A conquista da liberdade, isto é, esse direito elementar à dignidade, comum à vida, à volta do qual gravitam todos os outros, tornou-se aspiração, ao mesmo tempo individual e colectiva, semeou revoluções, alterou mandos e poderes, substituiu o estado e a natureza das classes dominantes, libertou condenados da terra, eufemismo de escravaturas que ainda hoje vigoram. Tudo isso, que é imagem fragmentária da longa viagem da História, mostrou como a complexidade da realidade, em cada tempo, poderia ser feita de mudança. Apesar da história universal da infâmia e da crueldade que lhe é própria, a lonjura temporal, tão antiga e diversa da caminhada do homem no chão da História, ilumina, muitas vezes, os dias com o milagre da esperança, embora não poucas vezes perguntemos o que fizemos dela, em cada situação e circunstância.


Pois, é verdade que, de cada vez que o homem rompeu atavismos ideológicos e se libertou da servidão e das grilhetas das prisões, rasgando horizontes sociais tão vastos e profundos que se tornaram inamovíveis, como marcos da própria civilização, o sonho do direito à felicidade recomeça sempre. Essa condição de dignidade permitiu, afinal, que o homem sonhasse outros amanhãs, que a pureza das ideias cartografava como canto futuro, senão imediato, ou no curto-prazo, se as condições objectivas o permitissem, como nos diziam. Em boa verdade, enquanto jovens, poucos não sonharam cantar esse amanhecer, como se o canto premonitório não fosse mais do que a contingência da transformação da realidade num mundo melhor. Primeiro que tudo, é certo, havia a liberdade, que era preciso conquistar para erradicar o medo, que tolhia gestos e pensamentos e condenava ao imobilismo e à aceitação das coisas, como fatalidade soprada pelos deuses. Que outra coisa se pode fazer, enquanto jovens, senão sonhar pátrias de utopia, um mundo outro - fraterno e igual?


Ando à roda do tema, como questão que cada um tem consigo próprio, porque assisti no festival de cinema IndieLisboa à estreia do filme de Margarida Cardoso, SITA - A Vida e o Tempo de Sita Valles, que hoje entra no circuito comercial. A narrativa sóbria do filme de Margarida Cardoso, centrada na biografia de Sita, vai mais além, como não podia deixar de ser: vai ao fundo do contexto histórico do 27 de Maio, em Luanda, que culminou num banho de sangue que ensombra até hoje a história do MPLA. Morreram na dissensão política que confluiu no conflito armado, subjugado pelas tropas cubanas, dizem, trinta mil pessoas. Já se disse que o registo cinematográfico, sendo sóbrio, rasga como uma lâmina pela dimensão dos crimes as prisões em massa, as torturas, os fuzilamentos e o desaparecimento dos corpos, forma expedita de apagar crimes hediondos.


Sita, primeiro dirigente comunista em Portugal, célebre líder da UEC, e depois dirigente de relevo do MPLA, em Angola, esteve no centro do furacão do 27 de Maio, em 1977. Regressara a Angola, sua paixão e sua pátria originária, com o empenhamento político de sempre: lutar por um mundo melhor. Para os burocratas da revolução, que se apropriam dela como feudo pessoal, a sua vivacidade e inteligência eram factores pouco recomendáveis. Ela tornou-se perigosa e um nome assinalado, uma suspeita que não só interpretava o mundo, como o desejava transformar. Tinha esse defeito, e ainda pior, como iria Brecht, podia e sabia pensar. Nos poderes chamados revolucionários, há um expediente eficaz para afastar os que pensam de forma diferente e têm a ousadia de discordar ou dizer não: colar-lhes o rótulo de fraccionários. Foi o que aconteceu.

Sita, mulher de José Van-Dúnem, alto dirigente do MPLA, e Nito Alves, que fora ministro, como muitos outros, foram presos e fuzilados, sem julgamento, como então Agostinho Neto disse que devia ser para não se perder tempo. E, com eles, mais não sei quantos mil, e mais outros não sei quantos mil, e mais outros e outros e outros não sei quantos mil, homens e mulheres, jovens, muitos jovens, torturados, violentados, mortos às mãos dos torcionários da DISA, a temível polícia política, igual nos métodos e na violência a todas as polícias do mesmo tipo, seja em que lugar for, na Lubianka de Stalin, na Argentina dos coronéis, no Chile de Pinochet, no Brasil da ditadura militar, na Espanha de Franco e no Portugal de Salazar.


