Ao abordarem os contornos da derrota angolana face à campeã europeia, esses comentadores, que se apresentam como "espécies-raras" em matéria de conhecimento da modalidade, fizeram passar quase de forma ostensiva a mensagem de que era obrigação de Angola vencer a partida frente à Noruega. Não podia acontecer equívoco maior. Só por maldade ou por ignorância se pode exigir das angolanas vitória diante das melhores selecções do Mundo. Qualquer pessoa minimamente sensata e principalmente em tratando-se de um "sabe-tudo" não deve colocar a fasquia tão alta...
É óbvio que nenhuma equipa, por mais fraca que seja, deve entrar para uma partida sem o mínimo de ambição, sem sonhar com a vitória e bater-se bravamente para conquistar os pontos em disputa. Aliás, isso mesmo as "meninas" do andebol já fizeram em algumas ocasiões. Foi assim no "Mundial" de França 2007, prova em que inclusive bateram a turma anfitriã, e foi assim também na edição anterior dos Jogos Olímpicos, no Rio" 2016. Em ambas as ocasiões, as "Pérolas" superaram equipas do topo mundial e quando perderam deixaram a quadra de cabeça erguida, classificando-se no sétimo e no oitavo lugares, respectivamente. Mais: com sorte, provavelmente teriam subido ao pódio ou pelo menos chegado mais próximo. Isto, porém, não é a regra.
Vamos recuar no tempo e parar no ano de 1992. Na sua primeira participação em Jogos Olímpicos, a Selecção Nacional Masculina de Basquetebol venceu, em Barcelona, a Espanha por inacreditáveis 20 pontos de diferença (83-63), chocando o Mundo da "bola ao cesto", no que ficou conhecido como "Angolazo". A euforia foi tanta que muitos pensavam que Angola já era uma equipa de topo mundial. Mas, Victorino Cunha, então técnico do "cinco" angolano, meteu água na fervura e disse para quem quis ouvir que aquele tinha sido um resultado atípico e que em 10 jogos com o mesmo adversário Angola muito dificilmente ganharia um. Dito e certo. De lá para cá, Angola nunca mais venceu qualquer desafio à Espanha, seja em Jogos Olímpicos ou Campeonatos do Mundo.
Com a Selecção Nacional de Andebol Feminino, a história é mais ou menos igual, ou seja, os resultados de França" 2007 e do Rio" 2016 são excepções que confirmam a regra. Objectivamente, temos de convir que Angola não é equipa de topo mundial, embora tenha potencial para ir um pouco mais longe em provas intercontinentais.
Ao colocarem Angola no mesmo pedestal competitivo que a Noruega, os "sabe-tudo" mascarados de comentaristas lavram em equívocos de análise perturbadores. Afinal, embora um jogo de uma modalidade qualquer aparente ser apenas um jogo, no fundo é muito mais do que apenas um jogo. E a honestidade obriga-nos a envolver outras variantes quando analisamos uma partida, principalmente de desportos de quadra, como o basquetebol, andebol, voleibol ou hóquei em patins, onde, ao contrário do futebol, a surpresa é muito rara.
Uma das variantes que uma pessoa decente não deve perder de vista no momento de analisar uma partida é a Economia. Sobre o tema, há um clássico da literatura desportiva mundial intitulado Soccernomics, da autoria de Simon Kuper e Stefan Szymanski, que estabelece uma relação directa entre a economia dos países e o respectivo desempenho no desporto. Ambos chamam a atenção para o facto de, em termos absolutos, a maior economia mundial, os EUA, serem também a maior potência desportiva à escala planetária. E se virmos, por exemplo, o histórico dos Jogos Olímpicos, facilmente percebemos que o top 10 do quadro global de medalhas é dominado exactamente pelas maiores economias do Mundo. Não é sem razão que a África do Sul e a Nigéria são as duas maiores potências desportivas continentais, sendo também as duas maiores economias africanas.
Para contrapor a teoria da relação directa entre a economia e a prestação desportiva, há quem argumente que países como a Etiópia e o Quénia estão longe das principais economias do Mundo, mas têm uma apreciável colheita de medalhas olímpicas. Se estivermos atentos, perceberemos facilmente que essas medalhas foram todas conquistadas no atletismo, algo que decorre do biótipo muito peculiar dos atletas desses países, curiosamente situados na mesma região do continente africano...
De acordo com os autores de Soccenomics, se o critério de avaliação tiver por base o elemento populacional, a Noruega é a maior potência desportiva mundial. É que, no rácio entre número de habitantes e de medalhas conquistadas em Jogos Olímpicos (de Verão e de Inverno), assim como títulos mundiais e continentais de todas as modalidades, o país nórdico está no topo mundial. Logo, é desonesto e imoral exigir que Angola (62.ª economia mundial) vença a Noruega (29.ª). E nestas contas sequer entra um item fundamental, que é o Índice de Desenvolvimento Humano!
Em boa verdade, o que as atletas do andebol têm feito, mesmo em África, já é algo transcendental. Superar selecções e clubes de países como Argélia, Tunísia e Nigéria e Marrocos, com muito mais população e economias mais robustas, é já algo extraordinário. E mais espantoso ainda se torna, porque na prática as equipas angolanas de ponta (do 1.º de Agosto e do Petro-Atlético de Luanda) realizam em torno de seis jogos de alto grau de exigência - entre si - durante a temporada. Se a isso acrescentarmos o facto de o nosso campeonato ser disputado em sistema de concentração, como há mais de meio século, os feitos das "Pérolas" são absolutamente extramundanos.
Por tudo isso, pedir à Selecção Nacional Feminina de Andebol que jogue de igual para igual e vença as maiores potências mundiais - não nos esqueçamos de que os torneios olímpicos são muito mais competitivo que os Campeonatos do Mundo - é de uma insanidade sem tamanho, de uma desonestidade intelectual inqualificável e de uma ignorância pasmosa e pastosa, como diria a saudosa professora Gabriela Antunes. É como exigir o céu e a terra às "Pérolas".