Ao cair da tarde, as redes sociais foram inundadas com as primeiras imagens dos acontecimentos aí ocorridos, e o que estas imagens nos ofereciam era, de tal forma, chocante, trágico e bárbaro que julgávamos impossível poder ver tais coisas sucederem nesta altura do nosso processo histórico. A versão oficial, depois emitida pela Polícia Nacional, afigurava-se tão patética, tão absurda que, longe de esclarecer a opinião pública, suscitou muito mais dúvidas e lançou autêntica penumbra sobre os acontecimentos de Cafunfo.
Com efeito, aquelas imagens só podiam ter sido tiradas por pessoas ligadas às forças de defesa e segurança, não havendo hipótese alguma de pessoas independentes ou ligadas aos rebeldes (considerando a tese policial de rebelião armada) terem sido os autores. As imagens estavam muito longe de estar alinhadas com a versão da Polícia Nacional, eram reveladoras de actos bárbaros e de verdadeira selvajaria e atentatórias à dignidade humana por parte de agentes da Polícia Nacional e, mesmo o armamento exibido como pertencendo aos supostos rebeldes, não justificativa os actos ignóbeis que as imagens exibiam, para além de que não havia como provar (pelas imagens exibidas) que tais armas estavam na posse daquelas pessoas estendidas e sem vida.
Perante um quadro tão nebuloso, tão densificado por dúvidas que as autoridades em cada intervenção intensificavam, o Grupo Parlamentar da UNITA decidiu-se a enviar para o local uma delegação de deputados para, no terreno, entender o que efectivamente se passou. A delegação foi constituída pelos deputados Domingos Oliveira e Rebeca Muaca, dos círculos eleitoras da Lunda-Norte e Lunda-Sul, respectivamente, engrossada pelos deputados Alberto Ngalanela, Joaquim Nafóia e Sediangani Mbimbi, saídos de Luanda, aos quais se juntou a activista cívica Laura Macedo.
O envio desta delegação justificava-se, pois, à luz do Regimento da Assembleia Nacional (Art. 24.º na alínea o), o deputado tem direito a "manter vínculos e auscultação ao eleitorado" e na alínea p) "informar-se sobre as questões de interesse nacional por meios próprios colocados à disposição dos deputados pelos órgãos competentes do Estado nos termos da Constituição e da lei". O exercício destes direitos é exequível no quadro do Grupo Parlamentar, que é a forma de organização no Parlamento dos partidos políticos ou coligações de partidos políticos.
As deslocações dos deputados ao interior do País não carecem de autorização do presidente da Assembleia Nacional. O artigo 45.º do Regimento da Assembleia Nacional estabelece as competências do presidente da Assembleia Nacional quanto aos deputados e, na sua alínea g), diz, claramente, que compete ao presidente da Assembleia Nacional "conceder licenças de férias disciplinares, bem como autorizar as deslocações dos deputados ao exterior, ouvido o respectivo presidente do grupo parlamentar". Em nenhum momento é referida a necessidade de autorização nas deslocações ao interior do País. Por outro lado, o deputado é titular de um cartão assinado pelo presidente da Assembleia Nacional, em cujo verso vem inscrito o seguinte texto:
Imunidades e Direitos dos Deputados
- Os Deputados não podem ser detidos ou presos sem autorização a conceder pela Assembleia Nacional, n.º 2 do artigo 150.º (Constituição da República) e n.º 2 do artigo 15.º da LOED (Lei Orgânica do Estatuto do Deputado).
- Os deputados gozam do direito de livre-trânsito entendido como livre circulação em locais públicos de acesso condicional, mediante exibição do cartão de identificação do deputado, alínea b) do artigo 18.º da LOED (Lei Orgânica do Estatuto do Deputado).
- As autoridades a quem este cartão for apresentado devem prestar todo o auxílio solicitado pelo portador.
Como se pode depreender, os deputados do Grupo Parlamentar da UNITA partiram para esta missão cobertos de legalidade e, ao serem impedidos de entrar na Vila de Cafunfo, palco dos violentos acontecimentos do dia 30, foi desautorizado o presidente da Assembleia Nacional que assina o cartão de identificação e violados direitos dos deputados consagrados na Constituição e na lei. Por isso, os deputados esperavam do presidente uma atitude solidária, diferente daquela que assumiu em comunicado.
Por outro lado, o facto de os deputados terem sido impedidos de contactar as populações de Cafunfo aumentou as suspeitas sobre a veracidade da versão trazida a público pela Polícia Nacional e defendida nos termos mais enérgicos e de modo rocambolesco pelo ministro do Interior, Eugénio Laborinho, e pelo comandante-geral da Polícia Nacional, Paulo de Almeida. Com efeito, apesar daquela adversidade, os deputados continuaram a trabalhar a partir da sede do município do Cuango e obtiveram informações que contrariam a versão insustentável contada pela Polícia Nacional e reveladoras do grau de barbaridade, que foi a repressão violenta à manifestação que alguns populares de Cafunfo pretendiam realizar naquele fatídico dia.
Por esta razão, justifica-se plenamente a instauração de um inquérito independente e idóneo reclamado por muitos sectores da sociedade.
*Deputado a Assembleia Nacional pelo Grupo Parlamentar da UNITA