Estes acontecimentos voltam a colocar o golpe de Estado como forma de ascensão ao Poder, tal como no período entre 1960 e 1990, ano do advento dos processos de democratização no continente.
Nos 30 anos acima assinalados, África foi assolada por 267 golpes e tentativas de golpes de Estado, dos quais 25 concretizados em sete anos, nomeadamente de Janeiro de 1963 a Janeiro de 1970.
A nova vaga de instabilidade abarca as tentativas de golpes de Estado na Guiné-Bissau e no Níger, bem como sete golpes consumados no Mali (dois), Tchad, Tunísia, Guiné- Conackry, Sudão e Burkina Faso.
O Mali deu início a esse novo período de instabilidade africana com um golpe de Estado militar que, em Agosto de 2020, derrubou o Presidente Ibrahim Boubakar Keita (IBK), depois de semanas de manifestações populares exigindo a sua saída do Poder, por causa das precárias condições de vida dos malianos.
Na ocasião, os novos senhores de Bamako prometeram, sem conseguir, fazer regressar o País à democracia num período curto, assim como tirar o Mali da crise económica. Menos de um ano após o afastamento de IBK, em Maio deste ano, novo golpe de Estado militar derrubou os golpistas anteriores, instalando um governo civil que, desta vez, promete eleições democráticas para Dezembro de 2025.
Em Março de 2021, dois dias antes da posse do novo Presidente do Níger, Mohanmed Bazoum, um grupo de militares tentou dar um golpe de Estado para inverter o processo democrático, depois de o candidato derrotado ter organizado "protestos pacíficos" contra os resultados eleitorais em todo o País.
No mês seguinte, em Abril, num dos vizinhos do Níger, no Tchad, militares liderados por Mahamat Déby, filho do Presidente Idriss Mahamat, que morrera horas antes em circunstâncias mal explícitas, assumiram o poder, suspendendo a constituição e criando um Conselho Militar de Transição que governa o País.
Seguidamente, o mundo assistiu impávido, em Julho, ao "golpe de força" dado pelo Presidente Kais Saied, que suspendeu o Parlamento e, mais recentemente, dissolveu a mais alta autoridade judicial do país, o Conselho Superior da Magistratura (CSM), assumindo, desta forma, todos os poderes (Legislativo, Executivo e Judicial) da Tunísia, a pioneira da primavera árabe.
Na Guiné Conackry, em Setembro último, o Presidente Alpha Condé foi golpeado por militares, depois de vários dias de protestos e tumultos que causaram dezenas de mortos, na sequência de manifestações contra a sua reeleição para um terceiro mandato e a alteração da Constituição que passou a permitir tal mandato.
O mês de Outubro registou, no Sudão, a tomada do Poder pelos militares que destituíram o Conselho de Supervisão e Transição e o Governo de Transição encarregados de preparar as condições para uma democracia efectiva no país. Apesar dos protestos de milhares de sudaneses que se manifestaram contra o golpe de Estado, os militares mantêm-se irredutíveis, causando o caos ao País.
Também foram militares os autores do golpe de Estado no Burkina Faso, a 24 de Janeiro, o primeiro de 2022, contra o Presidente Roch Marc Christian Kaboré, reeleito em Novembro de 2020 para um segundo mandato de cinco anos.
De notar que Kaboré chega ao Poder através de eleições realizadas na sequência do golpe de Estado popular que, em 2014, afastou o Presidente Blaise Campaore, homem que chegou ao Poder, em 1987, através do golpe de Estado que derrubou e assassinou Thomas Sankara, referência da segunda geração de líderes pan-africanistas.
Ainda a África vivia a ressaca do golpe do Burkina Faso, quando, no primeiro dia do corrente mês de Fevereiro, na Guiné-Bissau, homens armados atacaram o palácio do Governo, onde decorria uma sessão extraordinária do Conselho de Ministros com a participação do Presidente Umaro Sissoco Embaló e do primeiro-ministro Nuno Gomes Nabiam.
