Na Europa Ocidental há a guerra entre a Rússia e a Ucrânia. Esta é uma guerra à antiga - lembra a Grande Guerra de 1914-1918 - com trincheiras, linhas da frente, poucas e custosas mudanças no terreno. E muita destruição e cidades arrasadas; e também muitas baixas de um lado e de outro. Para não falar dos deslocados. Vidas mortas.
O fim da ordem liberal Internacional
Estas guerras vieram definitivamente pôr fim à ordem liberal internacional, uma ordem inspirada pelos anglo-saxões vencedores da Guerra Fria, e desde aí activada pelos neoconservadores norte-americanos, em sucessivas Administrações republicanas e democráticas, até Trump vencer em 2016.
A imposição dessa ordem, ou seja a exportação das instituições democráticas, da democracia liberal, para fora do Euromundo, parece ter fracassado, causando mesmo uma situação The West against the Rest, que não é muito boa para o dito Ocidente, vencedor da Guerra Fria, graças à aliança com potências autoritárias como a Arábia Saudita e totalitárias como a China.
E o fracasso vem também da imposição globalista não apenas de instituições democráticas mas de valores "vanguardistas" e mais que suspeitos, impostos por minorias culturais, académicas e mediáticas, valores como os do chamado Wokismo que são inaceitáveis para a maioria esmagadora das nações, que os acham absurdos como as diferenças de género e sexo.
E que são contestadas, também, no próprio Euromundo, por novas forças políticas muitas vezes designadas por populistas e de extrema-direita, mas que ganharam nos últimos anos apoio popular em países importantes da Europa e das Américas.
Passamos de uma ordem liberal internacional para uma ordem - ou desordem - multipolar. Embora na letra da Lei - Cartas das Nações Unidas, Organização Mundial de Comércio, estatutos e linguagens das organizações internacionais - continuemos a seguir o discurso oficialmente correcto, mantendo-se assim a ficção da sobrevivência dessa ordem - na verdade passamos já, para o bem e para o mal, para um sistema de poder fragmentado, com grandes e médias potências que actuam, essencialmente, em nome dos seus interesses nacionais.
Para além disto, há um reagrupamento de forças e Estados muito interessante e muito político, no sentido Schmittiano do termo, já que é baseado na exclusão do inimigo ou na rejeição de outras forças tidas antecipadamente como dominantes. Tal é o caso dos BRICS, inicialmente Brasil, Rússia, Índia, China, South Africa e agora mais alargados com a adesão, da Arábia Saudita, dos Emiratos, da Etiópia, do Irão e do Egipto. O que leva estes Estados tão diferentes e alguns historicamente rivais e adversos a juntarem-se e, em certo sentido, a mobilizarem o arrastarem o chamado "Sul Global" para uma espécie de frente comum na geometria variável dos conflitos que vão pelo mundo? Sim, porque ver a Índia e a China no mesmo grupo restrito dá muito que pensar.
Como dá que pensar uma análise atenta do comportamento destes Estados na conflitualidade do mundo; aí se vê que, longe de alinharem nos dualismos masoquistas dos "bons" e "maus", procuram seguir linhas de realismo e interesse nacional que, às vezes, obrigam à tal geometria variável de alianças e opções.
Muitas das elites e quadros formados no bipolarismo ideológico da Guerra Fria, não entendem estas novas regras que, entretanto, a escola realista, de Maquiavel a Morgenthau, de Kennan e Kissinger explicou bem.
Mas é um mundo perigoso, mais perigoso que o da Guerra Fria, em que dois blocos, bem armados mas também articulados, com lideranças realistas que enquadravam aliados e afins, se olhavam como duas feras inteligentes e poderosas que entendiam que um passo em frente acabaria na destruição mútua. Hoje há uma dezena de potências nucleares e todas acabam por ser mais ou menos independentes. E nos conflitos de que acima falámos, alguns dos contendores adorariam um pretexto para envolver os aliados no conflito em causa. E a paixão ideológica leva muitos, não só a quererem morrer heroicamente até ao último ucraniano, russo, israelita ou palestiniano, como a alimentar um descontrolado ânimo belicista, como se fossem as próprias pátrias que estivessem em jogo.
E a África?
E que faz a África, a África subsahariana neste grande jogo do mundo? Por definição um mundo em que se recompuseram blocos - o EuroAmericano, o Russo-Chinês, ou Sino-Russo, os novos neutralistas do Global South - a África é também, importante, até porque como outrora, dos tempos que precederam a conferência de Berlim ao despertar da Dscolonização e da Guerra Fria, é uma área onde muitos dos Estados têm assumido uma posição de neutralidade pendente em relação aos conflitos. Diga-se entretanto que as cobiças não estão passadas: a Rússia de Putin, usando um modelo de companhia militar privada, com o Wagner Grupo do malogrado Yevgeny Prigozhin, assumiu papéis importantes no antigo pré-carré africano da Francophonie, à custa de Paris. E os chineses avançaram com créditos e Rotas da Seda, enquanto europeus e americanos parecem dormir.
