O principal ponto da discórdia entre os órgãos sociais da OCPCA está na remuneração que os membros da Comissão Directiva do mandato 2021-2024, se auto-atribuíram. O nº 3 do artigo 8º do Estatuto da OCPCA determina que o exercício de qualquer mandato é sempre remunerado nos termos a definir por uma Comissão de Vencimentos, eleita pela Assembleia Geral, sob proposta do Conselho Directivo. Quando os factos vieram ao conhecimento dos membros, foi instituída uma sindicância para aferir dos factos, o que segundo o relatório da sindicância levada acabo pelo Conselho Fiscal, aferiu que a atribuição da remuneração não obedeceu o prescrito no Estatuto da Ordem.
O momento cinzento prevalecente na OCPCA, infelizmente, é apanágio do que se tem observado em várias outras organizações, entre eles, partidos políticos, confissões religiosas, entre outras. Há de facto uma crise nas instituições angolanas no que diz respeito a sua governação. Ouvimos existirem desentendimentos nos partidos políticos, havendo em muitos deles intervenções dos órgãos de justiça, relatam-se desencontros nas igrejas, havendo mesmo conflitos que conduzem a fracturas internas profundas, que acabam por fragilizar a acção dessas organizações. Os conflitos são frequentes em diversas associações, segui por exemplo, o conflito que se viveu na Ordem dos Médicos. Confissões religiosas que acabaram por se separarem em duas alas, tudo pela ambição dos homens, que na maior parte das vezes privilegiam o EU, em detrimento do NÓS, de que me referi neste espaço numa das minhas reflexões.
Por vezes, pensa-se que a essência dos mecanismos de governação das sociedades comerciais, ou corporativas, aplicam-se unicamente, nas instituições com fins lucrativos. Não é verdade, se olharmos para as estruturas estatutárias das organizações cujo fim não é o lucro, verificamos que os fins para os quais são criados os órgãos sociais são idênticos. Os órgãos sociais de uma empresa ou entidade cujo fim é o lucro, são a assembleia geral e os corpos gerentes, para uma sociedade por quotas e ou o conselho de administração e a comissão executiva, segundo a Lei das Sociedades Comerciais. A assembleia geral é o órgão máximo que tem, geralmente o poder deliberativo e o conselho de gerência é o órgão que executa a visão, a missão e os objectivos preconizados pelos órgãos de supervisão, ou seja, o presidente do conselho de administração, que por vezes, é o mesmo do conselho executivo, sendo por conseguinte, o modelo monista, muito frequente, no Reino Unido e nos Estados Unidos, enquanto na Europa continental é mais frequente o modelo dual. Porém, por exemplo, em Angola, o misto dos dois modelos. Entretanto, o sector bancário optou pelo modelo dual, separando as funções de supervisão (PCA), com a de gestão operacional (PCE ou CEO). Portanto, a opção por um modelo ou outro (monista ou dual), depende do tipo de sociedade e dimensão. A grande diferença entre as entidades que perseguem o lucro (empresas) e as que não perseguem o lucro (NFP), é que nas últimas, tem de haver a clara separação entre o órgão de supervisão, geralmente a mesa de assembleia de membros e o órgão executivo, neste caso o Conselho Directivo, no caso da OCPCA, cujas responsabilidades estão devidamente definidas no Decreto Presidencial nº 232/10 de 11 de Outubro. Vale ressaltar que a essência dos mecanismos da governação das organizações está na tendência que existe entre o interesse do principal e do agente, pela incontornável existência de assimetria de informação (teoria de agência), o agente tende a privilegiar os seus próprios interesses, em detrimento do principal. Foi exactamente o que se passou na OCPCA, os agentes, neste caso, o Presidente e Vice-presidente do Conselho Directivo, privilegiaram os seus próprios interesses, ao atribuírem-se a remuneração, sem beneplácito da Assembleia Geral de Membros. O principal, os membros da OCPCA, por não estarem envolvidos na gestão da Ordem não se aperceberam.
O número 1 do artigo 12º dos Estatutos da OCPCA refere que a Assembleia Geral é o órgão máximo da Ordem (principal), ao qual, sem prejuízo das competências específicas de cada um dos outros órgãos, cabe dirigir toda a sua actividade. Para além de que as deliberações dos órgãos sociais são colegiais, devem ser tomadas como validas, apenas com a presença de mais de metade dos seus membros. Salvo melhor interpretação, não li em nenhuma parte do Estatuto da Ordem a competência de exarar despachos, que dão fim de a um mandato obtido por eleição. O contacto com os documentos e cartas trocadas entre os mandatários, incluindo o comunicado do Conselho Directivo, a informar os membros a se demarcarem da Assembleia convocada pelo Presidente da Mesa, o que é, efectivamente, uma aberração (por ser sua competência) é indicação de que não existem condições de coabitação entre os órgãos da Ordem, particularmente, entre a Assembleia Geral e o Conselho Directivo, pelo que, a antecipação da realização de eleições, me pareceu ser a única forma de tirar a Ordem da turbulência em que se encontra. Porquanto, o actual ambiente não permite que a Ordem cumpra os objectivos para qual foi estabelecida.