Essa tentativa de golpe, posta em causa pela oposição, sem autores identificados e que "pretendia derrubar o Presidente da República e o Governo", segundo o Chefe de Estado, saldou-se em 11 mortos e várias detenções.
Longe de serem caos isolados, os referidos golpes e tentativas de golpes demonstram um padrão a que o continente volta a recorrer para resolver problemas criados por obsoletos regimes políticos vigentes em grande parte do continente africano. Golpes que põem a nu as fragilidades desses regimes, a falta de democracia, ausência de instituições fortes em países que dão primazia a homens fortes.
Estes acontecimentos traduzem também a crise e a caducidade das democracias "à africana", de Poder absoluto, exercido sem transparência, com processos eleitorais fraudulentos que visam dificultar ou impedir, por meios ilícitos, o acesso da oposição ao Poder.
Regimes avessos às liberdades, à dignidade da pessoa humana e aos direitos humanos e que transformaram em letra morta os princípios básicos da democracia, nomeadamente a separação de poder, comunicação social livre e justiça independente.
Passados 30 anos de democracia "à africana", os golpes vêm demonstrar que essas autocracias e ditaduras, sem soluções para os problemas das populações, usam as eleições para a sua própria legitimação, ignorando o bem-estar e a melhoria de vida dos Povos.
Mesmo que caucionadas pela dita Comunidade Internacional, em função dos seus interesses, sobretudo da sua maior ou menor capacidade para retirar dividendos da existência de governos autocráticos e cleptocratas, essas democracias "à africana" está a ser posta em causa pela nova juventude continental que clama por regimes de liberdade capazes de resolver os seus problemas.
Pouco preocupada com o destino das populações africanas, nem com a democracia no continente, a chamada comunidade internacional raramente se manifesta contra líderes políticos que recorram a golpes de Estado constitucionais para se manterem no Poder.
Por seu lado, a União Africana (UA), receando ser acusada de "ingerência nos assuntos internos" é rápida a suspender a participação dos estados protagonistas de golpes de todas as actividades da organização "até ao restabelecimento efectivo da ordem constitucional do país", ignorando a vontade das populações desses países.
Quando a ordem constitucional é alterada por golpe desencadeado por quem detém o Poder, a UA mantém-se indiferente, mas se desencadeado para substituir ditadores e autocratas travestidos de democratas, a organização continental é rápida a decretar sanções.
Em vez de reactiva, espera-se que a UA preste um serviço aos povos africanos de forma proactiva, identificando os problemas, ajudando a combater as suas causas, sendo severa com políticos que subjugam os seus povos, alteram constituições, muitas vezes violando os seus limites materiais, com vista a sua manutenção no poder.
Perante essa passividade da UA, assiste-se a actos tão caricatos e nada dignificantes para o continente e suas instituições, como o de Yoweri Museveni do Uganda, 77 anos, 36 dos quais como Presidente, que depois de alterar a constituição para se manter no Poder, e quando já não podia concorrer por causa da idade, alterou a sua própria data de nascimento.
Juntando aos golpes a guerra na Etiópia, a violência jihadista no Mali, Níger, Burkina Faso, Quénia, Nigéria, o terrorismo no norte de Moçambique, a rebelião na República Democrática do Congo, na República Centro Africana, na Líbia, na Somália, a guerra no Sahara Ocidental e o conflito entre a Argélia e Marrocos, que levou a corte de relações diplomáticas entre os dois países, está criada uma tempestade perfeita que coloca o continente na orla da grande instabilidade.
Neste contexto, a União Africana devia olhar para a Democracia e para o Desenvolvimento como armas de combate à instabilidade, aos radicalismos e violência jihadista e, consequentemente, promover um amplo debate sobre as causas dos golpes de Estado, muitas das quais óbvias, em vez de lamentar perante factos consumados.
Devia reunir académicos, cientistas sociais africanos, sociedade civil e políticos num amplo debate, adoptando um paradigma diferente de análise e resolução dos problemas do continente que passa pelo respeito da dignidade humana das populações africanas.