A democracia tunisina nunca foi um dado adquirido. Em dezembro de 2010, iniciou-se neste país um movimento contra a opressão de regimes autocratas - a "Primavera Árabe". Protestos contra o desemprego, a corrupção e a repressão do regime instalaram-se em todas as cidades da Tunísia. O primeiro objetivo tinha sido cumprindo: retirar Zine El Abidine do poder. Contudo, a instabilidade continuava. Só em dezembro de 2014, depois de em janeiro desse mesmo ano ser aprovada uma nova constituição que dividia o poder do presidente e do primeiro-ministro, existiram as primeiras eleições presidenciais.
Pelo meio, até aos dias de hoje, a Tunísia confrontou-se com mais problemas que agravaram os seus desequilíbrios políticos e económicos. De recordar ao leitor que o país foi muito fustigado por ataques do ISIL - Daesh -, entre março de 2015 e março de 2016, com ataques na fronteira com a Líbia e explosões na própria capital, abrindo uma grave crise no setor do turismo, um dos pilares da economia tunisina.
Já em plena pandemia, com um défice bastante elevado, os eleitores voltaram a sair à rua, mostrando a sua insatisfação com a maioria dos partidos políticos, muito por causa dos escândalos que envolviam alguns deputados - nomeadamente, aliados à corrupção - e que levaram à demissão do então primeiro-ministro Elues Fakh-Fakh.
Com o governo de Hichem Mechichi no poder (o último), violentas manifestações sucederam-se, em resposta às políticas e ações do governo, principalmente no controlo da pandemia e nas reformas políticas para amenizar os efeitos da aterradora crise.
É então que, no passado mês de julho, o presidente Kais Saied demitiu o primeiro-ministro e outros ministros, suspendeu o parlamento e tirou a imunidade aos deputados e restantes membros do governo, assumindo todos os poderes executivos. A democracia é algo muito frágil, não é? Curiosamente, Saied é um antigo professor de Direito. A bem da verdade, se há pessoa capaz de contornar as ambiguidades da constituição tunisina, essa pessoa é Saied.
As políticas ficaram muito voltadas para a anti-corrupção, dando origem a uma série de detenções. Suspendeu viagens e prendeu políticos, empresários e juízes nas suas casas - uma verdadeira "caça às bruxas".
A polarização na sociedade tunisina é tão grande que, por um lado, há quem esteja contra Saied, por outro, há quem veja tais violações à constituição como um mal necessário, tendo já sido relatados confrontos entre estas duas fações. Respira-se, hoje em dia, um clima de guerra civil.
Para além do ciclo vicioso em que a economia tunisina está envolvida, o quase colapso do sistema de saúde - devido aos problemas no combate à pandemia Covid-19 -, levaram a uma continuação e agudização dos sintomas pré-pandemia, que evidenciavam que o país já não estava bem. Falhou a proteção social à população - grande parte dela, com sérias dificuldades em meter comida na mesa -, numa economia informal que alimenta metade do PIB tunisino. A vacinação está longe do desejável, comparativamente ao que era expectável, e muito dependente da ajuda internacional.
Perante tudo isto, os atores políticos tunisinos perpetuam a discussão da culpa sobre a aparente queda do sistema. A solução teria de passar por um movimento de união nacional, capaz de tirar o país do norte de África desta queda abrupta para um fundo desconhecido, mas muito indesejável. Ao invés disso, estes atores preferem agravar a instabilidade e recorrer a um jogo de culpas interminável, sem assumir a responsabilidade das suas políticas. Como sabemos da História, estes procedimentos são um sinónimo de sentença para a democracia.
Apesar da visível preocupação da UE no assunto, evidenciada pela visita de Borrel a Tunes, no passado dia 9 de setembro - temendo uma nova onda de refugiados, desta vez, vinda de um território "colado" a Itália - e do alerta de vários diplomatas de países do G7, Saied continua o seu percurso de reformulação do sistema tunisino, referindo mesmo que vai formar um governo repleto de "pessoas com ética e integridade". A esta instabilidade interna, junta-se o tenso conflito entre Marrocos e Argélia, que já marca a agenda geopolítica da região. Todas estas premissas, aliadas à inoperância do regime líbio, marcado por um profundo desequilíbrio político - que tem provocado vagas de refugiados em direção aos países vizinhos -, fazem com que o Norte de África seja uma região que desperte, por um lado, inquietação, mas também curiosidade, por parte de atores sempre atentos a estas "oportunidades".
Aliás, e uma vez que abordámos a proximidade geográfica da Tunísia a Itália, é importante mencionar que, no recente relatório do Ministério do Interior italiano, 29% dos imigrantes que entraram ilegalmente no território italiano - dados divulgados a 23 de setembro, fonte oficial do governo transalpino - são oriundos da Tunísia.
Sem executivo, várias serão as pastas ministeriais que ficarão com disfunções e problemas aumentados, criando dependências perigosas e vulnerabilidades que deixarão profundas cicatrizes. As crises política, económica e social são realidades inegáveis. O presidente Saied "apenas" deu início ao assalto a uma democracia de porcelana, que poderá não voltar a ser respeitada.