A realidade geopolítica que se foi desenhando após a implosão da ex-URSS, conduziu a uma multipolaridade, com crescente influência de países emergentes, integrados em novos blocos.

A guerra da Ucrânia, que no passado dia 22 de Fevereiro registou o seu terceiro ano e, mais recentemente, o que se vive no Médio Oriente, tornaram evidente o novo ciclo.

Há sempre uma cereja em cima do bolo e ela coincide com a segunda eleição de Donald Trump, personalidade desconcertante, autoritária e intimidatória, descortinável no seu primeiro mandato e actualmente mais evidente devido à ausência de freios.

Na análise da realidade, procuro não fulanizar a política, ou seja, não a avaliar exclusivamente em função das pessoas em concreto, mas no quadro das ideias que defendem e as razões do seu surgimento no poder e a forma como o exercem.

Há escassos trinta anos, seria muito difícil que Donald Trump fosse eleito Presidente.

A ruptura com o mundo bipolar e o inevitável surgimento da globalização, ao acelerar vertiginosas transformações em todos os domínios, conduziu ao endeusamento dos mercados.

As democracias ocidentais, com os EUA à cabeça, deslocalizaram os sectores produtivos para países de mão de obra barata, desde logo a China, provocando a desindustrialização desses países.

De caminho, deram causa à marginalização dos princípios e valores, inclusive nos próprios partidos, numa lógica neoliberal, afectando os pilares da democracia e dando mesmo lugar a que uma personalidade insuspeita - o Papa - declarasse que "o capitalismo mata".

A produção agrícola foi descurada, com a desertificação dos campos em inúmeros países, em favor das cidades que, em 2050, terão mais de 70% da população mundial a viver nelas.

O poder passou a responder ao imediato, sem estratégia, e outras potências surgiram.

A eleição de Donald Trump passou, no plano interno, a gerar fortes condicionalismos à liberdade da imprensa, a valorizar a riqueza criada pelas novas tecnologias que, de facto, passaram a ser determinantes no poder, capturando funções soberanas, de que Elon Musk é exemplo.

No plano externo, houve a eliminação dos contratos da Agência para o Desenvolvimento, com um orçamento de 57 mil milhões de dólares de ajuda humanitária a vários países, ainda a saída da OMS e da UNESCO, uma ainda maior desvalorização da ONU, a abertura de várias "guerras" comerciais e o mais que se sabe.

Isto para não falar na proposta de paz que Donald Trump propõe para a Ucrânia, o entendimento que tem do direito internacional e da soberania dos países e o propósito de criar um "resort" em Gaza.

As democracias acordaram tarde para o que podia advir.

Daí, a correria que afadiga os dirigentes europeus por terem acreditado que os EUA eram eternos garantes da EU e dos países que a integram, não cuidando da preservação das importantes relações de amizade existentes na Aliança Atlântica, reforçando-se.

No que respeita à EU, há que garantir agora a sua auto-sustentabilidade e coesão, não descurando a própria defesa.

No que diz respeito a África, esta deve aprender com o passado, não podendo nem devendo deixar instrumentalizar e menos aprisionar por qualquer uma das potências hegemónicas.

Há que cuidar da auto-suficiência alimentar, apostando nas próprias forças, com a consciência que os países que integram o continente africano têm fronteiras artificiais e que a caixa de Pandora tem de continuar fechada para salvaguardar as soberanias dos países, num momento em que tudo neste domínio está em causa.

Por isso, agora, há que preparar o futuro, com estratégia, aprendendo com os erros cometidos e salvaguardando um novo equilíbrio na multipolaridade, defendendo a soberania e a auto-suficiência dos Estados.

(Ex-Secretário-Geral da UCCLA)