Obviamente, como membro o ambiente que se vive na Ordem, não só, não agrada à ninguém, como nos deixa muito preocupados. Entretanto, me parece haver um equívoco quanto as acusações que são feitas ao Conselho Directivo, segundo a qual houve apropriação indevida de fundos, tipificando o crime como sendo peculato. Não gostaria de me meter em seara alheia, por não ser jurista. Nos termos do n.º 1 do artigo 362.º do Código Penal, configura-se crime de peculato quando funcionário público se apropria ilegitimamente, em proveito próprio ou alheio, de dinheiro ou coisa móvel que lhe não pertença e lhe tenha sido entregue, esteja na sua posse ou a que tenha acesso por virtude do seu cargo ou das funções que ocupa. Ou seja, peculato é atinente à apropriação de fundos públicos, ao menos que a Ordem recebesse fundos do Orçamento Geral do Estado (OGE), o que não me parece ser o caso, pois, a listagem das receitas constantes do artigo 10º do Estatuto, não inclui o OGE. Por conseguinte, pode haver o crime de furto ou outro e não peculato. Vem a propósito de o grupo que se opõe ao empossamento dos novos órgãos sociais ter tido provimento da providência cautelar, que interpuseram para impugnar a Assembleia extraordinária que aprovou o regulamento eleitoral e indicou o Presidente da Comissão Eleitoral, o que me faz pensar, que, provavelmente, não houve a devida prudência em lidar com as matérias que desde o primeiro momento emergiram, que é a auto-atribuição da remuneração. Entendo que a antecipação da eleição precede um problema grave que ocorreu, que devia conduzir a perda de mandato. Só depois, se deviam criar as condições para a eleição de novos órgãos sociais. Lendo os argumentos de razão da Providência Cautelar interposta pelo Presidente do Conselho Directivo, os argumentos apresentados para o provimento do requerido, fazem sentido, por quanto, a data de Setembro, pese a macula da violação flagrante do Estatuto da Ordem, o Presidente do Conselho Directivo estava em funções, não tinha perdido o mandato, pelo que, o provimento dado é justificável.
Porém, sejam quais forem os argumentos que se apresentem, se o Conselho Directivo, nomeadamente o seu Presidente e o Vice-Presidente, se acham caluniados ou acusados injustamente em se terem auto-atribuído a remuneração, ou se acham no direito desta remuneração, a decisão nobre seria renunciar o mandato, permitir uma investigação independente livre de qualquer tipo de interferências. Pois, nas actuais circunstâncias impedem o apuramento da verdade, consequentemente, afectando negativamente a imagem e a reputação da Ordem, concomitantemente, dos seus membros. Seria de uma dignidade e nobreza sem precedentes se renunciassem o mandato. O ego, o orgulho e a prevalência da defesa do interesse pessoal ou de grupo, em vez do interesse dos membros e do interesse público, não está a ajudar a Ordem. A turbulência nos órgãos sociais vem atrofiando o normal funcionamento da ordem, fazendo com que não se tenha, por exemplo, realizado o exame de admissão de novos membros no ano de 2023. Creio que foi esta a motivação do Presidente da Mesa, que ao não ter ponderado, em primeiro lugar dar por extinto o mandato do actual Presidente do Conselho Directivo, que só é exequível com a sentença condenatória transitada em julgado se pode extinguir o mandato, segundo o artigo 9º do Estatuto.
Entretanto, fiquei com a impressão de que existem profundas fragilidades e omissões no Estatuto da OCPCA, pois perante um facto como o da violação do Estatuto, a Assembleia tinha de ter autoridade, mesmo que de forma temporária, de suspender o mandato de quem tenha violado os Estatutos. Na minha perspectiva o actual Presidente do Conselho Executivo e o seu Vice-Presidente, perderam a autoridade moral de representarem os interesses da OCPCA. A providência Cautelar referiu aos 12 mil membros, quando a maioria dos membros, de onde me incluo, consideram que, em consequência do processo judicial e dos factos relatados pela sindicância, sobre os auspícios do Conselho Fiscal, creio que era o suficiente para a perda de mandato. Por conseguinte, a meu ver, o primeiro passo seria a instauração de um processo disciplinar, sancionando os implicados, incluindo a expulsão da Ordem. A outra fragilidade é que a ordem deveria ter profissionais contratados para condução das operações, a remuneração dos mandatos não é compatível com a actividade de uma associação de Profissionais. Pertenço à uma Ordem de Profissionais de contas, Chartered Professional Accountants of Ontario (CPA-CGA), com o registo temporariamente suspenso, por inactividade profissional naquela jurisdição. Os órgãos executivos são profissionais, ou seja, o CEO, não é eleito, é contratado e pago para o exercício da função. Por exemplo, sei que o Bastonário da Ordem dos Advogados, não é remunerado pelo mandato.
Presentemente tornou-se conversa de quintal a situação prevalecente na OCPCA não dignifica os profissionais de contas, sendo, por conseguinte, um péssimo exemplo de comportamento ético. Porquanto, os contabilistas são imprescindíveis para as actividades económicas, tal como refere o preambulo do Decreto nº 232/10 de 11 de Outubro, que aprova o Estatutos da Ordem, atestando que « (....) o exercício das funções de contabilidade e auditoria constituem actividades de primordial importância para o desenvolvimento político e económico nacional e para todos agentes económicos, incluindo o Estado», por isso não se entende o silêncio do do Ministério das Finanças, para pôr cobro à este filme vergonhoso. Tem de se dar ponto final a actual situação na OCPCA, nem que se crie uma Comissão de Gestão. A Ordem não pode ser sequestrada por um gangue, passando por cima de todos os profissionais. Essencialmente o exercício de um mandato não pode ser visto como oportunidade de carreira profissional, devem procurar emprego em qualquer outro lugar, esse é um serviço público.
*Economista