O problema de muitos destes Estados é a permanência de factores tribais que perturbam a unidade e identidade nacionais. Países importantes, entre os maiores, mais populares e desenvolvidos da África subsahariana, como a Nigéria e a própria República da África do Sul, têm vivido com tal problema - a Nigéria tem as suas divisões históricas religiosas clássicas e a África do Sul continua para muitos com o estatuto de "descolonização interrompida" ou incompleta, apesar de a presente coligação ANC-DA ter sossegado muitas inquietações.
As grandes potências têm mostrado pelo menos oficialmente o seu interesse: em Dezembro de 2022, Biden convidou para Washington DC, uma Cimeira EUA-África, em que os diferentes países africanos puderam dizer aos seus hóspedes americanos que a África são mais de meia centena de países que não gostam de ser tratados em feixe, como se fossem todos iguais ...
Antes, em Outubro de 2019 tinham sido os Russos a inaugurar em Sochi uma Cimeira donde saíra uma declaração onde já se reconhecia uma "ordem mundial multilateral". Falava-se ainda de cooperação na Segurança. Tinha havido também cimeiras na China. E na Itália, o governo Meloni lançara o "Plano Mattei", uma ideia simples e articulada de apoiar o desenvolvimento em África para que os quadros africanos não tenham que emigrar para a Europa.
Falando de Angola
Angola é um caso muito especial a que me sinto especialmente ligado; conheci-a no final da administração portuguesa, no meu serviço militar; conheci-a depois, durante a guerra civil, primeiro próximo da oposição armada; a partir de 1996, quando o saudoso general João de Matos me convidou para falar sobre os acordos de paz aos oficiais generais das FAAs, em Luanda em Março de 1996; a partir daí partilhei e criei relações de amizade com dirigentes do MPLA, da UNITA, militares, civis, e figuras de terceiras forças como velho amigo Justino Pinto de Andrade. Também, graças aos raids do Cuanza Sul, cheguei a lugares, como Cabinda e as Lundas, onde nunca tinha estado. E assim, entre 1974 e 2024, acabei por estar em todas as 18 províncias de Angola. A história destes tempos tenho-as contadas em livros - nos Jogos Africanos e nos dois romances, Novembro e Os Passageiros da Sombra.
É uma terra que conheço bem com gente que também conheço bem e de quem gosto muito.
A visita do presidente americano, de Joe Biden, uma visita especial de dois dias a um país, Angola, mostra essa importância de Angola. Uma importância muito especial por muitas razões.
Para mim, falando com amigos americanos sobre Angola, desde os anos 80, lembro-me que, para explicar a guerra civil angolana, recorria ao paralelo com a guerra civil americana.
Fazendo a comparação - por uma razão puramente pedagógica e claro sem qualquer implicação ideológica - sempre sublinhava que a posição da UNITA acabava por ser a dos confederados - que sendo "os rebeldes", não tendo reconhecimento internacional, nem a capital, nem os mais fortes recursos económicos, tinham como alternativa ou ganhar depressa ou fazer um acordo num momento de superioridade militar.
Não foi assim, mas chegou-se finalmente à paz. E um ponto que sempre sublinhei, para americanos e europeus que me falavam e questionavam sobre Angola era que, apesar dos problemas paralelos aos novos Estados do continente, Angola, como outros ex-territórios de administração portuguesa, tinha a vantagem comparativa de ser um Estado africano, em África, feito ao modo da maioria dos Estados da Europa e da América - guerra da independência, guerra civil, e paz sob a égide do vencedor que geralmente, com mais ou menos equidade, fazia a integração.
Angola destribalizou graças à guerra e acelerou o processo de construção nacional. Todos temos a noção das desigualdades, dos problemas, da pobreza de muitos - mas essa doença crónica de outros países africanos que é o tribalismo e mesmo de alguns dos grandes como a Nigéria, a República Democrática do Congo, ou o Sudão, Angola não tem.
Esta visita do presidente norte-americano é por todas as razões muito importante e significativa. A República Popular da China foi quem, no final da guerra civil de Angola, avançou com créditos para a reconstrução do país, quando europeus e americanos se mostraram resistentes. Graças a isso Pequim ainda é hoje, o detentor da maior parcela da dívida angolana.
Mas há que reconhecer que os Estados Unidos foram ao longo destes quase cinquenta anos de independência de Angola, os maiores investidores no país através das petrolíferas.
E que, seja qual for a decisão do povo americano em 5 de Novembro próximo - uma decisão que vai ser determinada por poucos votos em poucos Estados - a América continuará a ser, ainda por algum tempo, a primeira potência mundial.
Espero bem que os angolanos saibam durante a visita de Biden, explicar aos seus interlocutores americanos o que é e o que vale Angola, apesar de todo o rosário de problemas e traumas por que passou nos últimos anos. n
*Professor e Historiador