Ostentando o título de "Campeão (africano) da Paz", rótulo que entra em contradição com o fracasso da sua mediação no conflito da RDC, o PR angolano, João Lourenço, mostra dificuldades em ajudar a travar o conflito, agravado com os ataques e ocupação da estratégica cidade de Goma, capital da província de Kivu-Norte, pelos rebeldes do M23, apoiados pelo Rwanda.
Do ataque e ocupação de Goma pelo M23, há cerca de três semanas, segundo dados de organizações internacionais, resultaram pelo menos três mil mortos e perto de um milhão de deslocados. Entre os mortos, destacam-se militares da força regional de manutenção de paz (SAMIDRC), mormente da África do Sul (14), Malawi (3) e Tanzânia (2).
Como presidente da União Africana, o "Campeão da Paz" deverá apoiar as iniciativas e decisões da SADC e da EAC (organizações regionais da África Austral e do Leste), saídas da primeira Cimeira conjunta, realizada a 8 de Fevereiro, em Dar-Es-Salaam, capital da Tanzânia, sem a sua presença.
João Lourenço, mediador do conflito, também esteve ausente noutras três cimeiras africanas sobre o agravamento do citado conflito, nomeadamente uma virtual, e outras duas em Harare, Zimbabwe, e Malabo, Guiné-Equatorial.
Convocada por William Ruto, Presidente do Quénia, outro mediador do conflito da RDC, a primeira Cimeira (virtual) realizou-se a 29 de Janeiro. Dois dias depois, em Harare foi realizada a reunião de Chefes de Estado da SADC, presidida pelo zimbabweano Emmerson Mnangagwa.
Na véspera do encontro de Dar-Es-Salaam, a capital da Guiné-Equatorial, Malabo, foi palco da Cúpula da CEEAC (Comunidade Económica dos Estados da África Central) sobre a preocupante situação na RDC.
Com João Lourenço ausente, a Cimeira SADC-EAC traçou uma espécie de roteiro para a paz na RDC e estabilização da região. Entre as medidas, destaca-se a exigência de um cessar-fogo e o fim das hostilidades.
A cimeira "reafirmou o papel crítico dos processos de Luanda e Nairobi" e, por isso, "determinou" a fusão dos dois procedimentos em um "único processo de Luanda/Nairobi".
Esta decisão da SADC-EAC mostra que a duplicação de mediadores se tornou disfuncional, criando mais problemas do que soluções para um dos mais complexos conflitos do continente.
Ao mesmo tempo que faltava às cimeiras africanas, João Lourenço disponibilizava-se, com Félix Tshisekedi, Presidente do Congo, para participar, em Paris, numa cimeira quadripartida com o líder francês Emmanuel Macron, sobre o conflito no Leste da RDC.
No entanto, segundo a imprensa francesa, com a recusa de uma das partes do conflito, Paul Kagame, Presidente do Rwanda, em participar dessa cimeira convocada por Macron, o projecto foi abortado.
Atenta a essas movimentações extracontinentais que se realizam com o apoio de políticos africanos, na abertura da cimeira conjunta SADC-EAC, a anfitriã, a Presidente Samia Hassan, defendeu "o princípio de soluções africanas para problemas africanos".
Lembrou que "os nossos países têm a responsabilidade colectiva de discutir sobre os desafios de segurança que têm impactado fortemente o bem-estar" dos cidadãos.
Ademais, advertiu aos seus colegas, entre os quais Paul Kagame e William Ruto, presentes fisicamente, e Félix Thsisekedi, de forma virtual, que "como líderes regionais, a história julgar-nos-á duramente se continuarmos parados e a observar a situação a piorar dia após a dia".
O PR angolano vai assumir a liderança da UA já sem o apoio de Biden, substituído na Casa Branca por Trump, um político que usa da arrogância para ameaçar tudo e todos, incluindo alguns pesos pesados do continente, nomeadamente África do Sul, Egipto e Nigéria.
De recordar que, no quadro da ajuda dos EUA a João Lourenço, o representante da Administração Biden em Luanda, o embaixador Tulinabo Mishingi, foi o primeiro estrangeiro a manifestar, em nome do seu País, o apoio à candidatura de Angola à liderança da UA.
