O Acordo de Luena, que nos ofereceu a paz há 20 anos, fez nascer um forte sentimento de responsabilidade nacional. Depois daquele abraço apertado, partilhado pelas chefias militares, o ódio foi exorcizado e um novo dia começou para Angola. E ainda hoje acredito que o efeito mais profundo desse acordo foi a transformação de "inimigos de guerra" em adversários políticos, pois só entre adversários engajados e conscientes dos seus deveres podia existir uma convivência politicamente saudável que defenderia uma paz para sempre.

Hoje que estou seriamente preocupada com a irresponsabilidade com que se fala do "regresso à guerra" num discurso feito por altos responsáveis do Estado, alguns militantes do MPLA, um punhado de juristas e jornalistas sem isenção e uma mão cheia de formadores de opinião, que têm livre acesso aos meios de comunicação públicos, a garantirem que o povo pretende subverter a ordem constitucional, apontando a ideia de que há indícios de actos preparatórios de tudo e mais alguma coisa, reforçando sistematicamente a ideia com contributos tirados não sei de que cartola.

Lamento ouvir alguns deputados, cuja responsabilidade é duplamente maior por serem representantes eleitos pelo povo, que não são pagos para fazer o papel de inquisidores, a defenderem com veemência, sem nunca mostrarem nem a cobra nem o pau, que existem pessoas, grupos, entidades ocultas, forças internacionais que estão interessadas no "regresso à guerra". Tenho lido editoriais e opiniões de quem esperava um pouco mais de sabedoria adquirida com a idade e com a responsabilidade do seu estatuto, a tentarem convencer os leitores de que a paz está ameaçada, porque existem "maus angolanos", que, estando ao serviço das trevas, querem devolver os angolanos para uma vida de morte e de sangue. É importante lembrar que este discurso já não surte o efeito que surtia. A política da intimidação perdeu o sentido. A maioria dos eleitores tem menos de 35 anos, não viu a guerra, cresceu em paz, está bem informada e é capaz de pensar pela sua própria cabeça. Não perceber isto é um erro crasso.

Amedrontar pessoas que sofreram danos irreversíveis por causa da guerra, que perderam filhos e familiares, pernas, casa, tempo e que, depois de 20 anos de paz estão mais pobres, vivem menos e ainda não conseguiram garantir duas refeições por dia, é uma maldade inqualificável e a mesmice que ouvimos, em 2015, ano que ficará também nos anais da história como desastroso para a Justiça angolana. 15+2 jovens de chinelos, com lápis e livros nas mãos, foram acusados de querer dar um golpe de Estado, sendo julgados atabalhoadamente e presos por isso. Não esquecer que, no mesmo processo, um "Governo de salvação nacional", construído no Facebook e depois estampado no jornal República, foi tido como prova da tal intenção dos 15+2 e todos os nomes que lá estavam, incluindo o meu, foram formalmente constituídos declarantes, apesar da ausência de ligação e de culpa por parte dos inúmeros e distintos integrantes da lista que, de forma abusiva, foram adicionados.

Não ouvi falar do "regresso à guerra" no início do primeiro mandato do Presidente João Lourenço, porque ele fez nascer uma onda de esperança e muitos acreditámos que a intenção de fazer a diferença se iria materializar e que uma Angola justa iria acontecer. Mas, neste início do segundo mandato, por todas as frinchas se soltam gritos de guerra e se desenterram os machados. A parada militar para a tomada de posse foi épica pela negativa. Surtiu um efeito perverso. Sem pretender entender de estratégia de marketing político, porque me faltam estudos técnicos para o efeito, devo, no entanto, confessar que estou surpreendida pela ausência de uma estratégia menos defeituosa.

Tendo em conta este cenário, há algumas considerações que podem ajudar a encontrar um ponto de equilíbrio para olhar para este tenso momento de forma desassombrada e sem qualquer fim oculto. A pergunta que se impõe é: Quem é que no actual panorama político pode aspirar o "regresso à guerra" no estrito sentido da palavra?

Angola tem dois exércitos (a UGP é um verdadeiro exército com vários ramos, com instalações físicas em quase todo o território nacional, número significativo de militares e um generosíssimo financiamento).

Assim, a soma dos três ramos das Forças Armadas (Exército, Força Aérea e Marinha), a UGP e a Polícia Nacional, são tidos como muito eficazes, seja pelo equipamento militar e de telecomunicações que possuem, seja pela mestria do seu treino e experiência em combate, considerada por muitos experts como sendo de excelente qualidade. Importa referir que, em tempo de paz, os sectores da Defesa e segurança foram sempre privilegiados no OGE, mesmo quando outros sectores como a Educação e o saneamento se esvaiam na precariedade. Apesar da tentativa de controlo partidário, existem muitos exemplos na defesa e na ordem, de coragem, sobriedade, visão estratégica pertinente, que, nos momentos decisivos deste País, mostraram que a sua lucidez e o patriotismo puro estiveram sempre em primeiro lugar nos conselhos que deram e que continuarão a dar, para garantir a harmonia.

Angola tem excelentes relações diplomáticas e comerciais com o mundo, sobretudo com alguns países que gostam de "inventar no país dos outros", quando "o negócio" corre mal, como provam repetidos exemplos da segunda metade do século XX e no início do século XXI, e depois vêm como salvadores "construir" uma atitude de defesa dos direitos humanos. De onde poderia vir a motivação da conspiração internacional para o "regresso à guerra", se temos sido uma "postura autoritária" aceite por todos os pares internacionais como democrata e as nossas eleições são sempre descritas como livres?

Por isso, já há demasiadas vozes que consideram que a banalização reiterada do recurso ao passado belicista, apesar de muito perigosa, pretende servir para criar distracção sobre os reais problemas da ineficácia da governação e da luta contra a corrupção, dos efeitos do resultado das últimas eleições, da vontade de alargar mandatos ou ainda por medo do futuro devido ao efeito boomerang.

Muitas políticas sociais e económicas estão desajustadas e são ineficientes por serem aritméticas face aos problemas antigos que são geométricos e devido à elevada taxa de natalidade. Mas podem e devem ser melhoradas e humanizadas para permitir a construção da JUSTIÇA SOCIAL e da felicidade colectiva. O Povo só está a pedir os mínimos olímpicos, mas nem isso lhe é dado. Que se "priorizem" as prioridades em detrimento do acessório. Não percamos a oportunidade de sermos um futuro que faça sentido para os nossos filhos, todos os filhos sem cor, sem credo, sem filiação política. Vamos lá ser apenas ANGOLANOS, pela PÁTRIA.