O mexicano Mário Moreno nunca passou por aqui, mas perfumando refinado humor por todos os lados, nas suas peripécias artísticas, soube sempre manter um equilibrismo verdadeiramente notável.
Inclinava-se a torto e a direito, mas nunca tombava. Não é o nosso caso. Sendo tão inclinado o nosso plano, diferentemente de Mário Moreno, que se mantinha sempre de pé, caindo aos trambolhões tendemos a estatelamo-nos ao comprido!
Há aproximadamente um ano das próximas eleições, a construção do nosso edifício democrático continua a destapar o movimento típico de corpos em decadente inclinação.
Se esse movimento não for estancado tenderá a intensificar a exclusão dos intelectuais da esfera política e a abjurar a opinião que possa pôr em causa o culto da personalidade e que consiga desconstruir certos mitos.
Se esse movimento não for estancado, tenderá a agrafar a liberdade de imprensa, a afastar da governação gente com aptidões técnicas por não ter cartão partidário e a transformar a classe política num espelho convexo, baço e distorcido, que não reflecte as aspirações de ninguém.
Se esse movimento não for estancado, sem liberdade e sem igualdade, a justiça tenderá a ser manietada e a quebra de valores sagrados acabará também por não ter remissão.
Com esse movimento em perigosa ascensão, a inclinação dos corpos, que em todas as épocas se movem sempre consoante as conveniências políticas dos ventos de cada momento, tende a criar ruídos, que estão agora a provocar preocupantes curto-circuitos nas relações entre o poder judicial e o poder político.
Primeiro foi o afastamento do Presidente do Tribunal Supremo, Rui Ferreira, ainda que neste caso o pecado capital não tenha sido propriamente a sua remoção do cargo, mas antes a sua surpreendente e incompreensível recondução perante, entre outros desvarios, a obsessiva tentativa de transformar o Tribunal Constitucional numa secção com "oficiais de diligência" às ordens do seu poder pessoal.
Depois foi a demissão do Provedor de Justiça, Ferreira Pinto, que, exposto à vista de uma ostensiva e humilhante subestimação da instituição que dirigia, sentiu-se desrespeitado na sua dignidade profissional.
A descoberta de um novo Presidente do Tribunal Supremo envolvido em atropelos básicos às normais de funcionamento do órgão a que preside, acabou por se converter numa dor de cabeça para quem caucionou a sua indicação. São tantas e sucessivas as trapalhadas, que já todos percebemos que Joel Leonardo tem tudo para aspirar a ser uma estrela circense, mas não tem jeito nenhum para desempenhar o cargo de que foi investido.
Agora chegou a vez do Presidente do Tribunal Constitucional, Manuel Aragão, bater com a porta, depois de passar a ser visto com crescente desconfiança pelo poder político numa disputa que, carregada por um vendaval de intrigas sem fim, acabou por tornar insustentável a coabitação e por mergulhar a instituição num clima de grande tensão.
Três demissões ainda com o primeiro mandato presidencial em andamento não podem deixar de representar um convite à reflexão sobre o que de turbulento e perigoso se passa no Reino da Justiça.
Quem detém poder político não pode perder a força da razão democrática e tentar insurgir-se contra o Tribunal Constitucional por este, no seu Acórdão de fiscalização preventiva da Lei da Revisão Constitucional, ter rejeitado sujeitar-se à prestação de contas ao Presidente e ao Parlamento sem a devida reciprocidade destes órgãos; e por este, consequentemente, ter denunciado a existência nesta matéria de uma violação do princípio da separação dos poderes.
Quem detém poder político não pode perder o poder da serenidade democrática, mesmo quando confrontado, como se confrontou, com declarações de voto ( dos juízes Manuel Aragão e Carlos Teixeira) cujo teor choque com os seus desígnios.
Envolta em motivações político-eleitorais, a demissão do Presidente do Tribunal Constitucional, mais forçada do que voluntária, poderá, desta forma, estar a contribuir para a instalação de um sentimento de desconfiança dos cidadãos em relação à independência do poder judicial e à sua captura pelo poder político.
Logo, não é de estranhar que, consumada a celebração política de uma morte anunciada já há algum tempo, tenha sido de imediato acelerado o processo de impugnação de Adalberto da Costa Júnior da liderança da UNITA e que, em simultâneo, se tenham adensando as zonas cinzentas e até instalado alguma perturbação política à volta do nosso pálido ambiente democrático. Receio, por isso, que o extremar de posições possa vir a concorrer para desenterrar velhos fantasmas e antigos ressentimentos.
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