Em Angola, a discussão resvalou para uma questão marginal que consistia em considerar ou não o albinismo como doença". E porquê isso aconteceu? Porque se vá lá saber porquê, a organização das actividades da efeméride este ano recaiu sobre alguns sectores do MINTTICS, no caso a Rede de Mediatecas e do MASFAMU, liderados pela secretária de Estado da Família e Promoção da Mulher; e esses sectores decidiram entregar a liderança dos debates sobre esse tema reconhecidamente complexo... a médicos! Ora, desde tempos imemoriais, os médicos são formados e formatados para identificar e tratar doenças. Por isso, outra coisa não se esperava senão que viessem aos órgãos de comunicação social, escancarados para o efeito, com a asserção pseudamente científica que "albinismo é uma doença". Albinismo não é doença.

No entanto, já foi, assim, considerada até quase finais do século passado uma doença. Isso era quando o conceito de saúde-doença era dominado pelas ciências biomédicas. Até a esta altura, e porque assim era para os médicos, qualquer deficiência era considerada doença: a falta de uma perna, de um braço, da visão, da audição, etc. Ainda hoje, para os médicos psiquiátricos mais atrasados, o homossexualismo é uma doença, apesar de estar já convencionado que não. Para alguns virologistas, o portador do vírus do VIH, é doente, apesar de também já estar convencionado que não; ele só é doente se apanhar alguma das doenças oportunistas e desenvolver o Sida. Da mesma forma, para os médicos mais atrasados, a deficiência genética que causa o albinismo é uma doença (lembram os médicos do céc. XVI que juravam a pés juntos que as pessoas de tez negra eram... macacos!). Ora, tal como a deficiência visual, auditiva, locomotora ou outra não é doença, o albinismo também foi convencionado não ser.

A definição mais aceite de doença é a que diz que "é um conjunto de sinais e sintomas que afectam o desempenho normal das funções biológicas e o bem-estar físico, psíquico e emocional de um indivíduo". Estou a citar de memória. Remete-nos então à questão: o simples facto de alguém ser pessoa com albinismo afecta suas funções biológicas, o bem-estar ou as faculdades psíquicas e emocionais? É óbvio que não. Eu, pessoalmente, nada fico a dever ao Dr. Luiele, que supostamente por ter a melanina toda, devia ter melhor saúde que eu que não tenho; ter melhor desempenho na escola e sociedade que eu; a sua carreira ser superior à minha; etc. Bom, se a minha saúde e desempenho social é superior ao do digno Dr., não posso dizer; mas inferior também não me parece ser. Atingi patamares que o Dr. ainda não atingiu e eu sou bem mais novinho que ele, se calhar tive melhores médias na escola... e sou albino e ele não. Então? Discriminação é isso: classificar negativamente e falsamente um conjunto ou conjunto de indivíduos devido à sua condição de nascimento. No nosso caso até é inconstitucional...

Por outra, uma doença trata-se: sendo "um conjunto de sinais e sintomas" que afectam a saúde, algo tem que se tomar para fazer desaparecer esses sinais e sintomas; as pessoas com albinismo precisam de tomar medicamentos para essa "doença"? Não outra vez. Tal como qualquer pessoa com deficiência, tem que assumir um estilo de vida para evitar as doenças de que são propensos: evitar a exposição ao sol por causa das queimaduras e o cancro da pele, usar cremes hidratantes e protectores solares pelo mesmo motivo, usar óculos por causa da baixa visão, etc. Ou seja, albinismo em si não é doença; a deficiência de melanina torna-os susceptíveis a algumas doenças. Ninguém vai ao médico ser tratado de albinismo, mas de doenças de pele ou da vista. Esse debate rolou toda a década dos 80 e 90 do século passado e por tudo isto é que a OMS já convencionou que o albinismo não é uma doença, mas uma deficiência. O homossexualismo nem isso sequer. Faltam apenas alguns processos meramente administrativos para ser retirada do índex internacional das doenças. A definição que o Dr. Luiele traz sobre o albinismo está desactualizada: o termo "desordem genética" típico dos geneticistas foi substituído por "deficiência genética". Até porque não existem "pacientes de albinismo". Existem pacientes de doenças da pele que vão ao dermatologista, de vista que vão ao oftalmologista, de depressão, por causa dessa discriminação, que vão ao psicólogo clínico, etc.