Imagino, se imaginar se pode, o longo calvário de Sita até ao fuzilamento. Decerto de olhos abertos a enfrentar os carrascos, porventura lembrando-se de outro revolucionário, o Che (por sinal, o nome do seu filho), quando este disse ao militar que o ia matar: "acalma-te, e olha bem! Tu vais matar um homem!" Sita poderia ter dito: Olha-me bem nos olhos, vais matar uma revolucionária que apenas queria uma Angola melhor.


SITA - A Vida e o Tempo de Sita Valles, a longa-metragem de Margarida Cardoso, é, ao mesmo tempo, um tributo à memória e uma exigência de justiça, o direito de os familiares saberem dos restos mortais dos seus entes queridos, onde, quando e como foram mortos e enterrados e a devolução das ossadas, o direito a uma simples certidão de óbito. Há quem diga que as revoluções gostam de devorar os seus filhos, mas essa retórica só serve para desculpar as próprias perversões revolucionárias. Daí que a reclamação de justiça, como clamor ético e colectivo, seja a única forma de alcançar a verdade e pacificar as consciências. Não haverá paz na sociedade se a verdade não for retirada da obscuridade. Ainda vivem muitos que têm as mãos sujas de sangue. O tempo da justiça nunca prescreve.


Quando o filme acabou, num S. Jorge repleto, com muitos jovens na plateia, um silêncio pesado e breve passou sobre o público, como se este estivesse suspenso da sua própria perplexidade face à narrativa dos testemunhos, às cartas de Sita e à força das imagens. Só quebrado quando as palmas a Margarida Cardoso, a realizadora, se fizeram ouvir. A inquietação soltara-se e o resto já não era silêncio.
Coda -- Também eu tentei imaginar o olhar de Sita, antes do fuzilamento. Que luz, que derradeira imagem, que súbito pensamento, no último instante? O horror antes do horror, de que falava Steiner, que um pintor chamado Goya captou no célebre quadro sobre os fuzilamentos de 3 de Maio, em Madrid. Regresso muitas vezes a essa imagem de terror, ao mesmo tempo feita grito de desespero e de raiva e gosto de a sobrepor ao fantástico poema de Jorge de Sena, em forma de carta aos filhos sobre a obra de Goya. Leiam-no, por favor.


Não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É possível, porque tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós.
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto
o que vos interesse para viver. Tudo é possível,
ainda quando lutemos, como devemos lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer delas uma fiel
dedicação à honra de estar vivo.
(...)
Acreditai que nenhum mundo, que nada nem ninguém
vale mais que uma vida ou a alegria de tê-la.
É isto o que mais importa - essa alegria.
Acreditai que a dignidade em que hão-de falar-vos tanto
não é senão essa alegria que vem
de estar-se vivo e sabendo que nenhuma vez
alguém está menos vivo ou sofre ou morre
para que um só de vós resista um pouco mais
à morte que é de todos e virá.
Que tudo isto sabereis serenamente,
sem culpas a ninguém, sem terror, sem ambição,
e sobretudo sem desapego ou indiferença,
ardentemente espero. Tanto sangue,
tanta dor, tanta angústia, um dia
- mesmo que o tédio de um mundo feliz vos persiga -
não hão-de ser em vão. Confesso que
muitas vezes, pensando no horror de tantos séculos
de opressão e crueldade, hesito por momentos
e uma amargura me submerge inconsolável.
Serão ou não em vão? Mas, mesmo que o não sejam,
quem ressuscita esses milhões, quem restitui
não só a vida, mas tudo o que lhes foi tirado?
Nenhum Juízo Final, meus filhos, pode dar-lhes
aquele instante que não viveram, aquele objeto
que não fruíram, aquele gesto
de amor, que fariam «amanhã».
E, por isso, o mesmo mundo que criemos
nos cumpre tê-lo com cuidado, como coisa
que não é nossa, que nos é cedida
para a guardarmos respeitosamente
em memória do sangue que nos corre nas veias,
da nossa carne que foi outra, do amor que
outros não amaram porque lho roubaram.

*Jornalista e escritor