aliado de Kiev no decurso da guerra, Bulgária, Eslováquia..., alegando estes países, embora sabendo que a venda de grãos é uma das grandes fontes de receitas de Kiev, que estes, não estando sujeitos a taxas devido a legislação europeia extraordinária, fazem concorrência desleal aos seus agricultores.

Para estes países, que defendem afincadamente o envio de centenas de milhares de ucranianos para as linhas da frente, onde morrem aos milhares todos os dias, um pequeno sacrifício dos seus agricultores não é sequer negociável ou tolerável, o que provocou igualmente fortes criticas de Kiev, com alguns elementos próximos da Presidência a dizer que se trata de hipocrisia.

Mas foi agora que esta crispação atingiu o zénite com Dmitri Kuleba a mandar literalmente calar os críticos da forma como as chefias militares estão a conduzir o ataque às linhas russas, considerando essas críticas "cuspir na cara" dos soldados que estão na frente de combate.

E entre estes críticos, embora Kuleba tenha apontado a artilharia verbal aos comentadores dos media ocidentais, na verdade foi o CEMGFA norte-americano, general Mark Milley, quem abriu a porta a estas criticas ao dizer que Kiev não estava a desenrolar a sua acção atacante da melhor forma, porque tinha as suas forças espalhadas por uma longa frente de batalha quando deveria concentrá-las num ponto de forma a provocar a ruptura das defesas de Moscovo.

"Criticar a lentidão da contra-ofensiva é o mesmo que cuspir nos olhos dos soldados que estão a combater na linha da frente, onde derramam o seu sangue e sacrificam as suas vidas diariamente", atirou Kuleba, ao mesmo tempo que pedia aos seus aliados mais armamento, desde artilharia e defesa antiaérea ou os caças F16 que tardam a chegar.

Este faiscante momento entre Kiev e os seus aliados resulta de um entendimento quase generalizado de que as foças ucranianas inicialmente criadas para esta contra-ofensiva, que já leva mais de 80 dias sem que possa reclamar um sucesso minimamente aceitável face aos meios empregues, perderam definitivamente a capacidade de gerar um derradeiro impulso que permita ultrapassar qualquer das defesas criadas pelos russos, constituídas por três linhas robustas, durante quase nove meses, tempo suficiente para as tornar praticamente inexpugnáveis.

Isto, quando, como têm afirmado vários especialistas militares, a Rússia, além destas linhas robustas de defesa, constituíram reservas de 550 mil homens, entre voluntários e do serviço militar obrigatório, que ainda não chegaram sequer à zona de guerra.

No entanto, não são os russos que estão com a iniciativa militar mas sim os ucranianos, não só no terreno, com avanços pequenos na região de Zaporizhia, nomeadamente em Robotine, mas essencialmente no recurso aos seus cada vez mais eficazes e em maior quantidade drones, aéreos e aquáticos (ver links em baixo nesta página), com largas dezenas de ataques bem sucedidos em mais de 20 localidades russas nas últimas duas semanas.

Um destes ataques teve lugar em Kurchatov, na região de Kursk, conhecido como "cidade atómica" devido à sua enorme central nuclear, embora sem causar danos significativos num pequeno edifício habitacional, segundo o governador local, citado pelo Russia Today.

Este volume de ataques tem sido de tal forma intenso que, para conseguirem travar os ataques prometidos por Kiev à ponte de Kerch, que liga a Península da Crimeia à Rússia continental, através do canal entre o Mar de Azov e o Mar Negro, os russos estão a afundar navios de grandes dimensões junto a esta infra-estrutura que é vital para a malha viária da logística militar de Moscovo para alimentar as diversas frentes de combate.

Todavia, a contra-ofensiva ucraniana tem tido menor impetuosidade também porque, segundo fontes de Kiev, o que é corroborado por analistas militares diversos, sem uma componente aérea robusta, quando a Rússia tem o domínio total dos céus, é muito mais crítico conseguir ter sucesso, pelo menos num curto espaço de tempo, sabendo-se que os muito aguardados F16 só deverão estar no país em 2024.

Recorde-se que uma grande parte da autoridade com que Kiev exige mais e mais sofisticado armamento resulta do facto de os países da NATO estarem comprometidos com a investida que o então primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, agora caído em desgraça politicamente no seu país, fez à capital ucraniana em Março de 2022.

Nessa deslocação abrupta e inesperada, Boris Johnson, em conluio com os norte-americanos, visava mplodir o processo de negociações de paz que estava a decorrer entre os dois países, escassos dias depois da invasão russa a 24 de Fevereiro, exigindo a Zelensky que continuasse a guerra até à derrota total de Moscovo por troca de apoio incondicional em dinheiro e armas "até onde fosse preciso" para atingir o objectivo.

Boas novas para os cereais do Mar Negro

Depois de um encontro na quinta-feira, 31, entre os ministros russo e turco dos Negócios Estrangeiros, Sergei Lavrov e Hakan Fidan, onde foram ultimados os retoques para uma posição conjunta entre Ancara e Moscovo, os dois Presidentes, Vladimir Putin e Recepp Erdogan, têm um encontro presencial agendado para Sochi, na Rùssia, nas costas do Mar Negro.

Embora ainda não se saiba os termos em que deverá ser conseguido um acordo, sabe-se que russos, turcos e as Nações Unidas estão alinhados no objectivo de garantir que a parte do acordo assinado em Julho de 2022 (ver links em baixo nesta página), de forma separada, entre a Rússia, Turquia e ONU; e entre Ucrânia, Turquia e ONU, que nunca foi cumprida, prejudicando a Federação Russa, deverão agora ser ultrapassados.

Em causa estão, entre outros, abrir o acesso à banca russa, parte dela, ao sistema internacional de transferências rápidas, SWIFT, permitir que os fertilizantes russos rumem aos mercados internacionais, que os navios que levam as cargas de grãos russas possam ter acesso aos sistemas internacionais de seguros, todo aquilo que não é possível devido às sanções ocidentais aplicadas a Moscovo após o início da guerra.