"Um dia, Angola será feliz, juntamente com o seu povo", disse-me isso mesmo o general, na sua forma peculiar de falar, dois dias antes de chocar com a morte, numa entrevista que me concedeu no Andulo, em directo para a Rádio Nacional de Angola. Esses registos devem constar nos arquivos da nossa prestimosa RNA.
Durante as batalhas, o som dos tiros e os ecos de coragem se entrelaçavam com os gritos dos feridos. O general Simione destacou-se pela bravura no campo de batalha, aliada à sua capacidade de unir homens e mulheres em torno de um ideal comum. Simione sabia que a verdadeira força reside na união e na determinação colectiva. A sua vida foi um testemunho de que a honradez e o compromisso podem transcender as circunstâncias mais adversas.
Quando a honradez e o sentido do dever se transformam na virtude do sacrifício supremo, alguns homens podem, eventualmente, esquecer, mas a Pátria angolana jamais olvidará aqueles que a defenderam com bravura nos momentos mais críticos e de provação, que levaram à conquista definitiva da paz. Como escreveu Heinrich Boll: "sobre todos aqueles que o poder cósmico da vida preenche, o poder do destino desce por vezes imprevisto, numa súbita iluminação do que será a sua graça e o seu fardo".
A meio da manhã de um Sábado cinzento, dia 23 de Outubro de 1999, o general Meno dos comandos, encontrou-me finalmente, após ter corrido a cidade de lés-à-lés. Dirigiu-se a mim, dizendo que vinha por ordem do Chefe do Estado Maior General das FAA para comunicar-me que deveria seguir com urgência para o PCA, na Catumbela.
Quando cheguei ao Posto de Comando Avançado, encontrei o general João de Matos, como nunca o tinha visto. Andava de um lado a outro do corredor que dava acesso à sala de operações. Saudou-me de longe, enquanto eu me aproximava do general Nunda, que se encontrava parado no centro do Jardim exterior.
- O chefe quer falar contigo, disse-me com o rosto placidamente trancado.
Logo, descobri que algo de muito grave tinha acontecido. Cheguei a pensar que as FAA tinham voltado a perder o Andulo, de onde tínhamos saído dois dias antes. Voltei a olhar para o corredor e o general Matos acenou-me para ir ter com ele. Entrámos para a sala operativa. Sentamo-nos e ele centrou um olhar profundo em mim:
- Aconteceu algo muito grave no Andulo, perdemos o general Simione, ele accionou uma mina e morreu. O brigadeiro Amuti está ferido. Falei há pouco com o camarada Presidente e eles estão a decidir se o Governo comunica a partir de Luanda, ou se fazemos isso nós aqui. Prepara o teu equipamento, não quero mais nenhum jornalista na Catumbela.
- Meu general - retorqui com a voz totalmente embargada - dada a importância do trabalho, prefiro trabalhar com um operador de Câmara da TPA .
- Então manda buscá-lo imediatamente, ordenou com voz firme. Assim o fiz!
Mal chegou o operador de câmara, levei-o para a Sala de Operações e montamos lá o equipamento. Repentinamente, o CEMG entrou.
- Liguem isso, vamos comunicar daqui, disse o general Matos.
Acertamos que o general Matos faria a declaração da morte em combate do general Simione Mukune e depois eu teria direito a uma pergunta. Foi difícil convencer JM a dar-me a oportunidade de fazer ao menos uma pergunta.
Após concluirmos a entrevista, pedi para rever as imagens rapidamente. Dei logo conta de algo que me parecia ser uma sacanagem do colega operador de câmara. Em nenhum momento da entrevista ele me filmou ao lado do General Matos. Matreiramente, fechou o ângulo da lente e assim nos écrans das televisões apenas aparecia o general e o meu braço-direito, que só era reconhecível pelo tamanho, pela tez e por uma pulseira de borracha que uso há mais de quarenta anos no pulso. Foi uma maneira do colega retaliar por não terem autorizado a entrada do repórter da TPA, e o obrigarem a trabalhar comigo.
Anos mais tarde, eu iria agradecer-lhe por isso. Ele ficou envergonhado e desculpou-se. Expliquei-lhe que eu não tive influência nenhuma na decisão do general Matos em não querer lá outros repórteres.