Quem vai assumir a liderança da UA é um "silencioso", segundo a publicação francesa Jeune Afrique, de que não se conhece nenhuma ideia ou projecto pan-africanistas, apesar dos oito anos que já leva de presidência de Angola, um dos maiores países do continente africano.
Nesta presidência, que cabe à África Austral, Lourenço terá de concertar com a poderosa África do Sul, membro dos BRICS, líder regional e destacada defensora da auto-determinação dos povos, nomeadamente dos palestinianos, contrariamente às posições americana e ocidentais.
Washington, principal patrocinador do genocídio desencadeado por Israel contra os palestinianos, opõe-se firmemente ao Governo de Cyril Ramaphosa, por esse ter apresentado ao Tribunal Internacional de Justiça uma queixa contra Telavive, acusando-a de genocídio contra os palestinianos.
Durante a presidência da UA, Lourenço, que, desde as eleições angolanas de 2022, abandonou aliados naturais como a Rússia ou China, membros estruturantes dos BRICS, para se aproximar aos ocidentais (EUA, França e outros), terá em mãos dossiers difíceis que exigem um posicionamento claro.
Um desses dossiers é a genocida limpeza étnica que Trump se prepara para realizar na Palestina, principalmente na Faixa de Gaza, já condenada por outros líderes africanos e mundiais, incluindo o secretário-geral da ONU.
De relações frias com a Rússia de Putin e a China de Xi Jinping, será que João Lourenço vai faltar à próxima Cimeira dos BRICS (como fez com a Cimeira de Joanesburgo, quando era presidente em exercício da SADC) e quebrar a tradição dos líderes da UA de participarem nas cimeiras da organização?
Por outro lado, contra a posição pública de João Lourenço, 2025 é, para a UA, o ano da "Justiça para os africanos e os afrodescendentes por meio de indemnizações".
Depois de ter dito ao primeiro-ministro de Portugal, Luís Montenegro, que Angola não vai exigir "nunca"indemnizações pela escravatura ou colonização europeias, como vai Lourenço conciliar a sua posição com a da UA?
Será que vai ignorar a sua declaração segundo a qual "se, durante os 49 anos de Independência, nós não colocamos essa questão, não a colocaremos nunca"?
Neste quesito de exigência de reparações e devolução do património cultural saqueado de África, já há processos muito avançados e países que não abrem mão desse direito dos povos africanos, nomeadamente Ghana, Senegal, Mali, África do Sul e outros.
Países que, certamente, se recusarão a usar a umbrela de João Lourenço de protecção dos interesses ocidentais contra os anseios dos africanos, incluindo da sexta região continental, a Diáspora.
Perante isto, será que o PR Lourenço vai conseguir responder ao caderno de encargos a que se propôs executar, num continente onde despontam novos líderes pan-africanistas, como os do Senegal, Burkina Faso, Níger ou Mali, avessos às políticas neocoloniais do Ocidente?
Líderes pan-africanistas que, na opinião do Chefe de Estado angolano, são responsáveis "pelos retrocessos em termos de direitos fundamentais dos cidadãos" na região do Sahel.
Sem garantias de apoio da nova Administração de Washington, João Lourenço terá uma prova dos noves muito difícil. Terá de mostrar habilidades políticas e diplomáticas até agora desconhecidas (diferente de subserviência político-diplomática) para colocar os interesses do continente em primeiro lugar.
Isto implica estar mais próximo do Sul Global que dos Estados Unidos e nos antípodas da extrema-direita liderada pelo novo inquilino da Casa Branca, que aposta na hegemonia da América e na morte do multilateralismo para controlar e dominar o mundo e subjugar outros países e povos.
Se, por um lado, a assumpção do lugar de porta-voz da UA, composta por 55 países do continente berço da humanidade, preenche uma das maiores lacunas da diplomacia angolana, por outro, os sinais indicam que poderá destapar ainda mais as debilidades da partidarizada diplomacia de Angola, muitas vezes em contra-mão das posições do continente.
Será que, ao assumir a presidência da maior organização de África, única no mundo composta por todos os países de um mesmo continente, Lourenço vai terminar com o seu divórcio unilateral do Sul Global?