Nestes regimes autocráticos, verdadeiros simulacros de democracia, os políticos governam-se a si próprios, criando um assinalável fosso entre as suas faustosas vidas, dentro e fora do País, e as condições de vida das populações que vivem na pobreza ou abaixo do limiar da pobreza.
O sucesso destes golpes de Estado está directamente ligado à pobreza e miséria de países onde as populações perderam confiança nos governantes e suas instituições aos quais responsabilizam pelo degradante estado político, económico e social dessas nações.
Nestes países, "as instituições não se conseguiram consolidar no processo de democratização do continente africano, o desenvolvimento ficou aquém das expectativas dos diferentes grupos sociais e a miséria instalou-se de forma estruturante", de acordo com Régio Conrado, professor da Universidade Eduardo Mondlane, de Moçambique.
Todos os golpes são festejados nas ruas por milhares de cidadãos que, automática e espontaneamente, se constituem em sentinela dos golpistas, mesmo que o Povo perceba que essa ruptura representa um momento de grande instabilidade política.
Apesar disso, o golpe, que devolve esperança às populações, é olhado como meio para acabar com a pobreza, a miséria e a opressão, formas de violência estrutural praticada pelos golpeados.
Por isso, incluindo em golpes que parecem meras "chicotas psicológicas" (muito usual no futebol, em que se muda de treinador para tentar reverter os maus resultados de uma equipa), as populações festejam e enchem-se de esperança por "amanhãs que cantam", sonhando com o princípio do fim de uma vida de miséria em países onde reinam desigualdades a todos os níveis.
Neste contexto, foi sem qualquer surpresa que o Mundo assistiu ao golpe de Estado de 30 de Agosto, que derrubou o Presidente do Gabão, Ali Bongo Ondimba, e que poderia/poderá acontecer em qualquer outro país africano onde o enriquecimento dos poderosos é feito à custa da miséria dos povos.
Os militares anunciaram a tomada do Poder em Libreville, logo após ao anúncio (às 3h da manhã, hora local!) de resultados eleitorais "truncados" que asseguravam a reeleição do Presidente Bongo para um terceiro mandato, depois de ter alterado a Constituição para permanecer no Poder.
Resultados também denunciados pela sociedade civil e oposição que reclamam a vitória que Bongo tentou "roubar", ao candidato da oposição, como acontece em outros países africanos com regimes políticos fraudulentos.
Destarte, o golpe militar no Gabão é um contragolpe, num país com uma população de 2,3 milhões de habitantes, dos quais um terço vive abaixo do limiar da pobreza, apesar de produzir, em média, mais de 200 mil barris de petróleo/dia e exportar outras riquezas, nomeadamente urânio e manganês.
De 64 anos, 14 dos quais como Presidente, Ali Bongo, filho do Presidente Omar Bongo, viveu 56 anos no ou à volta do Palácio Presidencial de Libreville. O seu pai dirigiu o país durante 42 anos, transformando a sua família numa das mais ricas do Gabão.
Depois de suceder ao pai no cargo, em 2009, e durante todo o seu consulado, Ali Bongo fez da manutenção no Poder a prioridade da sua acção política, afastando críticos e opositores com métodos e práticas nada convencionais.
Usando um pretenso combate à corrupção, o Presidente destituído mandou para a cadeia políticos do topo do Estado, por suspeitar da sua lealdade, acusando-os de "traidores" e de "aproveitadores".
Apesar do derrame cerebral que teve em 2018 e das consequentes dificuldades em se deslocar, Bongo, um aliado da França, como era o seu pai, manteve-se agarrado ao Poder e ignorou os apelos da oposição, da sociedade civil e da diáspora gabonesas para que abandonasse o Poder.
Para se manter no Poder, consolidou o regime herdado do pai, colocando em lugares-chave da justiça e do controlo dos processos eleitorais figuras que lhe são leais e fiéis que lhe garantiam um Poder vitalício, independentemente das condições físicas ou mentais.
É o caso de Michel Stéphane Bonda, antigo conselheiro e ministro do Governo de Ali Bongo, colocado no cargo de presidente do centro gabonês de eleições (comissão nacional de eleições), encarregado de organizar, contar e divulgar os resultados das eleições.