Um quarto de século depois, com o presente preito em memória do general Simione Mukune, prestamos igualmente, uma justa homenagem aos esquecidos soldados que lutaram no decurso da "Operação Restauro", ao longo do ano de 1999.
O grande comandante Simione Mukune tombou no seu posto de combate, como um majestoso embondeiro africano, na maldita manhã do dia 23 de Outubro de 1999. Estava à frente dos seus homens, no seguimento da batalha do Andulo, com a mesma bravura que sempre demonstrara. Os verdadeiros militares são como as estrelas do universo: nunca morrem. Quando caem em combate, apenas perdem um pouco da intensidade do seu brilho.
A vida nos ensina que existem homens-estrelas. Pessoas que nasceram predestinadas para cumprirem a indeclinável missão de mostrar aos outros o caminho seguro para a vitória, no decurso das noites escuras, quando imperam dúvidas e incertezas e tudo parece perdido.

O general lutava sem medo, como se a morte tivesse o condão de se transformar num ritual de vida a ser implacavelmente seguido, para que a Paz resgatasse o seu valor supremo no presente-futuro das crianças do Kuito e de Angola inteira.
Ao nos lembrarmos dos vinte e cinco anos da morte do General Simione, somos confrontados com um legado que vai além das batalhas e das estratégias militares. Simione representou a determinação e a esperança de um povo que buscava a liberdade no meio da turbulência da guerra civil. As suas acções e decisões, embora envoltas em complexidade, foram guiadas sempre pela paixão de um futuro melhor para Angola.
Agora que o País respira a paz, é fundamental reconhecer o sacrifício dos homens e mulheres que lutaram para que esse dia chegasse. A memória do General Simione nos recorda que a paz não representa apenas a ausência de conflito, mas deve projectar-se como uma construção diária feita de diálogo, de respeito mútuo e de reconciliação genuína.
Ao viajar por essas terras bienas que ele ajudou a defender, oferecendo a própria vida, sinto profundamente, não apenas os resquícios da dor que partilhámos naqueles tempos conturbados, mas também vislumbro os sinais de um futuro promissor. As novas gerações de angolanos deveriam crescer com a responsabilidade de honrar esse legado, cultivando um espírito de união e progresso.
Exorto a celebração desta data com gratidão e reflexão. Que o exemplo do General Simione inspire os nossos líderes de hoje a não caírem nas teias da desonestidade. É preciso restabelecer a confiança do povo, para cada cidadão angolano sentir-se motivado a contribuir para a construção de um país onde a paz e o progresso sejam uma realidade duradoura. Que ao olharmos para o horizonte dos vales e montanhas, possamos enxergar não apenas as cicatrizes da guerra, mas também as flores da esperança que brotam das nossas terras férteis.
Simione não foi apenas um líder militar. Ele encarnou a esperança de um povo que ansiava por liberdade e dignidade. A sua determinação em lutar pelo ideal em que acreditava ressoava em cada soldado sob seu comando e em cada cidadão bieno, que sonhava com um futuro melhor. As palavras que ele proferiu durante nossa conversa, ecoam até hoje no mais profundo do meu ser: "Um dia, Angola será feliz". Essa visão se tornaria um farol para muitos, guiando-nos através das sombras da guerra em direcção à luz da paz. Ao celebrarmos o legado do General Simione Mukune, somos chamados a reflectir profundamente sobre o verdadeiro significado da paz que desfrutamos. É uma paz conquistada com sangue, suor e lágrimas, mas também uma paz que exige vigilância constante para a preservarmos.
Tal como Heinrich Boll nos lembra sobre os destinos imprevistos da vida, devemos ter consciência de que são as nossas escolhas diárias que moldam o nosso futuro. Que possamos honrar a memória do General Simione, não apenas com palavras, mas com acções que promovam a unidade e o progresso. Que o seu legado nos inspire a sermos nós mesmos, os construtores de um Angola verdadeiramente feliz. Que a sua virtude, como servidor, continue a brilhar como um exemplo para todos nós.n
*Advogado e Jornalista