Não deixa de ser paradoxal que a luta armada desencadeada pela FRELIMO para a independência de Moçambique se tivesse iniciado na região de Cabo Delgado, mobilizando, então a generosidade da juventude do país, em defesa de uma causa justa.

Esta causa suportava-se no direito inalienável dos povos à autodeterminação e à independência.

O paradoxo está no facto de relatos e reportagens insuspeitas referirem que, para além da óbvia influência externa que alimenta hoje o terrorismo em Cabo Delgado, há jovens moçambicanos que são atraídos por ele, sendo, portanto, coniventes com a barbárie que o alimenta.

Há, portanto, que avaliar as causas mais profundas que propiciam que isso seja possível.

Como é sabido, as acções terroristas iniciadas há quatro anos e consideradas então um caso de polícia, foram-se agudizando de tal forma que, no final de 2020 e início do corrente ano, deram lugar a pelo menos 2000 mortos, 800.000 refugiados, em que parte destes são crianças.

Ponderando a gravidade e dimensão atingidas, o Governo moçambicano deliberou - e bem - aceitar recentemente a presença de tropas estrangeiras para o combate ao terrorismo.

Daí o contingente militar rwandês articulado com as forças da África do Sul, um país da SADC com quem obviamente o Governo moçambicano consensualizou os mecanismos necessários à presença militar estrangeira.

No essencial, os partidos políticos moçambicanos representados na Assembleia da República reconheceram o acerto da decisão do Governo moçambicano, embora num ou noutro caso suscitassem a eventual necessidade constitucional de audição prévia da Assembleia da República.

A questão, sendo juridicamente discutível, tem, porém, a sustentar a posição do Governo moçambicano o facto de a previsão da norma constitucional sobre a competência da Assembleia parecer exigir, no caso, que houvesse declaração de guerra.

Ora, a declaração de guerra pressupõe um adversário ou inimigo concreto, eventualmente um país estrangeiro e não é isso que ocorre com o terrorismo em Cabo Delgado, na forma como se apresenta.

E porque a situação criada respeita a toda a humanidade e a África, em particular, as manifestações de solidariedade que em todo o mundo foram proferidas não deixaram de ser ponderadas e aceites como foram.

Foram essas mesmas razões que conduziram, no primeiro semestre do ano em curso, em que Portugal presidia à UE a disponibilizar a sua ajuda a Moçambique, o que conduziu a que Lisboa passasse também a contribuir para a formação técnica-militar das forças moçambicanas.

Seja como for, não se pode deixar de ter presente que os compromissos assumidos são limitados no tempo.

Para além desta solidariedade militar, existe a que se desenvolveu no plano da ajuda concreta às vítimas do terrorismo, no caso a população indefesa de Cabo Delgado, que não pode afrouxar para que o mais rapidamente possível a normalidade da vida seja reposta.

Por fim, o paradoxo a que inicialmente fiz referência, ou seja, o de alguma juventude moçambicana de Cabo Delgado, felizmente minoritária ter sido conduzida à prática de actos inaceitáveis, e, por isso, condenáveis, não pode também deixar de merecer uma séria ponderação.

É que tendo a região de Cabo Delgado potencialidades invulgares de desenvolvimento económico, nomeadamente pelas jazidas de gás natural e pedras preciosas, a distribuição de riqueza criada tem de aproveitar necessariamente também a população residente.

É sabido que as desigualdades são causa primeira dos conflitos, razão para que o executivo moçambicano não possa deixar de atender a esta realidade, como seguramente ponderou, priorizando-a.

Além do mais, as consequências da pandemia ao agravarem em todo o mundo as desigualdade, colocam o combate para a sua superação de entre as primeiras prioridades a considerarem.

*(Secretário-geral da UCCLA)