A toda-poderosa presidente do Tribunal Constitucional do Gabão desde 1991, Marie-Madeleine Mborantsuo, que em Julho deste ano se recusou a analisar queixas da oposição e da sociedade civil contra a alteração da lei eleitoral quando faltavam poucas semanas para o escrutínio, tem relação política e de parentesco com a família Bongo: é mãe de dois dos irmãos do Presidente deposto.
A revolta do Gabão, o oitavo golpe militar na região central e ocidental de África nos últimos três anos, depois do derrube de presidentes do Mali, Guiné-Conackri, Burkina Faso, Tchad e Níger, apesar de suscitar algum cepticismo quanto ao seu desfecho, enquadra-se na necessidade de mudança do modelo político, e na luta contra o neo- e o endocolonialismos e pela democracia.
Cepticismo expresso, por exemplo, pelo escritor gabonês Janis Otsiemi, conhecido crítico do regime da dinastia Bongo, ao sublinhar que "se o golpe permitiu pôr fim a uma das autocracias mais antigas da África Central, (no entanto) não é uma garantia de renovação democrática".
Diante disso, o que fazem outros líderes opressores que ainda se mantêm no Poder? Em vez de arrepiarem caminho, indo ao encontro das populações, sobretudo dos anseios de uma juventude que quer liberdade, justiça e dignidade, reforçam o estado securitário para a sua protecção e sobrevivência política.
Fizeram isso Paul Biya, 90 anos, dos quais 41 como Presidente dos Camarões e Paul Kagame, há 23 anos na liderança do Rwanda. O primeiro fez novas nomeações para a unidade administrativa central do Ministério da Defesa e o segundo, que, em 2015, alterou a Constituição para se manter no Poder até 2034, aposentou 12 generais, 83 oficiais superiores e seis subalternos e nomeou novos generais para liderar as divisões do exército.
Por seu lado, João Lourenço, de Angola, e o seu colega golpista, Sassou Nguesso (golpeou, em 1997, com ajuda de Angola, o Presidente eleito do Congo-Brazzaville, Pascal Lissouba), em pânico e, objectivamente, com medo de serem atingidos pelo efeito contágio dessa nova revolução africana, reuniram-se de emergência no Congo para condenarem "veementemente" os acontecimentos do Gabão.
Nesta reunião, respondendo ao desesperante pedido do homólogo Ali Bongo aos "amigos para que façam barulho" a favor do seu regresso ao Poder, Lourenço e Nguesso (sogro de Bongo-pai e avô de dois dos irmãos do presidente derrubado) apelaram pelo "respeito pela integridade física de Ali Bongo e de sua família, bem como das altas entidades das instituições do Estado".
Dirigentes dos países da Comunidade Económica dos Estados da África Central (CEEAC), uma região onde mais de 80 por cento dos presidentes chegaram ou se mantêm no Poder através de golpes de Estado militar, constitucional ou de fraude eleitoral, suspenderam o Gabão da organização e deram um ultimato de um ano para que o País regresse à "ordem constitucional".
Esta decisão da Cimeira da CEEAC, integrada por Angola, Burundi, Camarões, Gabão, Guiné Equatorial, República Centro Africana, República do Congo, República Democrática do Congo, Rwanda, São Tomé e Príncipe e Tchad, maioritariamente cleptocracias, de tão ridícula, incoerente e irrealista, parece anedótica.
Esses políticos, que até para cuidados de enfermagem se deslocam ao exterior, nomeadamente Europa, deviam saber que reforçar o estado securitário é apenas um paliativo para políticos que viajam constantemente para o estrangeiro, onde vivem membros das suas famílias e a partir do qual poderão ser atacados ou mesmo golpeados.
Ignoram que a diáspora decretou tolerância zero aos desmandos de políticos insensíveis, cleptocratas e desumanos que, em vez de construírem pontes de mudança, fecham-se cada vez mais dentro desses regimes esgotados.
Estes acontecimentos mostram o falhanço da UA que só reage a posterior para condenar as mudanças e ameaçar os países com sanções sem, no entanto, condenar os golpes constitucionais e as fraudes eleitorais protagonizados por políticos promotores da fome, miséria e opressão.
A UA devia aproveitar a revolução em curso em África para a sua refundação e transformação em organização dos povos que zela pela integração, a prosperidade e o bem-estar das populações contra qualquer tipo de tirania.