E porquê houve esta evolução conceptual da doença-saúde? Essencialmente por dois motivos: um relativo à proeminência da disciplina que deteria uma predominância no conceito; e outro - um novo paradigma na ciência e na academia - ligado à preponderância dos Direitos Humanos enquanto uma abordagem integrada de vários ramos do saber. Quanto ao primeiro, só os médicos realmente atrasados hoje ainda defendem que as ciências biomédicas têm, como diz o Dr. Luiele, "a legitimidade de ocupar o trono na definição dos conceitos de saúde-doença" (hoje em dia, se alguém defendesse essa tese num evento científico internacional, era capaz de fazer o tecto ir abaixo de tanta risota). A definição dos conceitos de saúde-doença há muito passou a beneficiar de valiosas contribuições de outras disciplinas, desde a Filosofia à Economia, passando pela Sociologia, Antropologia, Comunicação e outras que agora não me vêm à mente. Tanto assim é que cada um desses ramos do saber tem a própria definição. Por isso é que, cada vez mais, os conceitos científicos estão a ser revistos numa perspectiva integrada. O isolacionismo disciplinar, que nunca foi encorajado no estudo dos fenómenos, agora nesta era da Informação e Comunicação é coisa mesmo da Idade da Pedra. O conceito de doença que enunciei acima é um exemplo disso mesmo.

A segunda razão tem a ver com a coqueluche desta Era Pós-Moderna: Os Direitos Humanos. Os próprios médicos defensores do albinismo como doença têm o máximo cuidado de distanciar-se de qualquer prática de discriminação (que nalguns países até é crime), exactamente porque é um valor adquirido destes nossos tempos. Porém, e atribuo isso à sua deficiência de formação neste quesito, eles parecem não se dar conta de que o seu discurso é uma avenida aberta para essa mesma discriminação que (re)negam. Então, vem um conjunto de médicos declarar do alto da sua "sapiência" que uma deficiência genética é "doença"; uns chegam ao extremo de dizer que os jovens namorados deviam estudar as suas famílias para ver se há albinos e, se houver, não cruzar (implicando que pessoas como eu não devem nascer) e ainda dizem que são contra a discriminação de pessoas com Albinismo?

Sabendo da influência que acarreta um médico na sociedade e tratando-se de um fenómeno com uma tremenda carga sócio-antropológica negativa?! Está claro que isso é um completo contra-senso. Mas isso acontece exactamente porque estes médicos sofrem do tal "isolacionismo disciplinar", ou seja, só estudaram a sua especialidade e pensam que o mundo gira à volta do pouquinho que sabem. E também porque, ou não estudaram, ou não participam nos debates científicos e académicos do séc. XXI e estão deveras atrasados no tempo. Não se apercebem que a grande razão pela qual se convenciona não considerar o albinismo uma doença é exactamente porque, como diz "brilhantemente" o Dr. Luiele no seu texto "para que sejam eliminadas todas as formas de violência e preconceito enfrentados por pessoas com albinismo". Brilhantemente entre aspas porque conseguiu uma proeza rara na academia: chegar a uma conclusão errada a partir de pressupostos certos.

Meus doutores, voltem só para a escola e vão descobrir logo-logo que albinismo não é doença. Sim?...

*Sociólogo da Comunicação Ex Secretário de Estado da Comunicação Social e Decano da Faculdade de Ciências Sociais, Humanas e Políticas da Universidade Privada de Angola